terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Um brinde a 2010




Com exceção dos lojistas da 25 de Março, dos velhinhos que fazem bico de papai noel e dos cantores de coral, acho que pouca gente acredita mesmo que o Natal seja uma noite feliz. A melancolia dá o tom e mesmo quem tem uma graninha acaba se contagiando - deve ser por isso que alguém sempre chora na ceia de Natal. De onde será que vem isso? Ninguém chora no meio do jantar de Páscoa, quando se fala da crucificação de Jesus - mas no nascimento do coitado, é um chororô só.


O bom do Natal é que, logo depois dele, tem o Ano Novo. O Réveillon. As boas entradas. A julgar pelo movimento das pessoas e pelo clima das ruas, eu não sou o único a curtir essa semana que antecede a queima de fogos em Copacabana ou o show da virada na Paulista... ou os sete pulinhos no mar da Praia Grande, da Boa Viagem, de Canoa Quebrada, Ponta Negra ou Mole... Em qualquer trecho do litoral brasileiro vai ter alguém vestido de branco, olhando o mar como se deve viesse a notícia salvadora: "Sim, o ano novo vai ser mesmo tudo isso que você quer dele".

Nos dias que separam o Natal do Reveillon, os otimistas e os preguiçosos trocam olhares emocionados. Os primeiros acham que o ano novo, sim, será absurdamente feliz: pelo menos, é o que desejam uns aos outros. Os preguiçosos não vêem a hora do ano velho acabar, coitado, justo ele que tinha sido recebido com tanta euforia uns meses atrás. Mas o Ano em Curso é que nem amigo hospedado há muito tempo em casa: no começo, é uma diversão só, mas passou o alalaô, vem a rotina e os defeitos começam a aparecer. Bom mesmo é ano novo.

A gente deseja feliz ano novo - eu, pelo menos - com uma tremenda sinceridade. Você não deseja felicidades pra alguém que te encha o saco, te torture a existência, te faça mal - pensando bem, se essa pessoa é assim tão vudu, que diabos você faz ao redor dela? Se fuçar bem, vai descobrir que o problema é você e não ela, que apenas segue sua natureza de coisa-ruim. O legal de desejar feliz ano novo é que nem o mais azedo dos infelizes vai te mandar à merda. Você pode cometer gafes, como desejar feliz natal pra judeu, mas ano novo... gente, ano novo é ano novo.
É provável que a crença num novo ano feliz venha dos tempos em que a vida dos homens era marcada pelos ciclos rurais: ano novo seria o equivalente à colheita. Na Europa, o Ano Novo antecede a primavera, estação do renascimento, da volta do verde, das cores... No Brasil, nem tanto, mas como já copiamos tantas coisas dos gringos, mais essa não vai fazer diferença. Réveillon - que tem a ver com o francês 'reveiller', despertar, acordar - é isso: acordar limpinho e bacana pro novo tempo que vem aí. Tempo de colher, de criar, de alimentar. Tempo de ver o sol, a chuva e esquecer o frio que estava até agora nos calcanhares.
Simbolicamente, ano novo é tudo isso e mais um pouco. A gente quer deixar os problemas pra trás, como se o último banho do ano nos purificasse e nos jogasse, semivirgens, nos braços do ano recém-chegado. Eu sempre penso isso quando tomo o banho-antes-da-festa. "Xô, tranqueira" é minha palavra de ordem, meu lema, meu refrão. Nem sempre dá certo - e a prova é que as tranqueiras aparecem loguinho (dependendo da festa em que você foi, aparecem na noite do réveillon mesmo...). Mas tudo bem, ano que vem tem mais. Ainda bem.
Feliz Ano Novo. Ou melhor, como me mandaram num lindo cartão virtual outro dia: FELIZ OLHAR NOVO. Tem alguma coisa mais linda? Não é o Ano. É o Olhar. É você que será novo a partir de... de agora. Vamos combinar assim: o réveillon já começou!




quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Luzes da cidade


Muitas pessoas que lêem esse blog - sim, no plural! - têm urticária quando passam pela Avenida Paulista em dezembro. Bancos e prédios investem pesado em luzes, neve artificial, renas de pelúcia e pacotes de presente exagerados... É Natal na Paulista e isso já virou programa de família aos domingos. No último, eram quase onze da noite, uma multidão se espalhava pelas calçadas da avenida e o trânsito estava caótico - as pessoas simplesmente param o carro onde quer que estejam e fazem fotos com seus celulares ultra-mega-super modernos, comprados com o décimo terceiro.

É um caos? É. Aqueles enfeites são bregas? Demais da conta. Só mesmo uma cabeça formada pra considerar o Hemisfério Norte como modelo a ser copiado é que vai achar natural um velhote coberto de peles, sob neve, iluminado por um sol de quase 35 graus. Nesse ponto, continuamos iguais aos ingleses que vieram para o Brasil com a corte de d. João VI, em 1808, e abriram no Rio de Janeiro diversas lojas importadoras de lareiras e esquis. A suadeira tropical levou muito comerciante à merecida falência.

Pois eu acho lindo - apesar de todos os defeitos - aquele festival de sinos e ho-ho-hos. Tudo bem, não passo de carro por ali, nem paro a todo instante pra ver o anãozinho tocar o sino (do jeito que ele está pendurado, mais parece um baixinho se enforcando...), mas acho um tremendo barato aquelas famílias colocarem suas melhores roupas, tomarem um ou dois ou três ônibus e descerem do metrô na Paulista. São turistas daqui mesmo. Gente que vem do caixa-prego. Pessoas que vivem a galáxias de distância da Paulista, dos shoppings e de todos os ícones que nossa "paulistanice" elegeu como links da modernidade (palavras em inglês são essenciais pra ser moderno). Não é a breguice que incomoda, mas a invasão dos 'de fora'.

Aqueles meninos que caminham excitados pela avenida, os olhos fascinados com os prédios tão altos e tão coloridos, lembram o meu encanto pela "cidade". Era assim: um dia, meu pai chegava do trabalho e avisava: "Hoje nós vamos na cidade". Morávamos num bairro da zona norte e tínhamos de tomar um ônibus até o centro - devia ser uma viagenzinha de uma hora, algo assim, naquela época crianças não tinham nem precisavam de relógio.

Mas era sempre época de Natal e pros meus olhos acostumados às ruas do bairro os prédios e ruas enfeitados eram um mundo mágico, uma caverna de ali babá, com seus ouros e brilhos noturnos. Íamos ao Mappin, ganhávamos um presente, também uma roupa e, no fim, dividíamos um misto quente na Leiteria Americana, ao lado do Mappin. Com guaraná champanhe! Não há Fasano que chegue aos pés desse misto quente - e não estou desmerecendo o restaurante mil estrelas dos Jardins, longe disso.

Pode ser bobeira minha. Mas as famílias que hoje circulam pela Paulista atraídas por um enfeite luminoso brega e efêmero são desdobramentos, cópias, continuações da mesma família que éramos nos anos 60. Mudou a economia, hoje os meninos correm pela avenida com o celular do pai - comprado em prestações, muitas vezes - pra fazer uma foto que prove sua passagem pelo mundo mágico. É essa magia que me interessa, é esse fascínio que me comove. É bom demais prestar atenção no olhar dessas crianças, que não vão passar férias na Disney nem em acampamentos de verão, mas também não vão cair no lodaçal do crack e do crime. São crianças que crescerão, trabalharão e terão seus filhos, a quem levarão no Natal em algum lugar bem iluminado e mágico.

Há comércio demais, marketing demais, bom gosto de menos. O trânsito piora, parece uma invasão bárbara. Danem-se. Pelo menos durante um mês as luzes natalinas compensam a péssima iluiminação pública e o risco da ameaça de assalto nas esquinas afasta-se, expulso pelos cascos das renas de pelúcia. Por alguns instantes, haverá um reino mágico no olhar da criançada. Se isso não valer a pena, apaguem a luz, fechem a porteira e vamos todos viver no fundo da mata escura.


p.s. Momento deduragem carinhosa. Uma de nossas frequentadoras assíduas, com cartão de milhagem e tudo, faz aniversário neste dia 24. Beijos, Ana.


quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

O Príncipe e o Mendigo


Se a vida fosse uma novela, dessas que a gente assiste (ou, no meu caso, escreve), a coisa já estaria encaminhada. No fim da trama, os maus seriam punidos - alguns até com morte - e os bons se encontrariam, todos se entenderiam e dariam início a uma nova e feliz existência. Infelizmente, a vida teima em não seguir um roteiro. Nós, da grande platéia, só sabemos o que os jornais noticiam. De um lado, um menino norte-americano, filho de mãe brasileira, virou o lencinho no cabo de guerra que seus avós e seu pai travam diante do mundo todo, literalmente. Do outro lado, enfiado numa cama de hospital no interior da Bahia, está o menino cujo padrasto vingou-se da mulher, enfiando 42 agulhas no corpo do garoto de 2 anos.

Um, no Rio de Janeiro, vive cercado de tanto, mas tanto amor, que não tem quem pense nele. O outro, em Ibotirama, vive com a mãe, os cinco irmãos e o padrasto - e não teve ninguém que prestasse atenção nas agressões que seu corpo sofreu ao longo de dois meses. Numa novela, dessas que disputam a audiência ponto a ponto, os dois meninos seriam provavelmente irmãos separados no nascimento. Na vida real - se é que podemos chamar isso tudo de vida - eles nunca vão nem saber da existência um do outro. O mais pobre, talvez, nem sobreviva às agulhas.

O menino rico - deve ser rica a família, para mover com tanta gana a roda implacável da Justiça brasileira - virou alvo de uma disputa insana: os avós querem mais poder que o pai. Não sei se o pai é bacana ou pilantra, mas se fosse pilantra mesmo não estaria brigando tanto pelo moleque. Os avós, com certeza, vêem no menino uma extensão da filha morta. É justo que queiram ficar perto do neto. Mas será que a ponto de separá-lo do pai, apenas por que a filha tinha terminado o casamento? É uma discussão cabeluda, mas o que me chama mais atenção é a sensação de que, em momento algum, as duas partes se sentaram numa mesa para conversar.

Devem ter sentado, é claro, mas com posições já definidas. Delas, nenhum dos dois lados abriu mão. E o resultado é o interminável bate-boca jurídico, envolvendo até mesmo a super-poderosa Hillary Clinton. Ok, exagerei, a simplesmente poderosa Hillary. O pai tem a aura de norte-americano, o que dá a ele certo poder mítico. Os avós brasileiros são de uma família influente e bastante enfronhada nos meios do Judiciário. E nós sabemos o quanto isso pesa na hora de um juiz dar uma sentença.

Do menino baiano, o que sabemos é que a mãe só percebeu que algo estava errado quando o filho começou a vomitar e sentir dores fortes no estômago. Um raio X revelou a brutalidade. Uma criança de 2 anos, normalmente, já é pequena. Uma criança pobre, do interior do nordeste, é menor ainda. Mais frágil ainda. O que passa na cabeça de uma pessoa que, deliberadamente, submete um ser desses a tamanha tortura? Cachaça demais? Não tentem colocar a culpa na coitada da caninha.
Do baianinho quem vai cuidar, além dos médicos, é um delegado de província e um promotor, tomara Deus, bem intencionado. Não haverá roda implacável da Justiça movendo-se a favor do menino. No lugar de uma Hillary Clinton, talvez uma freirinha ou uma militante de ONG, mais ninguém. As mulheres poderosas de nossa terra - a primeira-dama, as ministras, as apresentadoras de TV que derramam lágrimas pelas criancinhas do show da TV - estão ocupadas procurando o marido, cavando uma vaguinha na presidência ou posando pra Caras.
Eu queria ser roteirista da novela dos dois meninos, só pra poder arrumar um fim bem meloso e feliz pros dois. Só pra escrever a cena em que os dois se encontrariam na rua, talvez diante de uma vitrine de doces ou, quem sabe, num play ground de uma praça abandonada. Eles se olhariam, trocariam um brinquedo, falariam de suas vidas - em sua linguagem quebrada de criança - e superariam todas as diferenças. Nos anos 60, Kadu Moliterno trocou de lugar consigo mesmo e o que era príncipe virou mendigo e vice-versa. Na minha novela, não. Nenhum deles seria príncipe, mas nenhum viraria mendigo. Sairiam pela rua, de repente fugindo com um circo, e seriam, talvez não felizes, mas crianças.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Festival de besteiras



Desta vez, não teve pra ninguém. Gilberto, o Alcaide, saiu na disparada e bateu o ranking de besteiras ditas por um político durante uma tragédia. (Ok, Lula extrapolou com a merda no discurso, mas não havia uma tragédia em andamento). Gilberto alistou-se, assim, no clube que reúne gente mais tarimbada na política, como o falecido Franco Montoro e a resistente Marta Suplicy.





Pra quem esteve em Marte na semana passada, eu explico: de segunda pra terça-feira, o céu desabou sobre São Paulo. Choveu gato, cachorro, periquito, cacatua, rinoceronte, iguana e ferret - em suma, choveu até dizer chega. Dois dias depois, a TV mostrava alguns bairros que teimavam em permanecer alagados.





E o que disse Gilberto a respeito desse dia tão caótico, mas tão, que a cidade registrou índice zero de congestionamento - simplesmente porque as pessoas não conseguiam se locomover a partir de certos pontos. "Está tudo sob controle", disse o Alcaide, revelando uma face budista desconhecida até de quem votou nele por convicção. Em seguida, Gilberto contestou os pessimistas e afirmou que a coisa não estava tão feia. O grande debate que surgiu a partir daí foi tentar entender o que o alcaide da maior cidade do país define por "caos".



Falar cretinices é um esporte muito praticado entre os políticos. Revela, além da pobreza de raciocínio, um tremendo desprezo pelo bem estar público. Exagero meu? Não. Quando Franco Montoro percorreu as áreas da cidade cobertas até o teto por água de enchente, em vez de lamentar a desgraça dos atingidos, suspirou: "Lembra Veneza". Foi muito gratificante para as vítimas da enchente saber que sua vida chegara, enfim, a níveis europeus.



Também Marta Suplicy perdeu uma luminosa oportunidade de se fingir de surda, quando questionada sobre o caos aéreo que transformava qualquer vôo numa gincana de Rollerball. À época ministra do Turismo, Marta disse que os prejudicados pelos atrasos monumentais deviam "relaxar e gozar". Trata-se de uma frasezinha que todo mundo usa de vez em quando. Na boca de uma ministra, chamada às falas sobre um problema seríssimo de sua pasta, a frase levava o maior jeito de chacota.

Recentemente, ao anunciar o plano de obras que interdita total ou parcialmente cinco pontes sobre o Rio Tietê, o governador e o prefeito estavam tranquilos: as obras não prejudicariam o trânsito de São Paulo. Limitados pela realidade concreta dos fatos, alguns repórteres insistiram e, ao Estadão, o governador deu a solução mágica: "Basta o cidadão negociar novos horários de trabalho com suas chefias". Deve fazer muito tempo que o governador não pega no pesado de verdade, das 8 às 18 com uma hora de almoço. Desconfio até que nunca tenha passado pela experiência de carregar uma marmita.

Não ter sofrido não significa que o sujeito seja um monstro insensível. Ele pode ter tido berço de ouro e compreender o quanto é ruim, por exemplo, usar o transporte público nessa cidade. Qualquer guaxinim que tenha frequentado a escola - mesmo que levado de carro particular por pápi e mami - conseguiria entender que os novos ônibus de São Paulo, cheios de degraus, são um convite ao braço quebrado. Mas, o que faz a prefeitura? Aceita esse veículo e obriga a população a fazer verdadeiros malabarismos diariamente nas ruas da cidade.

Da mesma maneira, na gestão de Erundina (de quem gosto muito), um elogiado programador visual, querido em tudo quanto é bar bacana da Vila Madalena, determinou que todos os ônibus de São Paulo tivessem as mesmas cores. O Iluminado esqueceu que uma grande maioria da população tem pouquíssima intimidade com a língua escrita - maneira tucana de dizer que são analfabetos - e o que se via nos pontos era um amontoado de gente desesperada atrás de seu ônibus, já que não conseguia ler os letreiros...

Estou fugindo do tema? Acho que não. Tudo gira em torno do mesmo ponto: o solene desprezo pelo bem coletivo, pelo interesse da população. É como se prefeitos, governadores, ministros e os que os assessoram trabalhassem não pela cidade em geral - mas contra seus não-eleitores. Eles não governam: vingam-se dos votos não recebidos. O pior é que, na hora de votar, a marujada vai lá e reelege essas figuras. Francamente, nem sei porque eu esquento a moringa.

p.s. Divertidíssimo imaginar a cara de Gilberto, o Alcaide, ao ver que os vereadores rejeitaram seu pedido de aumento salarial. Atire a primeira pedra quem nunca pediu aumento e o chefe disse 'não'...

p.s.2 Como vocês devem ter desconfiado, se chegaram até aqui, eu não estou no time dos colegas artistas que derramam-se em elogios às administrações, presentes e passadas, só porque visitaram um dos nossos no hospital. Luz na praça, que é bom... policiamento, que é fundamental... necas...

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Complexo de Orfeu


Num hipotético dicionário do comportamento urbano, o verbete que me define estaria entre o A de 'ajuizado' e o C de 'cagão'. Jamais chegaria ao R de 'resistente a assaltos'. Mas quem teve algum contato com a obra e a figura do dramaturgo Mário Bortolotto sabe muito bem que ele jamais se intimidaria por um assaltante noiado. Especialmente, se esse noiado estivesse agredindo alguém indefeso. Bortolotto é do tipo que parte pra porrada, no teatro e na vida.

O assalto na madrugada de sábado, na Praça Roosevelt, que deixou Mário Bortolotto ferido por quatro disparos - e mais outros dois feridos com menor gravidade-, acabou expondo também a fragilidade de nossa classe artística. No ato público realizado na noite de domingo, lotando o bar do Espaço dos Parlapatões e a calçada em frente, muita gente ainda carregava uma expressão de choque: "Atingiram um dos nossos! Isso não pode continuar!"

É como se, no fundo, nos acreditássemos protegidos por um escudo invisível. Não. Nem nós, nem ninguém. A rigor, os tiros que feriram Bortolotto são os mesmos que atingem dezenas de pessoas diariamente em São Paulo. A falta de segurança que agora aperreia os frequentadores da Praça Roosevelt é a mesma que incomoda quem caminha tarde da noite pela Avenida Paulista ou desce do ônibus lotado em alguma rua deserta do Jardim Ângela.

Bortolotto foi ferido não por ser artista talentoso, mas por ser um cidadão - dos que pagam imposto e conta em dia - colocado em mais uma cena de violência urbana . A ingenuidade da classe artística revela-se na crença de que vamos trocar o pipoco das balas pelos aplausos a nossas performances, usando apenas o sorriso cativante e a riqueza de rimas. Fazemos nosso trabalho, atraímos nosso público, cientes de nosso papel social como artistas e, por isso, acreditamos que as feras vão se acalmar.

Somos Orfeus gagos e de lira quebrada. Infelizmente, nosso canto, sozinho, tem pouco alcance. Mas não é por isso que vamos deixar de cantar e remendar as cordas da lira, pra tentar seduzir alguma fera perdida. Não podemos esquecer que sempre dependemos "da bondade de estranhos", como já disse Blanche Dubois em "Um bonde chamado desejo".
Sem o poder público que forneça segurança, ilumine as ruas e termine o que começou (a demolição dos escombros da praça, por exemplo), pouco poderemos avançar. Mesmo que não sejamos seres dotados de imunidade especial, apesar de nosso talento, temos algo que a grande maioria da população nem sonha em ter: acesso aos meios de comunicação. Em alguns casos, temos acesso direto a quem manda na polícia militar e na guarda civil metropolitana.
Não devemos reduzir a reivindicação por mais segurança a uma campanha destinada a proteger uma casta de divinos. É a cidade que precisa de segurança, é o cidadão que precisa de proteção. Ou seja, nós todos.

O ato público ontem, capitaneado por um emocionado Hugo Possolo, teve uma santa missão: dissemos a quem quisesse ouvir que não vamos recuar, não vamos abaixar as portas e tomar nossas cervejas em silêncio, aplaudindo com estalar de dedos pra não atrair a bandidagem. Dizer"não" ao medo é fundamental pra que nossa vida e nossa arte tenham algum sentido.

No melhor dos mundos, essa onda de coragem avançaria e tomaria conta da cidade - passaria pelos bairros centrais, avançaria pelos arredores da cidade e chegaria aos rincões distantes, sempre conseguindo afastar o perigo e a maldade. Não custa sonhar e é disso que vivemos, nós que escrevemos, atuamos e caímos no meio do picadeiro pra divertir a galera. Vivemos do sonho de construir um mundo melhor.


quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Gastronomia & Gincana


Desde o século 16, quando François Rabelais animou o Renascimento com as aventuras de Gargantua e Pantagruel, colocar alimentação farta, sexo e prazer no mesmo balaio tornou-se comum. O cinema não deixou passar - e quantos jantares fantásticos são comparados hoje em dia à "Festa de Babette", numa lembrança do delicioso filme de 1987, com Stephane Audran dirigida por Gabriel Axel... Quem não saiu do cinema com água na boca, depois de ver aqueles áridos escandinavos virando os olhinhos de prazer carnal a cada prato servido pela imigrante francesa?

A ligação entre sexo, gastronomia e prazer sempre foi tão intrínseca que até hoje soa uma ousadia o roteiro de "A Comilança", dirigido por Marco Ferreri, em 1973. Os anos 70 foram tempos em que ainda havia radicalismo de ideias no cinema europeu. Daí, a força do filme, que mostra um grupo de amigos (Marcelo Mastroianni, Michel Picolli, Ugo Tgnazzi, Phillipe Noiret e Andrea Ferreol, entre eles - um timaço) reunidos numa casa de campo para comer até morrer. Era o que faltava para simbolizar o ciclo da vida: a morte. Sexo, comida, prazer e morte. Mais vida que isso...

De certa maneira, eu esperava que "Julie & Julia" me desse um pouco do prazer que Babette causara, ainda no século 20 - obviamente sem o radicalismo suicida da Comilança. A ideia anima: Julie, uma candidata a escritora, em 2002, cria um blog prometendo preparar no prazo de um ano as 500 e tantas receitas de um livro clássico da culinária nos Estados Unidos, escrito nos anos 50 por Julia Child. O filme começa bem, com Meryl Streep se impondo desde a primeira cena, como a caipirona Julia , deslumbrada com Paris e entediada com a vida de dona de casa sem filhos. A mesma atriz que deu um banho de classe e elegância em "O Diabo veste Prada", agora rouba todas as cenas como a expansiva Julia - e mesmo sem contracenar, rouba as cenas da jovem Julie, vivida por Amy Adams (uma impressionante versão jovem de Cinthia Nixon, a Miranda de "Sex and the City").

Julie é simpática e contemporânea, mas sua trajetória como personagem é entediante. Onde ela arruma tempo para trabalhar longe de casa, fazer compras no mercado, cozinhar um prato difícil por dia e, ainda, tentar dar conta do maridão jovem, bonito, atencioso... Ter um piti porque a gelatina desandou, francamente, é pouco eletrizante pra um filme de duas horas. E o chororô da crise... please...

Apesar dos defeitinhos, "Julie & Julia" é um filme delicioso de ver: o grupo dos anos 50 é o mais divertido, até nas pequenas participações (Jane Lynch, a analista de "Two and half men", faz a irmã de Meryl, ótima). No começo, a gente acha que devia ter levado um estoque de barrinhas de cereal pro cinema, porque aquelas receitas vão atiçar o apetite. Bobagem. Tanto Julie quanto Julia acabam se dedicando com afinco à tarefa de aprender aquelas receitas porque se impuseram um desafio - e não há nada mais americano do que vencer um desafio.
Falta o deliciar-se, o lambuzar-se mesmo. Na hora em que servem as refeições, falta aos comensais aquela expressão de verdadeiro prazer que temos diante de um prato delicioso. Em tempo: os atores dizem que sentem prazer, comem fazendo uhms e ahms, mas o prazer carnal, visceral, o olho brilhando de gula e luxúria, ah, isso não tem, não. O grupo dos anos 50 ainda se entusiasma um pouco mais, talvez porque saboreie as receitas em Paris - mas os contemporâneos vivem em Nova York e dão a impressão de que trocariam aquele pato desossado por um hambúrguer com fritas, sem dor na consciência.

Graças ao roteiro - que tem ótimos momentos - há no filme os ecos de um outro sucesso dos anos 1980, "Nunca te vi, sempre te amei": as protagonistas nunca se encontram e a única cena em que aparecem juntas é a da foto acima. Essa reversão de expectativa pode frustrar alguns, mas não deixa de ser curioso.
A vantagem é que você pode ver o filme na sessão das 10, sem correr o risco de sair do cinema desesperado pra entrar no primeiro restaurante francês... fechado a essa hora da noite. É um filme sobre jantares requintados, que não desperta o apetite. Perfeito pra quem tá de dieta. Agora só falta mesmo aparecer a versão brasileira, com Fernanda Montenegro fazendo a Ofélia e Marília Pêra, a Palmirinha.

sábado, 28 de novembro de 2009

Qual é o pente que te penteia?



Nada é por acaso, a não ser o que nos pega de surpresa. Depois de tanto resvalar no tema do racismo que nos rodeia, acabei na plateia da peça "Ensaio sobre Carolina", que encerra carreira na próxima sexta-feira, dia 4/12, no Teatro Imprensa. Ali, junto aos meus sete companheiros de platéia - tão pouca gente pra um espetáculo apresentado por seis pessoas - tive a nítida noção que estava assistindo a uma das melhores peças do ano.

"Ensaio" é um trabalho de pesquisa teatral feito sobre o livro "Quarto de despejo", um dos maiores sucessos editoriais do Brasil nos anos 60. Sua autora era uma catadora de papel, favelada, mãe de alguns filhos e com uma sensibilidade atordoante: Carolina Maria de Jesus. O ingresso custa só 10 reais e dá direito não só a um espetáculo vibrante, mas também a um gole de cachaça e a muita, mas muita reflexão.

Os jovens atores negros, guiados pelo diretor José Fernando Azevedo, mergulharam fundo. Em cena, o que se vê é, ao mesmo tempo, é a vida de uma mulher negra no fim dos anos 50 e o que esses atores, com toda certeza do mundo, já sentiram na própria pele. É um documento e, ao mesmo tempo, é atual. É histórico e é contemporâneo, a tal ponto que em nenhum momento sente-se falta do famigerado didatismo que tantas vezes contamina peças adaptadas de livros. Gal, Sidney, Lucélia e seus colegas tomaram conta do texto, apossaram-se de sua narrativa - e com isso seduzem a platéia.

Não é uma peça sobre racismo, denúncia, nem paira no ar um clima de vingança contra os branquelos da platéia. É um espetáculo sobre a dor que o racismo causa, sobre as feridas fundas que deixa em quem sofre ataques também de seus 'iguais'. Há até ingenuidade no modo como Carolina vivia seus problemas. Sem lei Afonso Arinos nem conceitos politicamente corretos (e hipócritas), ela se valia da própria sensibilidade para enfrentar os ataques. Talvez seja isso que deu à montagem a mesma contundência do livro: os atores também retrabalham as próprias experiências e misturaram às da autora, que morreu em 1977, aos 63 anos, depois de ver seu livro traduzido em 13 idiomas.

Há momentos delicados - quando Carolina sai comprando exemplares da revista O Cruzeiro, a primeira a falar dela e seus diários. E há momentos que travam a garganta - quando a mãe rege a sinfonia dos filhos famintos. Ou quando ela, tratada como estrela por um diretor de jornal, emociona-se ao realizar um antigo sonho: almoça arroz, feijão, bife e salada. E há outros momentos que nos assustam, como quando todos atacam uma atriz, usando todas as piadas infames e gracinhas racistas que se espalha por aí. Sobram ataques para o sistema, que queria transformar Carolina numa celebridade a contragosto, e fica implícito - até pela pouca presença de público - que muita coisa continua igual. À exceção de Sidney Santiago, que viveu o esquizofrênico pobre de "Caminho das Índias" e também arrebentou como o motoboy do filme "Os doze trabalhos", o restante do ótimo elenco não aparece na Caras. Portanto...

Com perucas loiras mal ajambradas na cabeça, números musicais que parodiam os filmes de Hollywood de maneira cortante - uma explicitamente falsa doris day dança pelo palco abraçada a um vestido de primeira comunhão, enquanto canta as agruras de não ter comida pra dar aos filhos... - o elenco inteiro dá um show.

Interessante é que a miséria do tempo de Carolina era dolorida, como a miséria de hoje, mas não tinha a marca da violência. Ainda não se falava de criminalidade como sinônimo de miséria. E isso espanta: a mãe quer comprar sapatos pros filhos para que eles possam ir à escola e ser alguém - e não para que tentem escapar das quadrilhas e das polícias. A peça termina de maneira quase brusca, porque - no fim das contas - aquela história não termina nunca.

Tentem não perder a peça. É um espetáculo de primeira grandeza em meio a tantos falsos brilhos de nossos palcos.

p.s. Confesso que não sabia, mas tá na Vejinha: Gilberto, o Alcaide, tá fechando os albergues de miseráveis do centro. Quer que os mendigos aceitem dormir nos cafundós da periferia. Eles não aceitam e acabaram se espalhando pelos bairros de gente bem. Pelo menos agora são notados. Será que foi a maneira que o Alcaide encontrou de despertar a consciência social dos frequentadores da Oscar Freire? Bem bolado!

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

As mortes de Celso Pitta



A segunda morte do ex-prefeito Celso Pitta, noticiada no sábado, pegou muita gente de surpresa. Poucos sabiam que ele estava doente e a maioria já dava o homem por morto desde que ele saiu da prefeitura e só se meteu em confusão - seja com a ex-mulher, seja com a Polícia Federal.
A terceira morte de Celso Pitta ocorreu algumas horas depois do seu falecimento físico. Ao velório e ao enterro, realizados debaixo de uma chuva que os jornais de antigamente classificariam de torrencial, compareceram umas 100 pessoas - no enterro, mesmo, eram umas 30 almas pingadas, contando a mãe de 89 anos e os filhos, que chegaram poucos minutos antes do caixão baixar à sepultura.

No domingo, os jornais publicavam a notícia embaraçosa e forçavam a repercussão junto a outros prefeitos paulistanos. Gilberto, o Alcaide, soltou uma nota padrão, só não totalmente formal porque remetia à morte do próprio pai, ocorrida há algum tempo. Marta Suplicy, convenhamos, deve ter discussões mais acaloradas com seu cabeleireiro sobre cor de tintura do que ditando a sua opinião sobre a morte de Pitta. Maluf, em viagem, mandou um telegrama.

Não houve surpresa nessa melancólica saída de cena. Pitta nunca teve uma tradição política: chegou à prefeitura guindado pelo padrinho Maluf, com quem se desentenderia depois. Não criou vínculos com a cidade. E nem com os mais próximos: contam as comadres que sua relação com os filhos era, no mínimo, muito complicada. Com Nicéia, nem se fala. Pra mim, a surpresa mesmo veio da reação de algumas ONGs de movimentos negros , que atribuíram o baixo ibope do enterro ao preconceito racial.

Eles dizem que Pitta foi vitimado pelo preconceito durante toda sua administração. Eu cochilei e perdi algum pedaço do filme? Até onde minha loirice consegue compreender, Pitta entrou pra história como titular de uma prefeitura corrupta, corroída pela roubalheira de precatórios e verbas desviadas. Não foi o único a ser acusado, é verdade, mas pelo jeito foi um dos que deixou rastro. Havia, sim, piadas racistas em torno de seu nome - mas não creio que este tenha sido o único combustível das críticas: o que pegava mesmo era a corrupção desenfreada.

Não foi só isso. Celso Pitta, até onde eu saiba, não deixou marcas na cidade. Era desprovido de carisma. Até a arrogante Marta Suplicy ("Ela parece uma eterna aluna de vestido rendado do Des Oiseaux", dizia uma colega do Estadão) tem seu fã-clube. Há quem vá com a cara de Gilberto, o Alcaide, e até o governador asperge seu charme sobre alguns corações femininos. Pitta - repito, até onde eu saiba - não deixou muitas lembranças.

Ele foi humilhado ao ser preso de pijama em rede nacional, da mesma forma que Marta foi achincalhada quando um estudante da São Francisco atirou-lhe uma galinha em cima (e só faltou ser ovacionado pela imprensa tucana) e Luísa Erundina era ridicularizada por ser solteira, não ter corpinho de miss e falar com sotaque nordestino.

Confundir isso com racismo, sei não. Será que é mesmo motivo de orgulho saber que um negro chegou ao poder construindo uma imagem de político corrupto? Minimizar essas acusações seria a solução ideal? Um negro corrupto é menos corrupto que um branco? Será que até pra isso vai ter cota?

O que todos esses políticos - sejamos pró ou contra - experimentaram em comum foi a campanha da maioria que se julga branca, rica, hétero e ariana. É contra isso que devemos lutar - mas sem jogar para debaixo do tapete os erros de nossos candidatos. O erro dos 'nossos' não é menos grave que o erro 'dos outros'.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

O número 2


Pode ser alguma barreira minha. Talvez eu precisasse discutir o tema com minha analista. Ou continuar fazendo o que sempre faço: tiro o som da TV quando entram aquelas propagandas chatérrimas de Activia e outros produtos que ajudam a pessoa a fazer o bom e velho cocô. Aquele bando de mulheres reunidas em torno da Patrícia Travassos ou de outra atriz, comentando que agora sim são mulheres realizadas porque conseguem dar vazão ao seu metabolismo... sei lá, eu acho embaraçoso.

Não sou contra falar do assunto - já fiz peça sobre isso, aliás um tremendo sucesso. Mas uma coisa é fazer no teatro, a pessoa vai até lá, leu a sinopse antes, é um outro ritual. Se for um pateta que nem eu, que costuma almoçar ou jantar diante da TV (é errado, eu sei, mas oras bolas), é bem chato ver neguinho discutindo hábitos intestinais em público.

Também acho chato aquela propagada de ração pra cachorro em que uma menininha fofa aparece em close segurando uma pazinha lotada de cocô canino. Pô, não tem limite pro exibicionismo? Nem o cachorro escapa.

Essas coisas a gente fala com quem tem intimidade ou com o médico. Mas, pensando bem, nossos hábitos sexuais também não são da conta de ninguém - e hoje em dia o que mais se vê e lê nas revistas é com quem A dormiu, quem B comeu ou pra quem C deu. Já li entrevistas detalhadas de orgamos, primeiras vezes, práticas sexuais inusitadas e outras banalidades de gente que nem lembro mais quem era. Ou seja, coitada da moça - acho que era uma moça: se abriu feito um para-quedas e sumiu na lata de lixo da história.

O problema dessas propagandas - que atingem muita gente, já que prisão de ventre é praticamente uma epidemia - é que são repetitivas, sexistas e simplistas. Elas sempre têm uma pinta de científicas e se dirigem a mulheres, como se não houvesse homens não padeçam do mesmo mal. São simplistas porque atribuem a um pote de iogurte o dom de abrir os caminhos (num sentido figurado) de qualquer pessoa.
Numa das propagandas, uma executiva passa o dia correndo pro banheiro e saindo com cara de quem não fez nada. Até que a secretária eficiente oferece um remedinho - e a mulher, pelo visto, pinta a porcelana. Imaginem essa atriz saindo por aí. Entrando no banheiro de um restaurante. Ou usando o toalete na casa de um colega de trabalho. Todo mundo vai pensar a mesma coisa, não vai?
Deve ser tão constrangedor quanto a velhinha que fazia propaganda de fraldão pra adulto ou da senhorinha que falava do Corega. Ah, teve também o Orlando Moraes pagando mico de seboso, com a Glória Pires fazendo anúncio de xampu anti-caspa. É tudo natureza, eu sei, eu sei. Mas só queria dividir essa dúvida que sempre me bate quando vejo a Patrícia Travassos falando do Activia. Tanto que nem tenho uma opinião formada. Eu só não gosto dessas propagandas, mais nada.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Pra cima com a viga, moçada!


Não vou entrar em detalhes técnicos, deixo isso pros jornais e revistas. Mas, vamos e venhamos, esse despencar de viadutos na Régis Bittencourt é uma tremenda pouca vergonha - pra dizer o mínimo. Um engenheiro que fajuta os cálculos ou troca o material usado na construção por outros de qualidade inferior - sabendo do risco que pode causar - é o que os antigos chamariam de criminoso.

Espero sinceramente que os profissionais envolvidos na construção dessa obra estejam sem pregar o olho desde sexta-feira. Eles deveriam sofrer de insônia desde que trocaram o cimento bom por um meia boca, mas não se pode esperar demais de quem aceita entrar num jogo desses. É bem capaz de acharem logo o culpado - algum peão de obra, de cabeça chata e sotaque arretado, daqueles que não têm dinheiro nem pra recarregar o bilhete único. Afinal, é ano eleitoral e o peso das vigas pode sobrar pra muito mais gente.

Espero não estar sendo imparcial demais - e é claro que estou - mas vocês não ficam espantados com a péssima qualidade dos empreiteiros contratados pelo Estado para dar cabo de obras tão grandiosas? É notoriamente conhecida a guerra que quase todo mundo trava com pedreiros e empreiteiros quando decide construir ou reformar a casa (sou exceção, o mestre Juraci, que cuidou das melhorias do meu cafofo, é um lorde pontual e caprichoso) - mas o azar que o Governo do Estado tem é chocante.

Lembram da linha amarela do metrô? Até tatuzão desencontrado apareceu - veio um de um lado pra encontrar o outro - e os túneis estavam desalinhados! Sem falar na barbaridade que foi o desabamento em Pinheiros, matando gente que não tinha nada a ver com o pato. Vai ver que o critério de escolha das empreiteiras é o mesmo que o Zé Bonitinho do Mal usou pra escolher o reitor da USP - não pega o mais votado, não. Nem o melhor... Pega, deixa eu ver... ah, pega esse aqui. Isso é típico de quem ficou em segundo lugar...
Pensando bem mesmo... Se o PSDB entendesse de construção, o símbolo deles não seria um tucano. Seria um joão de barro. Aquele passarinho de bico desproporcional explica tudo!

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

É a treva!



Não, não se trata de um post sobre o apagão que deixou mais da metade do país tateando armários e gavetas à procura da vela perdida. Nem - apesar da foto - de algum comentário sobre o bordão de Bianca, um dos personagens mais populares da novela "Caras & Bocas", vivida pela atriz Isabelle Drummond (salvo engano, a primeira menina a interpretar a Emília no "Sítio do Picapau Amarelo). O post é mesmo sobre o tempo que vivemos.


Posso estar enganado - aliás, espero mesmo estar bastante enganado -, mas há algum tempo sinto no ar um certo clima de revanche, de vingança do bastardo, da volta do trogloditismo. O caso da Menina da Minissaia foi exemplar, mas não foi o primeiro, nem único e, infelizmente, não tem pinta de ser o último. As forças conservadoras reconquistam o terreno perdido. E não estou me referindo apenas aos aspectos político-partidários. Penso no conservadorismo de comportamento, de ações, de gestos.


Alguns são até inocentes, como a volta do noivado. Aquele período que separava o namoro do casamento e servia pro futuro casal ter mais liberdades perdeu o sentido nos anos 60-70, quando se ia pra cama antes mesmo de saber com quem... O test-drive sexual funcionou muito bem e, pelo jeito, funciona até hoje. Mas a rapaziada tem organizado almoços de noivado e festas de casamento grandiosas, resgatando uma formalidade que eu acreditava extinta.


Ao avanço das conquistas sexuais de gays e lésbicas, segue-se um recrudescimento de punks e anarquistas, provocando agressões e assassinatos no rastro da última Parada Gay de São Paulo. É como se o clima de democracia e direito à expressão que marcou as conquistas homossexuais também servisse de veículo para os conservadores emitirem a sua opinião. Não haveria nada mais democrático: a convivência de opostos. Mas não é o que temos visto, apesar de um inegável avanço: hoje, não se apanha calado. Vítimas e militantes, quando atingidos, gritam e exigem providências legais - e isso é um avanço fenomenal, apesar de óbvio. Mas o fato é que veados continuam apanhando e morrendo apenas porque são veados.

Mulheres também pagam sua cota. Do ponto de vista capitalista, elas conquistaram muita coisa nos últimos 40 anos (menos igualdade de salário). Conquistaram o direito a ser mães sem a presença do pai-marido e, em nossa sociedade, o direito de ir e vir - a não ser que usem roupas provocantes demais. A única explicação que encontrei até agora para o comportamento dos estudantes da Uniban que cercaram a Menina da Minissaia foi esse xarope de conservadorismo que nos cerca.

Provavelmente, pela idade que têm, muitos desses jovens (a maioria) são filhos de mulheres que trabalham fora. Certamente têm irmãs e primas que estudam para ter uma profissão e que não conseguem, nem podem, separar trabalho e casamento: o salário de um casal é sempre mais garantido que o de um só. Ao mesmo tempo, esses meninos e homens saboreiam as mulheres-fruta, cujos apelidos por si só já indicam o caráter consumista que aplicam às fêmeas. Ninguém respeita uma jaboticaba ou uma melancia.

Da mesma maneira que invadem as ladeiras de Olinda no carnaval, beijando toda menina que passa no caminho, às vezes à força, esses meninos viram na minissaia da colega de faculdade um motivo para chacota. Assoviar, chamar de galinha e passar cantadas grosseiras virou coisa do passado. A onda é responder à altura. Por algum motivo que me escapa, eles se sentiram agredidos pelas coxas da Menina - mas aplaudiram, vejam só, as coxas famosas de Sabrina Sato, que apareceu na Uniban embrulhada num minivestido cor-de-rosa. Foi uma grande sacada do "Pânico" e revelou parte do pensamento desses meninos: as coxas da Sabrina Sato são um tesão (e são), mas a carne das 'nossas' não é pra ser exposta. É a volta triunfal da "mina pra casar".

É uma pena que nada, nem mesmo a entrada de Sabina Sato, ajude a refletir sobre o assunto. A agressão vira piada. A bicha que apanhou dos punks engole o choro. E o fato de alguém se vestir de maneira apenas inadequada rende, no máximo, uma corrida das revistas de mulher nua pelo direito às coxas da estudante. Sai a mulher melancia e entra a mulher judas.

domingo, 8 de novembro de 2009

A butique dela


Demorei pra escrever a respeito do caso da minissaia. Queria ver até que ponto ia a coisa toda. A história da menina que foi avacalhada no campus da Uniban porque estava usando uma roupa "inadequada" rodou jornais, colunas, blogs e programas de TV. A menina virou uma instant-celebrity e deve ter deixado seus agressores ainda mais incomodados: ela denegriu a imagem do instituto de ensino... Sábado, veio o troco: ela foi expulsa da universidade. Vamos combinar: precisa escrever algo a respeito?

Digamos que. Vamos supor que. Vá lá, quem sabe os caras. Mesmo que algumas entrevistadas (sim: mulheres) ao longo da semana tenham razão, que a Menina - vou chamá-la assim, ok? - tenha se exibido com mais despudor do que o 'permitido'... mesmo que ela tenha se recusado a trocar de roupa para evitar um tumulto maior... não dá pra entender o motivo do tumulto em si. Um par de pernas? Ok, o fundamentalismo moralista tá tomando conta da cidade, a Lei Cidade Limpa tirou das paredes dos prédios aqueles outdoors com gente gostosa em trajes íntimos - mas daí a achar que gente bonita ofende é um passo maior do que as pernas (perdão pelo trocadilho). E na direção errada.
A história continua mal explicada, mas uma coisa é certa. Os alunos foram de uma agressividade pré-histórica, a Menina fez muito bem em botar a boca no trombone e a universidade perdeu uma excelente ocasião de injetar um pouco de esperança no futuro da educação no Brasil. Ao expulsar a aluna, a reitoria está punindo a vítima do estupro. Pior, está agindo com uma ética troglodita. A Menina só foi informada da expulsão pelos repórteres. A universidade pensou primeiro no release, antes de comunicar o fato à principal interessada.
Estamos, não é de hoje, numa nação de moralidade hipócrita: os colonizadores portugueses inauguraram a prática do turismo sexual ainda no século 16, atravessando o mar-oceano pra saracotear com negras e índias em terras brasileiras. Até mesmo numa novela (salvo engano, "Água Viva", de Gilberto Braga), uma personagem era quase linchada em Ipanema por fazer top-less, copiando na ficção um fato real acontecido no Rio. Nosso carnaval exibe corpos em detalhes de livro de medicina e uma mulher não pode mostrar os peitos na praia. Nossas praias de nudismo, um convite à liberdade, são um dos territórios mais machistas e escrotos que já vi: homem sozinho não entra, dois amigos não entram - só entra casal hétero ou duas mulheres. Isso é norma! Tentem explicar isso pra um casal gay francês que só queria dourar o pingolan em águas naturalistas du Brésil...
Vivemos uma época em que, abrindo qualquer revista, podemos saber detalhes anatômicos do ator tal, quantas vezes o cantor X goza ou quem frequentou a cama da modelo Y - contado por ela! O que poderia ser a manifestação sadia da sexualidade, em seus mais variados formatos, se transforma num exercício exibicionista totalmente sem graça. Mas há pessoas, como a Menina da Uniban, que acreditam nisso: elas acham que a sensualidade tão elogiada nas revistas é privilégio democrático. Enfia-se numa minissaia, de repente até fica meio vulgar, mas ela gosta assim e pronto. Como dizia o Garrincha, ela só não combinou com os adversários.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Dona Augusta


Lá pelas tantas, no meio da sessão de "Alô Alô Terezinha", entre uma chacrete decadente e um ex-calouro trelelé, eu me lembrei da Dona Augusta. A Dona Augusta era sogra do meu tio (e padrinho) e já era velha quando eu era criança. Foi a primeira pessoa que eu conheci que falava com sotaque carioca. Mas Dona Augusta tinha um algo a mais: ela era prima do Chacrinha. Aos meus olhos, aquilo fazia dela um ser superior, distinguido, uma sacerdotisa do grande templo que era a televisão - e eu achava que eles até se pareciam... Eu imaginava as conversas da dona Augusta com seu primo famoso, a quem nós - os mortais condenados ao anonimato, o resto da família - jamais veríamos pessoalmente. Nunca tive coragem de perguntar a ela como ele era - eu tinha medo da velhice dela. Provavelmente, as informações que dona Augusta me daria sobre o primo seriam mais consistentes do que as fornecidas pelo documentário de Nelson Hoineff.

Falta inteligência a "Alô alô Terezinha", o que é uma pena. Falta um norte, também. Ao fim de 90 minutos de filme, você sai da sala sem saber se assistiu um documentário sobre o Chacrinha ou sobre as chacretes ou sobre o programa ou sobre a deplorável exploração dos mais fracos no circo eletrônico. "Alô alô" flerta com todos esses temas, sem abraçar nenhum com firmeza. A figura de Chacrinha passa pelo filme, sem explicações sobre sua origem pessoal e profissional.


O filme se detém mais sobre as chacretes e os ex-calouros (parabéns à produção, pela descoberta dessas figuras). Mas é nesse ponto que descobrimos o verdadeiro tema do documentário: a decadência. Quanto mais caído for o entrevistado, mais seu depoimento será estendido. Por isso, as chacretes ocupam a maior parte da projeção. Símbolos sexuais em seus tempos de glória, todas tiveram seu auge no começo dos anos 80, quando a TV podia mostrar bundas e peitos sem que a censura caísse matando. Numa cena do programa feito ainda na TV Tupi, nos anos 70, o figurino das chacretes é de uma inocência quase angelical: blusas sem manga, saias compridas. Nos anos 80, os maiôs entravam pela bunda e os closes beiravam o ginecológico.

Mas 30 anos se passaram e atire a primeira pedra quem não sofreu no corpo as influências do tempo. As gostosas envelheceram e a sensação é que o filme as culpa por isso, pelas celulites e estrias, pelas barrigas avançadas e pelos peitos caídos. Condenadas pela falta de glamour, elas aparecem fazendo sermões religiosos, fritando coxinha de galinha ou vendendo hot dog em quermesse. Uma chora por que é desprezada por um médico gay, a quem ama de paixão. A outra reencarna a índia sensual e mergulha sem roupa na fonte da cidade. É como se o cineasta tratasse seus entrevistados com o mesmo "desrespeito" que Chacrinha devotava aos calouros: são pessoas desvalidas, com a auto-estima no porão, mas ainda nostálgicas do sucesso que um dia tiveram e do desejo que um dia despertaram. A única que está melhorzinha - inclusive fisicamente, estrelando filmes pornôs hardcore - é Rita Cadillac, que aparece pouco.

Os calouros, parece, têm tratamento melhor pouquinha coisa. A produção foi atrás dos gongados, dos que levaram o troféu abacaxi (a exceção é uma garota, que ganhou, mas cuja carreira não decolou, restando a ela cantar em karaokês - olha a decadência de novo). Os números musicais são extensos, desnecessariamente longos e parecem querer dar ao ex-calouro a chance de provar seu talento, um talento que eles não têm. A crueldade é tirar deles justamente o que deu sentido às suas vidas: eles foram gongados. A razão do seu 'sucesso' é um fracasso. Tentar 'minimizar' seu fracasso acaba por reduzir a biografia deles, acho eu.
Contraditoriamente, o filme merece ser visto. Uma série de depoimentos e trechos restaurados mostram que o Velho Guerreiro era um anarquista à toda prova. Seus figurinos irreverentes e absurdos combinavam direitinho com o time que se apresentava no programa. Simplesmente, todo mundo passou pelo Cassino do Chacrinha: de Roberto Carlos a Cazuza, de Alcione a Baby Consuelo, de Jerry Adriani a Ney Matogrosso. O filme faz de conta que Chacrinha não cobrava por essas apresentações - ele é tido como o criador do jabaculê, o 'extra' que gravadoras pagavam pra divulgar seu elenco. Falta expor as contradições do apresentador e até mesmo seus casos extra-conjugais passam batido, deixando no ar uma 'acusação' contra Clara Nunes.
Chacrinha misturava tudo, exibia o brega e o sofisticado de nossa música. Azucrinava os calouros desdentados, elegia o homem mais feio do Brasil (e os finalistas sorriam orgulhosos para as câmeras!) e bagunçava o coreto de qualquer artista. Num artigo para a Ilustrada, Hugo Possolo lembrou que o Chacrinha de ontem é o Faustão de hoje e definiu genialmente a diferença: Chacrinha era feira livre, Faustão é shopping center. A cirurgia plástica dos corpos chegou às idéias e a gente tem vergonha de mostrar as mil faces do Brasil - só vale a baiana gostosa e a pujança paulista... Por mais defeitos que o documentário de Nelson Hoineff tenha, merece ser visto - até porque desperta justamente essas discussões. Ou seja, perda de tempo não é.
Pra quem se interessou em ver "Dzi Croquettes", a Mostra vai reapresentá-lo esta semana. Consulte o site www.mostra.org.br.

domingo, 1 de novembro de 2009

Dia de todas as santas


Ninguém combinou nada. O documentário "Dzi Croquettes"nem tinha terminado e a platéia inteira começou a aplaudir com intensidade, com emoção. Eram aplausos sinceros, que certamente pareceram música aos ouvidos dos diretores Raphael Alvarez e Tatiana Issa. Eu estava na platéia do Cinesesc e só não aplaudi mais porque precisava enxugar as lágrimas, de vez em quando (no fundo, eu sou um sentimental, como canta Chico Buarque). Mas "Dzi Croquettes", o filme, merece os elogios e prêmios que conquistou no Festival do Rio. Na Mostra de São Paulo, ainda haverá uma sessão, nessa terça, 14 horas. Pena que poucos poderão assistir e entender um pouco mais do Brasil que temos ao nosso redor.

"Dzi Croquettes", o nome já diz, é um documentário sobre o grupo de atores-cantores-bailarinos que tomaram conta dos palcos brasileiros no começo dos anos 70. Estávamos no auge da ditadura militar e, sem que ninguém soubesse explicar como, aquele bando de homens vestidos de mulher, com peitos cabeludos e uma irreverência à toda prova, saíram de uma boatezinha na Zona Sul carioca para teatros do Brasil todo - até chegar em Paris e arrebanhar uma platéia que incluía Mick Jagger, Catherine Deneuve, Omar Shariff e a madrinha-mor do grupo, Liza Minneli (foi ela que conseguiu furar o bloqueio da imprensa francesa, levando uma platéia de celebridades ao show do grupo e dando o estopim da vitoriosa temporada européia).

Do grupo, faziam parte 13 homens - 8 deles já mortos, como o coreógrafo Lennie Dale. Mas Ciro Barcellos e Claudio Tovar continuam na ativa e dão lindos depoimentos. Aliás, os depoimentos são um show à parte no filme. Miele, Marilia e Sandra Pêra, Pedro Cardoso, Jorge Fernando, Ney Matogrsso, Cesar Camargo Mariano, Claudia Raia, um bando de franceses e até Liza Minneli falam de sua relação com o grupo e de como foram influenciados por eles.

Mas o segredo do filme não é enfileirar os depoimentos. É, desde o começo, localizar o surgimento do grupo na história do Brasil. Havia um regime militar, havia os atos institucionais e havia uma censura braba - ainda não havia nem Secos & Molhados, quando as Dzi Croquettes começaram a rebolar suas maquiagens malucas. Essa localização, aparentemente tão óbvia, é uma das pedras de toque do filme. Quem não viveu a época ou não conheceu o grupo - eu só conheci de ouvir falar, por exemplo - entende e se espanta com a ousadia deles.

O outro truque que eleva o filme é a maneira com que a co-diretora Tatiana Issa se coloca na história. Seu pai foi cenógrafo dos Dzi e ela cresceu acompanhando os ensaios dos "palhacinhos", pois era assim que a menina os via. É lindo. Ao partir do geral - a ditadura militar - para o particular - a relação de seu pai com o grupo, Tatiana ajuda o filme a se firmar na nossa mente e na nossa emoção.

A gente sai do cinema espantado com o grupo que não gravou disco, nem deixou DVDs - mas que influenciou toda uma geração que veio depois. E eu, particularmente, ficava espantado ao ver trechos de filmes em que Lennie Dale se apresentava com Elis Regina, sua grande amiga - foi ele, recém-importado de Nova York para as boates do Rio, que ensinou a gaúcha a cantar girando os braços; Lennie deu a Elis uma noção de corpo e de ocupação do palco que poucos artistas tinham. Elis, Ney, as Frenéticas, o besteirol - tudo está interligado, por mais estranho que possa parecer de vez em quando. Entender esse naco da nossa história recente é verdadeiramente emocionante.

E assistir ao filme num domingo de feriadão, dia de todos os santos, não deixou de ser uma homenagem às loucas do grupo, que deram à sexualidade outra pegada. Ô, como faz bem ver filme bom.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Oração pra Santa Apolônia


Só Deus e a Mônica, assistente do meu dentista, sabem o quanto eu peno naquela cadeira - e olha que o Ary é dos bons. Mas não tem jeito: o barulhinho da broca girando dentro da minha cabeça me deixa atordoado. Sentar na cadeira do dentista é o prenúncio de 60 lentíssimos minutos. Confesso tudo isso pra dizer que foi um verdadeiro conto de terror a história do menino de Brasília que teve todos os dentes extraídos por um açougueiro juramentado. Todos!
O rapaz tem problemas mentais, me parece - quer dizer, no fim da história quem tem problema mental mesmo é o dentista, mas continuemos - e, por isso, recebeu anestesia geral antes da extração de dois dentes. O trabalho devia estar uma moleza, porque o chamado profissional de odontologia se entusiasmou e passou a extrair um por um os dentes do menino. Esse cara - que trabalha num hospital público e dá aula em universidade - cometeu uma amputação. Não sei se o termo médico-legal é esse, mas na prática o que aconteceu foi isso: de uma hora pra outra, um menino de Brasília se viu sem nenhum dente. É como dormir bípede e acordar sem uma perna.
A última notícia que consegui do fato dizia que o dentista seria preso e indiciado. Outra, mais cedo, dava conta que o IML de Brasília reconhecia que não havia necessidade da cirurgia radical. Alguém tinha dúvida? E o Conselho Regional de Odontologia pedia pra preservarem o nome do carniceiro. Eu, se fosse dentista, exigiria a identificação do indivíduo - até pra não acharem que ele e eu frequentamos o mesmo clube.
E hoje, nada nos jornais e sites. A história morreu ali mesmo, enquanto o rapaz se esconde em casa, com vergonha dos dentes ausentes. Não sei detalhes, realmente, mas posso concluir que o tal rapaz é pobre. Se fosse, pelo menos, classe média, teria direito a um pouco mais de indignação dos meios de comunicação. Coitado, banguelo e anônimo, sem muitas portas onde bater - a não ser naquelas que querem explorar o sensacionalismo do caso, expondo suas gengivas de maneira pornográfica nos programas de TV. Também anônimo, até agora, continua o dentista - mas vejam como são as coisas: o anonimato protege o criminoso, mas não a vítima.
Graças a tipinhos assim é que a categoria dos dentistas é tão, digamos, temida. Ninguém brinca com dentista, ninguém entra no consultório só pra dar um alô e matar as saudades. Nem na ficção dentista marca muita presença. Você lembra de algum personagem de novela que fosse dentista? Aguardo colaborações, eu não lembro.
Em cinema, teve o dentista nazista vivido pelo Lawrence Olivier em "Maratona da Morte" - a cena em que ele torturava um jovem apavorado Dustin Hoffman é um clássico. Teve o dentista do "Procurando Nemo" e aquele outro, acho que "A Pequena Loja de Horrores", algo assim. Tem o personagem do Diogo Vilela em "Toma lá, dá cá", mas aquele programa é tão ruim, que nem merece ser lembrado.
E nem vou desenvolver minha teoria de que dentistas são péssimos ouvintes. Seja amigo de um dentista e faça o teste. Ele tá tão acostumado a falar para um coitado espremido e boquiaberto que não costuma dar muito espaço para as respostas. Mas isso é uma teoria minha, não tem muita base científica. Aliás, não tem nenhuma.
Só resta mesmo acender uma vela pra Santa Apolônia, que - viva o google - descobri ser a padroeira dos dentistas. Mas daí a retratarem a santa com um boticão é de um tremendo mau gosto. Prefiro continuar achando que Santa Apolônia é apenas o nome da principal estação ferroviária de Lisboa. É bem mais agradável.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Auto-merchan

Neste sábado, à meia-noite, será apresentada uma pequena peça de humor negro, de minha autoria: "Dois pra lá, dois pra cá", com Rachel Ripani e Alex Gruli, dirigidos por Flavio Faustinoni. Será na Tenda do Dramamix, no meio da Praça Roosevelt, durante mais uma Satyrianas, a grande festa de teatro que os grupos da praça promovem todo ano.
Vale a pena dar uma olhada na programação completa, que está no site www.satyros.com.br. Tem de tudo para todos. E quando não é de graça - como são as peças da tenda, gratuitésimas - é bem baratinho. Apareçam.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Frases da lua


Concordo com o Aldir Blanc: as frases e as manhãs são espontâneas, levantam do escuro e ninguém pode evitar. Mas tem hora que dá vontade de não ter que ouvir certas coisas... É o preço que se paga por não ser surdo e viver em sociedade, eu sei... Grandes eventos multiplicam por mil alguns chavões que me fazem hesitar entre manter na cara um sorriso de leite morno ou partir pra mais irrestrita ignorância. Um dos terrenos mais férteis é a Mostra de Cinema de São Paulo, com seus 100 filmes diários - cem! alguém consegue imaginar? Pode reparar: você sempre vai encontrar alguém que está saindo do quarto filme do dia a caminho acelerado do quinto... Se você ainda não viu nenhum - "Nenhum? Mas já é o se-gun-do dia!" -, a figura vai fazer questão de recomendar um filme, acrescentando com pausas dramáticas: "É im-per-dí-vel!"

Esse 'imperdível' me mata. Porque, quando você vai procurar na programação, as próximas sessões agendadas são quarta-feira, 13h15, e sexta, duas e meia da madrugada. Como saiu matéria na Folha, no Estadão e em todos os sites, os ingressos estão esgotadíssimos. E você fica com aquela sensação de ter perdido o filme da década, do século, do milênio. O antídoto está na próxima sessão de cinema, quando outro apressado vai recomendar outro filme, obviamente imperdível. Na Mostra de Cinema o adjetivo "imperdível" é que nem o "suculenta" para feijoada. Do botequim mais pé-sujo ao Fasano mais Fasano, toda feijoada é suculenta. Ô saco.

Outra frase que me tira do sério é sempre ouvida em exposição de artista consagrado. "Matisse Hoje", que ocupa a Pinacoteca até 2 de novembro, é uma dessas mostras que valem o sacrifício da fila - não muito demorada, pelo menos. Como atrai muita gente, atrai também muitos experts. Diante do trabalho que ilustra esse post (cujo nome é algo como "Nu cor de rosa", algo assim), dois rapazes de visual antenado lançaram um olhar enfadado: "Acho que vou começar a desenhar", disse um deles - uma frase aparentada de "Esses rabiscos até meu neto faz". Meu impulso foi tocar o ombro do rapaz e esclarecer, educadamente: "Não, não faz" ou "Então por que não faz?"

Também tive vontade de explicar pro rapaz de talento ignorado que Matisse não partiu daqueles traços - ele chegou àqueles traços. O artista que começou a engatinhar influenciado pelos impressionistas foi limpando seu trabalho, foi descobrindo a síntese mais absoluta, até desembarcar nos trabalhos em que tudo é uma silhueta colorida. Parece fácil, não é? Mas só porque o cara era bom.

É essa simplicidade que os artistas de qualquer área parecem buscar quando tateiam seus caminhos - na pintura, na fotografia, na literatura, no teatro... A simplicidade esconde um profundo mistério, justamente porque chega facilmente às pessoas - e esse é seu grande mérito.

É claro que não estraguei meu passeio batendo boca com ninguém. E até sorri de mãe e filha que discutiam diante de uma tela de Juan Gris, na mostra "Cubismo", também na Pinacoteca. Ambas atiraram o pintor espanhol às mais profundas trevas por conta da sombra de uma toalha de mesa, "muito mal feita", segundo elas. Foi engraçado. Dá vontade de parar e explicar, olha, cubismo, assim assado, coisa e tal... Mas, pensando bem, a mostra deveria ter alguns monitores... Deveria, né? Aproveita que a pessoa se dispôs a entrar num museu pra ver quadro pendurado... e dá uns toques. Pode até ser que as duas mulheres se mantivessem firmes em sua demolidora crítica... mas quem sabe elas não sairiam da Pinacoteca com o pobre do Juan Gris um pouquinho só em melhor conta?

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

O preto errado


O que foi mais chocante no caso da morte de Evandro João da Silva? O coordenador social do grupo Afroreggae morreu na madrugada de domingo, atacado por dois ladrões. Seria mais um caso de latrocínio na zona portuária do Rio, se uma viatura da Polícia Militar não tivesse passado no local. Seus ocupantes - o capitão Bizarro (parece piada, mas o nome é esse mesmo) e um cabo -, em vez de socorrer o ferido, foram atrás dos assaltantes. Mas não para prendê-los. Foram negociar com eles e, pelo jeito, a conversa foi boa, porque os policiais ficaram com o produto do roubo - e Evandro ficou na rua, a poucos metros dali, agonizando até morrer. Para azar dos PMs, a ação foi captada por câmeras de segurança e só por isso eles foram presos.

Policiais militares e câmeras de vigilância têm uma relação conturbada e não é de hoje. Quem se lembra de um caso de anos atrás, em que PMs eram filmados espancando pobres numa favela? Foi São Paulo ou Rio? Já não lembro desse detalhe. Diante da violência, a geografia não passa de detalhe - e só serve para mostrar que a truculência espalhou-se como um vírus.

Para piorar a situação do capitão Bizarro e seu subordinado, Evandro não era o que os boletins de ocorrência chamam de "populares" - anônimos e amorfos seres humanos, que não pecam por serem "elementos" (os maus) mas não chegam à invejável categoria de "cidadãos" (brancos, ricos). Pelas fotos que vi, Evandro nem mesmo era negro - e alguns vão estranhar o título do post. Mas ele foi o preto errado da vez.

Evandro, pelo lugar em que estava e talvez pelo jeito com que se vestia, enquadrava-se naquele verso de Caetano Veloso, que se refere aos "pretos de tão pobres". Evandro não era rico, nem famoso. Andava a pé - logo, um pobre. Dentro da lógica do capitão Bizarro, era alguém indigno de ser sequer olhado por um policial. Mas o capitão se ferrou: o Afroreggae é formado por aquela categoria que espanta, os pobres e pretos que reivindicam seus direitos. Mas, infelizmente, a lei das cotas pegou Evandro na rasteira - sua cota era a de quem paga mico em hospital público, em trem lotado e não dispõe de segurança pública nem mesmo quando a viatura passa segundos depois de ele ter levado um tiro.
Bizarro não é somente o capitão. Bizarra também é a situação vivida pelo Rio de Janeiro. Ainda deve ter confete na Avenida Atlântica, confete que sobrou das comemorações pela escolha da cidade como sede dos jogos olímpicos de 2016. Já tem uma tonelada de economistas fazendo os cálculos sobre quanto, onde e como aplicar o dinheiro necessário pra realização dos jogos - e é bom que façam direito e bonito diante do mundo.
Mas é insólito pensar que a mesma cidade vive desde sábado uma situação de filme-catástrofe. Chefes do tráfico derrubaram um helicóptero da PM e teve bombeiro que morreu tentando salvar os colegas, porque não tinha roupa corta-fogo. Faltou dinheiro pra isso.
No dia seguinte, novas cenas de violência. Um morto apareceu enfiado num carrinho de supermercado, no sopé de um dos morros. Até ontem, o morto era um zé-ninguém, de quem não se sabia o nome. Recado dos traficantes: pobre, pra nós, é mercadoria. Na madrugada de domingo, o capitão Bizarro e seu cabo concordaram: "Pra nós também". A PM deu o troco, com moedas manchadas pelo sangue de Evandro.

domingo, 18 de outubro de 2009

Lembranças lusas


Portugal me comove. Podem falar o que for - país de passado colonialista e predador, racista, etc (e com algumas críticas eu concordo) - mas o fato é que Portugal me deixa comovido como o diabo. Eles, os portugueses, com seu jeito rude e muitas vezes abrutalhado, carregam uma melancolia transparente, mesclada às letras melodramáticas dos fados, a um humor negrérrimo e às expressões do dia-a-dia, com o uso incansável do diminutivo... "Ai, o pobrezito!"...

Portugal voltou ao noticiário, com os lusitanos mordendo as canelas da atriz Maitê Proença. Num momento infeliz, a atriz apareceu num vídeo tirando sarro da propalada falta de inteligência lusa. Maitê foi deselegante, mas os que a criticaram por aqui foram hipócritas. Rir da lógica portuguesa é um esporte tão popular entre nós quanto falar mal de argentinos - mas como foi Maitê que deu a cara a tapa, joga pedra na Maitê. Atenção, eu não estou defendendo a atriz, longe disso - mas questionando os críticos. Quem nunca fez piada com portugueses que atire o primeiro tremoço.

Em campos mais tranquilos, Portugal voltou às minhas lembranças, enquanto lia a deliciosa novela de Luís Ruffato, "Estive em Lisboa e lembrei de você". O livro, com menos de 100 páginas, é uma delícia. Conta a história de Sérgio, um mineirinho de Cataguases que, pelas voltas da vida, acaba num hoteleco de Lisboa. Seus desencontros amorosos com uma prostituta, seus sonhos de vencer na vida trabalhando como subempregado... e sua resistência ao vício do cigarro... Vale a pena ler o novo livro de Ruffato, um autor que manuseia as palavras com prazer e transmite esse prazer a quem lê. Cada página do livro me trazia Lisboa à memória - e olhem que eu, bom paulistano que sou, sou o maior fã do Porto...


Embalado no livro, acabei indo ver "Fados", o novo filme de Carlos Saura. Será um documentário? Não, não é. Ficção, também não é. É um filme de Saura, para o bem e para o mal. É bom, porque faz desfilar diante de nós uma série imensa de cantores influenciados pelo ritmo português - um ritmo que, para minha surpresa, nasceu no século 19. Ou seja, é relativamente novo. E as vozes, as letras... ah, só mesmo em Portugal se pode ouvir um rap influenciado pelo fado. E só mesmo lá uma letra de rap usa a segunda pessoa de forma correta! (E vou defender minha tese: o rap foi feito para a prosódia lusitana - eles comem tantas vogais ao falar que, quando cantam rap, é como se estivessem a falar normalmente).


O mal do filme é o mesmo que atingia "O mistério do samba", o musical que Marisa Monte produziu sobre a escola de samba Portela: se você não conhece minimamente aquele universo, entra do filme mudo e sai calado, sem entender pissiricas. Falta didatismo ao filme, para explicar quem são aqueles cantores e porque Caetano Veloso, Chico Buarque, Toni Garrido e até a mexicana Lila Downs, ótima, estão fazendo ali. Há várias nuances no fado e ele também influenciou vários estilos musicais em países de língua lusa: Cabo Verde e Moçambique aparecem em belos números musicais, mas quem entende?


O problema de"Fados" é ser um filme de Saura - e Saura, senhoras e senhores, enferrujou. Herança de "Carmem" e outros musicais 'saurianos', os balés que enfeitam os números musicais em "Fados" são cafonas até o limite do aceitável. Aliás, eles passam fácil esse limite e batem o mau gosto no número de Lila Downs. Ao mesmo tempo, Saura mostra que continua o bom e velho esquerdista d'antanho. O número que mostra Chico Buarque cantando "Fado Tropical" - que ele compôs para a trilha da peça Calabar - mistura a imagem do cantor a cenas da Revolução dos Cravos. É de chorar, de tão lindo.

Também emociona o número que Carlos do Carmo, um dos maiores fadistas da terrinha, canta "Um homem na cidade" entre imagens lindas de sua Lisboa natal (Carlos do Carmo era o 'fadista da esquerda', enquanto Amália, a grande dama, era a 'fadista da direita'. O tempo se encarregou de limar essas bobagens). Amália, aliás, é lindamente homenageada no filme, que a mostra ensaiando um número e, em seguida, mostra Caetano Veloso cantando "Estranha forma de vida", um dos maiores sucessos da cantora (cuja casa de Lisboa, hoje transformada em Museu, está na foto que ilustra esse post).

Mesmo com defeitos, a gente sai do cinema com vontade de ouvir mais fados - os da nova sensação Mariza, uma moçambicana criada em Lisboa e que tem os cabelos curtinhos, provocantes, a emoldurar um vozeirão fantástico. Ou daqueles cantores que se apresentam numa casa de fados simples, cada um se levantando e se exibindo, numa espécie de desafio sem competição...

Isso me fez lembrar uma noite em Coimbra, quando - ao lado de alguns jornalistas - fomos parar numa casa de fados alternativa. Era uma birosca frequentada só por estudantes (Coimbra...), com fumaça de cigarro até dizer chega, e onde ouvi os melhores fados da minha vida. Ceça Brito, do Recife, estava comigo e deve lembrar dessa linda noitada de fados...

Voltando... A gente sai do filme do Saura (mesmo que se coçando com raiva dos balés), sentindo vontade de abrir um vinho Dão, mandar descer uns bolinhos de bacalhau e ler alguma cousa do Eça... Sejamos patriotas - mantenhamos o Dão, os bolinhos e abramos o livro do Ruffato. Ó pá, isto é muito giro!


sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Fernanda, 80 anos hoje



Conheci Fernanda Montenegro em 1973. Quem nos apresentou foi Medéia, numa adaptação da tragédia, assinada por Oduvaldo Vianna Filho - e que, alguns anos depois, viraria "Gota d´Água", com as deslumbrantes músicas de Chico Buarque. Devo ser sincero: na época não entendi muita coisa daquele caso especial, a não ser que a mulher enciumada matava os filhos e a nova mulher do ex-marido... Por volta de 1976-77, fui ao cinema assistir "Tudo Bem", uma comédia dirigida por Arnaldo Jabor (e, ao lado de "Toda Nudez será Castigada", um de seus melhores filmes). Me apaixonei de vez por aquela atriz ensandecida, que delirava com as traições imaginárias do marido e tratava os pedreiros com uma "bondade classe média" apavorante.


Desde aquela época já estive com Fernanda em várias situações. Ela era a estilista apaixonada por uma jovem Renata Sorrah, em "As lágrimas amargas de Petra von Kant"... Era a madrasta enlouquecida de amor por um ainda-sem-plástica Edson Celulari em "Fedra"... Era a dona de casa trocada por uma universitária, em "É...", de Millor Fernandes, ou a mulher soterrada na lama em uma peça de Samuel Beckett... Era a prima maluca de Paulo Autran na novela "Guerra dos Sexos"... Era a Zulmida de "A Falecida", a Dora de "Central do Brasil" e a Romana de "Eles não usam black-tie". E era também Adélia Prado, no monólogo "Dona Doida", um recital de poemas da autora mineira.
Não me lembro, nunca, de ter saído menos que hipnotizado por Fernanda. Mesmo quando não gosto muito, como o "Viver sem tempos mortos", em que ela vive Simone de Beauvoir, não posso dizer que ela estava fora de contexto. Fernanda cria o contexto. Cria o mundo.
O prazer da minha companhia, mesmo, ela só desfrutou em duas fugazes ocasiões. Durante a maratona de entrevistas para o lançamento de "Central do Brasil", Fernanda saiu do Espaço Unibanco e deu de cara com uma fila de gente comprando ingressos para outro filme. Era mais que um encontro, era um esbarrão inevitável. Ela encarou a todos nós e cumprimentou um por um, pegando na mão e tudo. Dizia algo do tipo "como vai, tudo bem, que legal que você está indo ao cinema"...
A outra vez foi quando, repórter da Folha, eu fazia uma matéria sobre cultivo de flores... sei lá porque, aquelas pautas da Folha... mas resolvi que Fernanda poderia dizer alguma coisa. Fui direto ao teatro onde ela estava em cartaz (o Cultura Artística, e ela fazia "Fedra") e, sem passar por assessor nem nada, pedi pra ouvi-la, expliquei o assunto ao porteiro e, depois de um tempo, recebi autorização pra subir ao camarim. Ela estava sentada, descansando antes do espetáculo. Me viu parado à porta, meio besta, e sorriu: "Você é o rapaz das flores?" Foram cinco minutos de conversa, da qual obviamente não lembro patavinas.
De resto, só conheço o que todo mundo conhece. E guardo na memória algumas cenas... Fernanda e Guarnieri catando feijão na mesa, em "Eles não usam black-tie" - fala sério, poucas cenas do cinema nacional são tão emocionantes. Fernanda recitando um poema de Adélia em que fala do silêncio cúmplice de um casal limpando peixes de madrugada... Fernanda ressuscitando o desejo pela virilidade de Othon Bastos em "Central do Brasil"... Fernanda e Paulo Autran despejando o café da manhã inteiro um no outro, numa tomada única e perfeita...
Fernanda, aos 80 anos, corre o risco de virar unanimidade. Uns, para criticar, falam que ela adora o dinheirinho do cachê, como se isso fosse pecado. Caramba, a mulher é o quê? Atriz. Vive do quê? De representar. Pra isso, precisa ser paga, pois não? Ah, esse nosso pudor católico em 'rejeitar' dinheiro...
O que me importa é assistir Fernanda em cena, admirar sua inflexão de voz e seus gestos precisos... É entender pelo olhar a alma do personagem... Não é preciso teorizar nem buscar explicações sociológicas: o prazer de um trabalho bem feito e que nos faz reconhecer o humano que existe no outro... Pra mim, dona Fernanda é isso.
Agora, fico sabendo que minha amiga Neusa Barbosa lança dia 28 o seu livro sobre Fernanda Montenegro. É um daqueles depoimentos da coleção Aplauso, da Imprensa Oficial - um catálogo que mistura gente interessante com outros que, francamente, não valem dois parágrafos... mas deixa pra lá... O que importa é que Neusinha colheu um depoimento de Fernandona ao longo de vários meses e me deixou com água na boca... Como pessoas adultas, amigos há mais de muitos anos, Neusinha e eu concordamos em várias coisas e, mais importante, discordamos em outras... Mas carregamos uma admiração comum por dona Fernanda (e pelo Chico, também...).
Tudo isso, só pra dizer "feliz aniversário, dona Fernanda! A senhora é o máximo!"
E tem mais uma coisa: sim, esse post é uma babação de ovo, descarada e assumida. São as delícias da blogosfera...

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Cartiê, filósofo


Menos de um segundo após o clique, a placidez da água, na foto ao lado, não existiria mais. Remexida, viraria lama talvez e o dono do sapato xingaria o dia todo a sujeira espalhada pela perna. Mas o fotógrafo francês Henri Cartier-Bresson (1908-2004) captou o segundo anterior ao mau humor, à lama e ao caos. E é esse momento eternizado que figura na exposição de 133 trabalhos de Bresson - ou "do Cartiê", como diz a ascensorista do Sesc Pinheiros. Não tem desculpa pra falta de grana, a entrada é gratuita.´

É uma ótima exposição, não só pelos trabalhos do Cartiê (gostei), um mestre no uso da luz, sempre em preto-e-branco, um captador de instantes mágicos, de olhares agudos, de gestos jogados. Não vou me estender em análises - tem gente muito melhor que eu pra isso, a começar do curador da exposição, meu bom Eder Chiodetto. Mas se você prestar atenção vai ver um delicioso jogo de linhas retas, curvas e zigue-zagues, que o Cartiê enxergava na "simples" imagem de uma escadaria em Nova York ou de um beco num vilarejo grego.

O melhor da exposição é que você sai dela pensando na vida - não no sentido depressivo, pelo contrário. Também não sai rindo feito uma poliana-sem-neurônio, que os tempos não estão pra isso. Sai pensando, o que já é lucro. Em exposições de fotos antigas - e nessa há várias dos anos 30 - eu sempre penso que nenhum daqueles retratados está mais entre nós. Até o menininho fofo já deve ter cumprido sua trajetória e partiu desta pra melhor. E, no entanto, estão todos ali, vivinhos da silva, me encarando com olhos intensos. E há quem diga que fotografia não é arte!
Cartiê considerava-se um vampiro, pois buscava apreender a essência do que fotografava - seus retratos, no segundo andar, chegam a perturbar. E outros, como os que ele fez do escultor Alberto Giacommetti fazem rir. A obra de Giacommetti é marcada pelas figuras esguias e longilíneas - e os retratos que Cartiê fez do Alberto (ele chama o escultor assim num vídeo, eu ouvi) mostram que escultor e escultura tinham o mesmíssimo porte. Gostei de ouvi-lo falar nesse vampirismo artístico: eu também me sinto assim, quando ouço frases e conversas que vão me inspirar em cenas, diálogos, crônicas... Nossa antena capta e, muitas vezes, demora anos para reproduzir - mas fica tudo guardado em nós.
Voltemos ao Cartiê. Cartiê também dizia que a foto é como um tiro e, ao mesmo tempo, uma briga com a morte. Ao captar para sempre um instante, o fotógrafo dribla a definitiva ausência, ignora a destruição do tempo, eterniza a fração de segundo. Ele diz muito mais coisas - e coisas muito interessantes - no video exibido no andar térreo. Confesso que, em geral, eu pulo a parte do vídeo. É sempre uma babação de ovo besta em torno do artista ou, pior, uma análise indecifrável do trabalho, pior que os textos que 'explicam' os trabalhos. (Eu sempre acho que texto de exposição é escrito pelo mesmo sujeito que escreve manual de eletrodoméstico: não entendo patavinas). É bom dizer que os textos do Chiodetto são claros e, por isso, profundos. Só os incompetentes são indecifráveis, a profundidade é simples.
No caso do Cartiê, veja só, o video é uma delícia. Fiquei me perguntando se a sabedoria daquele senhorzinho de 80 anos só apareceu por volta dos 75 ou se ele já era sábio aos 35. De todo modo, o olhar inquieto de Cartiê, impaciente com as perguntas, ensina muito a quem acha que há resposta para tudo. Cartiê, que dominou a fotografia e, depois dos 70, começou a desenhar - ele fala coisas lindas sobre isso, no vídeo - ensina que se conformar é o pior dos pecados (e o único que a igreja não condena...).
Até a biografia estampada numa parede é curiosa. Lá pelas tantas, você percebe que a turma do Cartiê era qualquer coisa de espantosa. Ele fez um livro e quem fez a capa? Matisse. E assim ia, só gente que hoje recheia catálogo de museu. E todos vivendo em Paris, o que só acrescenta mais charme à mistura. Dá uma inveja...
p.s. Não perca o terceiro andar, "Bressonianas", com os trabalhos de sete brasileiros influenciados pelo mestre francês: Flávio Damm, Carlos Moreira, Cristiano Mascaro, Orlando Azevedo, Juan Esteves, Marcelo Buainain e Tuca Vieira. Chega a ser melhor.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Dá licença?


Tem acontecido com frequência cada vez maior. Este fim de semana, por exemplo. Sentado numa poltrona do Espaço Unibanco, à espera do filme, não reparei que um rapaz tentava entrar na fileira. O que ele fez? Começou a empurrar minha perna até que eu desse passagem. O outro, que se sentou ao lado, não teve o menor constrangimento em tirar do bolso um celular do tamanho de uma caixa de sapato e ver a hora ou mensagem ou... Ok, isso pode ser comum, mas eu não me acostumo com essas grosserias. Ainda mais no meio de um filme como "Bastardos Inglórios". O escalpo é o mínimo que um sujeito desses - o do celular - merece.

Nos ônibus, as pessoas vão passando, sem pedir licença. Na rua, perguntam as horas e, depois da resposta, não agradecem. Te empurram e não pedem desculpas. Várias vezes já me senti pressionado numa calçada e não era assédio nem assalto: era alguém querendo passar e não conseguia pedir licença! Alguém, mais antenado com a modernidade, bem que poderia tentar me explicar o que fizeram com uma expressão tão simples como "dá licença?". Eu confesso, não sei.


E sinto falta dessa gentileza. Não precisa ser nada meloso, não. Formalidade demais é chato. Mas podia ser educado, já bastava. Quer um exemplo? Quando saio de manhã pra ir fazer ginástica... posso encontrar gente no elevador... um simples bom dia já tá bom. Às vezes, na rua mesmo. Desconhecidos que 'cometem' pequenos gestos educados - como dar passagem a alguém mais velho e a pessoa olhar de volta e agradecer com um sorrisinho. Nem precisa falar. Só olhar e sorrir.

Parece (e deve ser) pedir demais. Mas é o único jeito de não me sentir tão fora de moda como uma bicicleta antiga.
p.s. Por falar em "Bastardos Inglórios", o filme é impressionante. Tarantino cresceu e domina a linguagem do silêncio como pouquíssimos. Neste filme, as pausas e silêncios são de uma eloquência avassaladora.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Obama é o cara... rico





Uma semana depois de ver sua Chicago querida perder os Jogos Olímpicos para Buenos Aires, isto é, o Rio de Janeiro (enfim, a capital do Brasil), o presidente Barack Obama deu o troco. Ou melhor, recebeu o cheque. Acordou hoje com a notícia de que tinha ganho o Prêmio Nobel da Paz por seus esforços no desarmamento nuclear. Não é nada, não é nada, o cofrinho da família Obama estufou: o Nobel está em torno de 1,4 milhão de dólares... Lula deve estar com um bico des'tamanho.

Não vou entrar no mérito da premiação - mas, cá entre nós, essa comissão do Nobel é muito esquisita. É muito difícil eles premiarem alguém que a gente conheça - eu confesso, nunca tinha ouvido falar dessa escritora que ganhou o Nobel de Literatura. Os cientistas, então, nem se fala. Às vezes, eu penso que a comissão premiadora é formada só por jornalistas da Ilutrada e presidida pelo Ed Motta - eles nunca ouvem o que todo ouve, nunca lêem o que todo mundo lê: sempre conhecem uma cantora pop da Eslováquia, uma banda pop de Bucareste e um escritor fenomenal, autor de um único livro publicado em edição caseira na Ilha de Páscoa, sem tradução pra nenhuma língua cristã.

Francamente, eu tenho uma alma de boa noite, cinderela - o programa, não o sonífero - e gosto mais de ver darem o prêmio pra algum pobre coitado da Zâmbia do que pro homem que ocupa, dizem, o cargo mais poderoso do mundo. Posso estar totalmente enganado, claro, mas premiar o presidente dos Estados Unidos é uma cópia espantosamente ampliada da eleição do Fernando Collor pra quialquer academia de letras. Certamente, não era isso que o Alfred Nobel original, da fotinho aí em cima, planejava quando criou seu prêmio.

Engraçado mesmo seria que Barack, o boa-praça, fizesse aquilo que todo mundo diz que faria se acordasse com 1 milhão de dólares na conta: desse uma grandiosa banana pro patrão, catasse a patroa e a molecada e fosse saracotear pelo mundo. Já imaginaram o Barack chutando a porta da Casa Branca e cantando: "Ô Michelle! Acertei no milhar! Ganhei 2o mil contos, não vou mais trabalhar!" Seria sensacional, a ordem mundial ficaria de ponta-cabeça, mas quem acordaria do sonho - ao contrário da música - era a gente...








sábado, 3 de outubro de 2009

Minha professora de espanhol


No momento em que escrevo este post, a cantora argentina Mercedes Sosa pode ter morrido. Até ontem, estava muito mal numa UTI e tinha recebido até a extrema-unção. Tem, ou tinha, 74 anos e, num tempo em que Oscar Niemeyer enfrenta mesas de cirurgia aos 101 e dona Canô só falta lutar capoeira aos 102, Mercedes era uma menina-moça.

Pode ser que, aos olhos de hoje, Mercedes Sosa seja uma cantora gorda, de vozeirão dramático, atracada a um tambor e enrolada num poncho que seria peça de museu até em Visconde de Mauá. Mas para quem, como eu, entrou no mundo da música pela porta do show "Falso Brilhante", Mercedes Sosa é - no mínimo - uma lembrança emocionante.

Em 1976, depois de assistir "Falso Brilhante", o show que mudou duas vidas, a da Elis e a minha, comecei a me interessar por tudo quanto era música "bacana" - no meu caso, qualquer música que não tocasse no Barros de Alencar e nem fosse algum baião do Luiz Gonzaga (que eu adoro, mas que ouvi toda a infância, criado numa família de migrantes pernambucanos). No show e no disco, Elis cantava "Gracias a la Vida" e "Los Hermanos", ambas do repertório de uma cantora argentina, de quem nunca tinha ouvido falar: Mercedes Sosa. Vinham juntos também nomes de sonoridade estranha, como Violeta Parra, Victor Jara e Atahualpa Yupanqui, todos grandes poetas e compositores latinos.

Pouco tempo depois, a própria Mercedes veio fazer show no Brasil - no ginásio do Ibirapuera, com participação de Milton Nascimento e Chico Buarque, salvo engano. Na época, eu trabalhava como menor estagiário no Banco do Brasil e a moçada que era escriturária - antenadíssima - me pediu pra comprar os ingressos pra todos na Galeria Prestes Maia. Eu não poderia fazer serviços externos, era a regra. Mas - desde cedo uma simpatia só - quebrei o galho. Estimulou a chantagem: se eu fosse, eles se cotizavam e pagavam o meu ingresso. Fui sem fazer muita idéia do que ia assistir.

Na segunda metade dos anos 70, muitos jovens se engajaram na resistência à ditadura sem necessariamente pegar em armas ou assaltar bancos. Era uma resistência por atitude, por pequenos gestos, por movimentos mínimos que acabaram ajudando a minar o poder militar. Era o mais difícil, minimizar esse poder no dia a dia, derrubar o ditador que havia nas pequenas autoridades - o bedel, o pai, o tio, o professor, o chefe.

Isto tudo é, obviamente, a visão quase ingênua de um menino de 15, 16 anos. Mas naqueles tempos, pra mim, cantar "Gracias a la Vida" era resistir à ditadura. Descobrir que havia hermanos do outro lado do muro, tão ou mais fodidos que nós, era uma maneira de lutar. Lembro do primeiro chileno que vi de perto, um rapaz bonito, fugitivo da guerrilha de lá, escondido na casa de um amigo no Parque Edu Chaves. Lembro dele escutando a versão de Elis Regina para "Gracias a la Vida". "No es tan alegre, pero ella canta muy bien. Tiene un acento de Chile". Havia sotaques, veja só.

Todas essas lembranças se misturam ao noticiário da agonia de Mercedes Sosa. Procuro na estante um CD dela, tenho dois. Ouço um dedicado ao repertório de Violeta Parra, uma das maiores - se não a maior - compositora chilena. É dela "Gracias a la Vida" e "Volver a los 17", duas canções de amor transformadas em hinos revolucionários... ("Volver" foi escrita quando Violeta, já cinquentona, se apaixonou loucamente por um adolescente... O amor a rejuvenescia e ela transformou isso em música, perfeita para embalar as paixões de adolescentes que sonhavam ganhar o mundo).No CD de Mercedes tem também "La carta", essa sim uma canção de levante armado, sobre a morte de um jovem rebelde... Linda, linda...

Depois, mais taludinho, descobri outras maravilhosas vozes argentinas - Carlos Gardel, Susana Rinaldi... Mas os anos de formação, aqueles que se transformam em filmes, livros e peças nas mãos talentosas de bons artistas - os meus anos de formação tiveram Mercedes e Elis (e Nara, mas aí é outro lance) como trilha sonora. Com os discos de Mercedes e Susana Rinaldi aprendi a falar espanhol, com um vocabulário até que bacaninha. É triste e difícil imaginar que pulmões em colapso tenham sufocado aquela voz tão forte...Ao mesmo tempo é lindo saber que essa voz continuará iluminada, dando gracias a la vida.
P.S. Mercedes Sosa morreu hoje, domingo, pela manhã.