O que foi mais chocante no caso da morte de Evandro João da Silva? O coordenador social do grupo Afroreggae morreu na madrugada de domingo, atacado por dois ladrões. Seria mais um caso de latrocínio na zona portuária do Rio, se uma viatura da Polícia Militar não tivesse passado no local. Seus ocupantes - o capitão Bizarro (parece piada, mas o nome é esse mesmo) e um cabo -, em vez de socorrer o ferido, foram atrás dos assaltantes. Mas não para prendê-los. Foram negociar com eles e, pelo jeito, a conversa foi boa, porque os policiais ficaram com o produto do roubo - e Evandro ficou na rua, a poucos metros dali, agonizando até morrer. Para azar dos PMs, a ação foi captada por câmeras de segurança e só por isso eles foram presos.
Policiais militares e câmeras de vigilância têm uma relação conturbada e não é de hoje. Quem se lembra de um caso de anos atrás, em que PMs eram filmados espancando pobres numa favela? Foi São Paulo ou Rio? Já não lembro desse detalhe. Diante da violência, a geografia não passa de detalhe - e só serve para mostrar que a truculência espalhou-se como um vírus.
Para piorar a situação do capitão Bizarro e seu subordinado, Evandro não era o que os boletins de ocorrência chamam de "populares" - anônimos e amorfos seres humanos, que não pecam por serem "elementos" (os maus) mas não chegam à invejável categoria de "cidadãos" (brancos, ricos). Pelas fotos que vi, Evandro nem mesmo era negro - e alguns vão estranhar o título do post. Mas ele foi o preto errado da vez.
Evandro, pelo lugar em que estava e talvez pelo jeito com que se vestia, enquadrava-se naquele verso de Caetano Veloso, que se refere aos "pretos de tão pobres". Evandro não era rico, nem famoso. Andava a pé - logo, um pobre. Dentro da lógica do capitão Bizarro, era alguém indigno de ser sequer olhado por um policial. Mas o capitão se ferrou: o Afroreggae é formado por aquela categoria que espanta, os pobres e pretos que reivindicam seus direitos. Mas, infelizmente, a lei das cotas pegou Evandro na rasteira - sua cota era a de quem paga mico em hospital público, em trem lotado e não dispõe de segurança pública nem mesmo quando a viatura passa segundos depois de ele ter levado um tiro.
Bizarro não é somente o capitão. Bizarra também é a situação vivida pelo Rio de Janeiro. Ainda deve ter confete na Avenida Atlântica, confete que sobrou das comemorações pela escolha da cidade como sede dos jogos olímpicos de 2016. Já tem uma tonelada de economistas fazendo os cálculos sobre quanto, onde e como aplicar o dinheiro necessário pra realização dos jogos - e é bom que façam direito e bonito diante do mundo.
Mas é insólito pensar que a mesma cidade vive desde sábado uma situação de filme-catástrofe. Chefes do tráfico derrubaram um helicóptero da PM e teve bombeiro que morreu tentando salvar os colegas, porque não tinha roupa corta-fogo. Faltou dinheiro pra isso.
No dia seguinte, novas cenas de violência. Um morto apareceu enfiado num carrinho de supermercado, no sopé de um dos morros. Até ontem, o morto era um zé-ninguém, de quem não se sabia o nome. Recado dos traficantes: pobre, pra nós, é mercadoria. Na madrugada de domingo, o capitão Bizarro e seu cabo concordaram: "Pra nós também". A PM deu o troco, com moedas manchadas pelo sangue de Evandro.
Não tenho mais energia para ficar indignada, faço isso desde que nasci, sempre sofri com a injustiça e a maldade humanas. Quandos se fala em violência urbana então, parece caso perdido. Desde que li Plinio Marcos nunca mais fui a amesma. Vou me dar o direito de passar diretametne para a fase do "passou o efeito da noticia e caiu no esquecimento". Até que venha outra.
ResponderExcluirSei não, Ester. A capacidade de se indignar faz parte da vida. Perder isso é entregar os pontos, em todos os sentidos. Prefiro virar um velhote ranheta, dos que reclamam seus direitos, até o fim.
ResponderExcluirE o coração do cara bateu por 50 minutos após o tiro!! E a PM não fez nada!! Caramba, onde vamos parar???
ResponderExcluirAh, agora, NESSE PONTO, eu concordo com a Ester. A gente vai parar no próximo caso escabroso. E depois em outro e mais outro.
ResponderExcluirBom texto Mário, pena que não se lê na grande imprensa comentários como os seus. Deviam forçar os jornalistas de 13 anos (de idade física e mengtal) que trabalham no estadão, na Folha e nas revistas semanais a ler textos como os seus para ver se aprendem a escrever e adquirem noções de cidadania....
ResponderExcluirO fato que vc se refere no início do texto aconteceu na chamada Favela Naval (o nome é até bonito), em Diadema.
E não pensem que essa tragédia é apenas carioca. Aqui também em SP acontecem casos escabrosos, mas que não são noticiados pela imprensa paulistana. E você sabe qual é a razão, não é mesmo? Por isso que os jornalistas atuais são contratados aos 13 anos de idade, porque nessa fase só pensam em videogame, roupa bonita e muita punheta.... Será que é por isso que eles têm as mãos cabeludas?
Vitinha, aos 13 anos eu confesso que não raciocinava tão metodicamente... Vamos dar uma chance pra meninada (ainda mais, pq é a única opção... rs).
ResponderExcluirFavela Naval, é verdade! Vamos ter de colocar de novo aquele adesivo "Sorria, você está sendo filmado" pro caso da PM fazer blitz...
Mário, ótimo texto, posso usá-lo em sala para uma aula sobre "direitos humanos"?.bjs. edi
ResponderExcluirEdi, vc me deixa muito honrado. Pode, sim. Cita o blog... rs...
ResponderExcluiroi Mario:
ResponderExcluireu não quero perder minha capacidade de me indignar!
Já cansei de ouvir falar de casos como esse, mas ainda assim me arrepiam os detalhes - ignorar o cara agonizando bem ali, ao lado, para negociar uma jaqueta, um tênis, nem interessa o que era.
Esse Bizarro, o nome diz tudo. Ser humano bizarro, profissional idem. Bizarra, mais ainda, a chefia que contrata um cara desses e nem sabe o que ele anda (não) fazendo. E o cara é capitão!
Fiquei até pensando se não tinha sido crime encomendado, pra parecer assalto. O Afroreggae, pelo que faz, deve incomodar polícia e traficantes de vez em quando. Ainda mais que tem projeção internacional...
Mas, sei lá. Pode ser "apenas" mais um assalto na Cidade Maravilhosa, que fica aqui bem perto.
Mas vou continuar me chocando e reclamando. Senão, acho que vai ser pior ainda...
bj
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ResponderExcluirNão sou insensível ao sofrimento humano,só não quero mais me emocionar assistindo Jornal Nacional, acho válido quem quer seja se manifestar, como fez o Mário e outros aqui no blog, estão no seu direito, sem dúvida.
ResponderExcluirGostaria que soubessem que eu faço doações para o Médicos sem Fronteiras, convido a todos a fazerem o mesmo, para que eles ajudem a populações de lugares onde não há nem estado organizado, onde ter um estado como o brasileiro já seria um luxo.
E a prestar atenção em outra causa. Estou muito sensibilizada com a defesa dos animais. Se o ser humano é tratado como é imagine os bichos, ainda mais indefesos. Vide a Globo explorar um macaco, sem o menor pudor, na novela das sete, que raiva!
Do meu jeito, continuo na luta por um mundo melhor e mais justo,
Oi Mário, obrigada, além de citar o blog, também os devidos elogios que merece. Edi
ResponderExcluirA gente não escolhe com o que se indignar...Os fatos vão nos abatendo como tiros rápidos em que não dá tempo nem para respirar...Precisamos, devemos e temos a obrigação moral de nos indignarmos, de gritarmos aos berros: Você viu o que aconteceu??? É o mínimo que podemos fazer, estes berros num passado bem recente surtiram efeito....gritamos contra a ditadura...gritamos contra as eleições indiretas...gritamos contra a repressão aos movimentos sociais, contra a falta de liberdade na imprensa e porque agora, que estamos na nossa idade madura vamos parar de gritar...Ainda não cansei não!!! e não vou me cansar nunca. Não me sobrou apenas um fiapo de sentimento, sobraram muitos e estou aqui com a garganta ardendo de tanto gritar e quero que as pessoas se lembrem de mim como aquele que incomodava, que apontava, que vivia reclamando e que por fim, que vivia gritando...
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