quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Jingoubéus

Não. Eu não esqueci do blog.
Falta de tempo, correria, outros afazeres.
Prometo retomar em breve,

Por enquanto, um muito feliz natal pra todo mundo.


segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Dor nas costas


Quando a cabeça doi, toma-se uma aspirina. Quando é o dente, procura-se o dentista. Mas, quando são as costas que doem, toda a esperança que você poderia ter num mundo melhor e ensolarado se esvai. A dor nas costas tira a gente do eixo e nos obriga, impiedosa, a considerar a passagem inexorável do tempo como uma maldição. Pode reparar: ouvido, cabeça, estômago, dente e panturrilha, quando doem, é chato. Costas, quando doem, indicam envelhecimento galopante.

Pior ainda, a dor nas costas nos força a achar um culpado. Se não é uma outra pessoa, é a sua própria consciência que pergunta: "Que movimento brusco você fez pra causar isso? " Costas nunca doem do nada. E mesmo sem querer, lá está você olhando o vazio e repisando todos os movimentos nos últimos quatro dias. O diacho é que sempre se acha um possível culpado.

A dor nas costas deve ser o incômodo mais judaico-cristão que nosso corpo produz. Se bem que aqueles árabes espetados em camelos também devem sentir um abalo na coluna considerável e eles não são nada católicos. E aquele povo que cata tomates? Bons de alongamento eles são... mas ai, doi só de olhar.

A sacanagem é se dedicar a exercícios, ginásticas, suadouros, tudo em nome da boa forma e de manter um corpo num estado minimamente apresentável à sociedade - e tudo isso ruir com um simples movimento. Às vezes, feito até na academia! Isso deveria dar procon. Pra ser justo, acho que se não fosse tanto exercício e hidroginástica, a crise seria pior. Desta vez, foi até fraca. Mas chata, porque lembra que esse corpinho tem muitos limites.

Pra distrair a cabeça, fui ver "Você vai conhecer o homem dos seus sonhos", o mais recente Woody Allen, considerado fraquinho por muita gente. Eu mesmo não achei tudo isso - mas gostei bastante. Assisti na boa, gostei de muita coisa, especialmente dos finais abertos pras histórias. Gostei de ver Woody remexendo nos temas de sempre, o que me ajudou a pensar no meu próprio trabalho e no medo de me repetir. Ok, entre Woody Allen e Mário Viana tem uma distância abissal, mas a Camila Possolo vai ajudar a reduzir isso.
A arte serve para nos levar a outros mundos, a nos tirar desse mundinho de dores vulgares e também para nos estimular. Foi isso. Saí do cinema com menos dor e mais animado. Woody Allen é o analgésico ideal.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Entre tapas e beijos


Nos últimos dias, o mundo gay e o noticiário policial voltaram a se encontrar. No primeiro caso, um rapaz de 18 anos foi preso ao beijar um garoto de 13 dentro de um cinema de shopping. No segundo, um grupo de meninos bem criados espancou quatro rapazes que encontraram ao longo de uma caminhada pela avenida Paulista. Em comum, todos os envolvidos - exceto o menino de 13 anos - passaram a noite em alguma cela do nosso educativo sistema presidiário. Todos foram libertados no dia seguinte, sob a alegação que não ofereciam perigo à sociedade em volta. E assim, a Justiça, cega e soberana, colocou no mesmo grau um beijo e um soco.

No caso do beijo, o caçula da dupla disse ao delegado que não foi obrigado a nada, que marcou o encontro pela internet e que não teria contado ao outro sua verdadeira idade. Quis beijar, beijou e pronto. Ele é daqueles que nasceu já ouvindo a falação na TV, nas rádios e, quem sabe, em casa, sobre os direitios de todos se exprimirem, etc etc, e acreditou no que ouviu (nossa geração ainda mais fala que pratica). O rapaz de 18 anos, estudante de cursinho pra Engenharia, foi considerado pelo juiz tão jovem e inexperiente quanto o outro e, por isso, foi liberado. E como canta Chico Buarque, "aí, a notícia carece de exatidão": o que acontece aos dois jovens depois do vendaval? O beijo vira namoro ou amizade? Os pais vão deixar? Do alto de seus 13 topetudos anos, o menino vai assumir mesmo sua homosexualidade ou tudo virará mais uma loucura de verão, daquelas que os netos nem imaginam ter acontecido na vida do vovozinho gagá?

Já sobre os agressores da Avenida Paulista, muita coisa foi dita, especialmente nas redes sociais. Até onde eu li, ninguém veio a público defender os meninos - a não ser alguns dos pais e o advogado pago pra isso. Sair por aí espancando gente a torto e a direito é mesmo indefensável. E parece que os tapas doem ainda mais porque - salientavam os noticiários - eram cinco jovens de classe média, alunos de colégios particulares, com famílias estabelecidas e pai com carro na garagem. Fossem filhos de diaristas com faxineiros, tênis de marca falsa comprada na 25 de março e saídos de um baile funk, à espera do bumba, o espanto seria menor?

A gangue da Paulista vinha de uma festa em Moema - bairro por excelência da classe média paulistana mais conservadora - e, horror dos horrores, alguns deles teriam sido paquerados por suas vítimas. Um piscar de olhos mais insinuante ou um convite mais provocativo - e acendeu-se o estopim. Isso, é claro, se o que os agressores contaram a verdade. Algumas testemunhas negam qualquer gesto por parte das vítimas... As testemunhas desmentem até mesmo a ocorrência de uma briga, onde uns batem nos outros respectivamente. Quando só um lado bate e o outro apanha, a Ação tem outro nome: massacre.

No argumento da defesa, mostra-se que teria havido, sim, homofobia - mas estimulada pelos devassos paqueradores. Por si só, é um argumento abjeto. É como justificar o estupro porque a mulher usa minissaias provocantes. Para mim, o que houve foi algo mais que simples homofobia (e simples, aqui, não julga o mérito). Os meninos juntaram-se para agredir qualquer pessoa que considerassem fisicamente inferior a eles. Devem ter pego só "inimigos" magros e miúdos, duvido que tenham encarado um gay malhado de academia ou um negão que faz bico como segurança de balada. Com tipos assim, os cinco valentões da Paulista afinariam bonito. Mais fácil catar o casal gay que passeia de mãos dadas ou o "baianinho" que estava indo trabalhar. Uso aqui os termos mais politicamente incorretos e de propósito. Isso vai facilitar a leitura, caso alguém ligado aos trogloditazinhos caia por engano neste blog.

Os pitbulls com cérebro de pulga mostraram-se mais deslocados na Paulista do que qualquer pai de família que veste a melhor roupa na criançada e tira o domingo para ver os enfeites de Natal na avenida dos ricos. A Paulista transformou-se num território de manifestações públicas variadas, da vitória do Corinthians à comemoração pela vitória da Dilma, da São Silvestre ao show do réveillon... E da Parada Gay. Antes confinada a um domingo de junho, a Parada Gay rasgou o calendário e seus participantes decidiram que a Paulista é deles quando quiserem. Casais de rapazes passeiam de mãos dadas e pares de meninas trocam beijos na porta da lanchonete. De uns tempos pra cá, os mais velhos seguiram o exemplo dos mais jovens e a idade média dos casais gays vem subindo. Aumentou a manifestação de um lado, seria de esperar uma reação do outro. Mas nem isso tem rolado, pelo menos quando não deixam escapar cinco ferinhas de Moema sem focinheira.

E mais. Usar como defesa o argumento de que os meninos têm nota boa na escola chega a comover de tão patético. Prova que essas mães ou não conhecem o filho que pariram ou conhecem e, no fundo, sabem que o que eles fizeram é mesmo indefensável.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

A cor da China


Para os chineses, a desgraça tem cor pastel. À medida que a história dos amantes condenados avançava em "Lanternas Vermelhas", o esfuziante colorido ia desaparecendo do cenário, dos figurinos e das maquiagens - sobrando apenas para a luz, deslumbrante e explosiva no seu final (na foto ao lado). A tristeza é transparente, lá para os lados de Beijing.

A retina da memória é renitente e segura em suas dobras o que marcou mais. E assim saímos do espetáculo apresentado pelo Balé Nacional da China com os olhos repletos de cores vibrantes e a alma tocada pela triste sina dos amantes, a jovem concubina do senhor feudal e um ator da Ópera de Pequim.

"Lanternas Vermelhas" nasceu como filme em 1991, dirigido pelo mesmo Zhang Yimou que criou o balé. Lanternas, o filme, conquistou o Festival de Veneza e chegou a ser indicado para o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro (perdeu para o suíço "A Viagem da Esperança", alguém lembra?). Lanternas, o balé, estreou em 2001 e não saiu mais de cena.

O que torna o espetáculo marcante não é apenas a história - amores perseguidos sempre conquistam nossa simpatia, já dizia o velho Shakespeare. Há um toque de mestre na maneira com que o cineasta Yimou (também diretor de óperas e de grandes eventos, como as cerimônias dos Jogos Olímpicos de Pequim) desenrola sua trama.

Criada nos anos 50 para ser um exemplo chinês para o mundo na categoria da dança, a companhia de balé nacional mostra que o investimento não foi em vão. Seus bailarinos flutuam, com técnica e graça, mas também com profunda expressividade. O que Zhang Yimou fez foi acrescentar à técnica perfeita alguns dos mais tradicionais elementos da cultura chinesa. E, aqui e ali, dar toques de influências ocidentais - o primeiro solo da jovem concubina, quando descobre que deverá esquecer o seu amor em nome de um casamento político tem movimentos que lembram as coreografias exóticas que Gene Kelly criou para "Cantando na Chuva" e "Sinfonia de Paris".
Alguns dos melhores momentos de "Lanternas Vermelhas" estão justamente nessa união do oriente com o ocidente. A cena do jogo de mah jong, uma espécie de gamão ou dominó pequinês, é deslumbrante, com todos os dançarinos praticamente imóveis em torno das mesas. Outro momento deslumbrante: o defloramento da concubina, uma cena de extrema violência, acontece atrás de uma imensa parede de papel de arroz. O jogo de sombras, uma tradição popular chinesa, explode em dramaticidade. Arrepia. Arrepiante também o final, com o vermelho invadindo o cenário de maneira inesperada, tão inesperada que o público chega a gemer nas poltronas.

Mais que um belo espetáculo de dança, "Lanternas Vermelhas" me deixou com a pulga atrás da orelha. É possível à arte retratar a violência e a dor, sem exibir cenas escatológicas ao público. Óbvio, mas é exatamente aí que está o segredo. Nossos olhos ocidentais ("decadentes", diriam os maoístas, espécie em extinção na Nova China) habituaram-se ao explícito, ao mastigado. As pessoas parecem ter preguiça ou medo de decifrar o que não entenderam à primeira vista. Querem o sangue das tragédias e o esgar da dor.

Talvez por isso, elas nem se importem em consultar as horas no visor do celular, pouco importando se a luz vai incomodar as pessoas ao lado. Nem mesmo se apressam em desligar o celular que toca no meio da sessão - aconteceu ontem com uma senhora, na fileira à minha frente, e eu espero que ela não tenha ainda voltado do lugar distante para onde a mandei, mentalmente. Não se respeita o que não se entende...

Saí daquele universo chinês cheio de dúvidas sobre o que estamos produzindo aqui, entre nós. E quando um espetáculo nos provoca isso, é sinal que valeu a pena ter enfrentado a noite fria no caminho do teatro. É para isso que existe a arte.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Procura-se vivo ou morto




A julgar pela repercussão do twitter preconceituoso de uma estudante de Direito - acho que paulistana, não estou certo -, correm perigo de elminação física ou expurgo dos livros de História os seguintes nordestinos:

Dorival Caymmi, Luiz Gonzaga, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Djavan, Gal Costa, Maria Bethânia, Simone, Castro Alves, Rachel de Queiroz, José de Alencar, Ednardo, Belchior, Elba Ramano, Zé Ramalho, Amelinha, Geraldo Azevedo, Sivuca, Hermeto Paschoal, Othon Bastos, Lázaro Ramos, Wagner Moura, Alceu Valença, José Condé, Clarice Lispector, Nelson Rodrigues, Capiba, Antonio Nóbrega, Dias Gomes, Glauber Rocha, Othon Bastos, Cacá Diegues, João Miguel, Fábio Lago, Zeca Baleiro, Rita Ribeiro, Aluisio Azevedo, Artur Azevedo, Gonçalves Dias, Ferreira Gullar, Franck Aguiar, Torquato Neto, Stefanny, Tom Zé, Joãosinho Trinta, Alcione, Souzândrade, Josué Montello, José Louzeiro, João do Vale, Renato Aragão, Chico Anísio, Tom Cavalcante, Roberta Sá, Fausto Nilo, Fagner, Virna, Oscar, Moacir Goes, Núbia Lafayette, Gilliard, Chacrinha, Câmara Cascudo, Catulo da Paixão Cearense, Alan Severiano, Fernanda Tavares, Aguinaldo Silva, Cátia de França, Chico César, Fuba, Lenine, Braulio Tavares, Batatinha, Riachão, D. Hélder, Dona Edith do Prato, Geraldo Vandré, Kaio Marcio, Renata Arruda, Flavio Tavares, Paulo Freire, Manuel Bandeira, Dominguinhos, Ronaldo Correia de Brito, Irandhir Santos, Karim Aïnouz --- e outros, centenas de outros, que deixo ao sabor e favor da memória dos meus leitores.

Se a tal "estudante de Direito" acha que pode formar uma nação sem a iluminada contribuição das pessoas acima, das esquecidas e dos anônimos que, diariamente, constroem a "cidade dos brancos", azar o dela. A minha Pátria se fez e se faz com essas figuras - incluindo `seu`Dezinho e dona Maria Quitéria, meus pais.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Votos válidos


Deve ser por causa do facebook. Ou do twitter. Mas que tem influência das redes sociais nisso, tem. Há vários pleitos não se via um pessoal tão engajado na campanha eleitoral. Tiro isso por meus amigos - de todos os credos políticos. Estão todos empenhadíssimos na torcida por seus candidatos, a quem defendem com zelo de mãe italiana. Eu mesmo preciso me controlar pra não entrar em todas as discussões políticas, pra não correr o risco de perder um ou outro amigo - nem todo mundo leva na esportiva frases mais empolgadas como "por que você não enfia esse seu candidato no rabo?".

Acho que minha última participação efervescente numa campanha foi em 89, quando Fernando Collor disputou e levou a taça ambicionada por Lula. Lembro que, no dia seguinte à eleição, já com a apuração dando a vitória de Collor, fui trabalhar todo vestido de preto, luto total , fossa absoluta, meu mundo caiu, etc etc. Com o tempo, a euforia foi cedendo lugar ao comodismo e, se tenho meu candidato, o amigo tem outro, e assim se leva a vida.

Mas confesso que fazia falta um frissonzinho. É muito triste quando as pessoas decidem o rumo que o país vai tomar nos próximos anos com o mesmo frêmito de quem opta por água com gás ou sem no restaurante self-service. Vejam, não estou dizendo que Dilma é melhor que Serra ou que Marina dá de dez nos dois. O que digo é: vale a pena ver os olhos brilhando tanto nos dilmistas quanto nos serristas - e até nos marinistas, quando eles param de olhar embevecidos pra plantação de alface.

Só não acho legal neguinho colocar tudo em risco - amores, amigos - por causa de um voto. Tudo na vida é possível de discussão sensata, sem precisar partir pras ignorâncias. Muitas vezes senti-me colocado à parte em algumas listas de candidatos com quem não me filio... e confesso que já bloqueei um ou outro mais radical, pelo menos por meia hora. Depois volto atrás e desbloqueio a figura. Mas decidi que só estico a conversa política com quem tem bom senso: fulana é lésbica, sicrano roubou a avó, quem não vota em beltrano é uma anta leprosa... Se houver sombra de argumento assim, eu pego meu chapéu e me retiro. Paro de ler as bobagens e dou finalidade mais útil ao meu tempo.

Domingo vai rolar mais uma eleição. Festa da democracia, como diz a nada democrática Rede Globo. Pra mim, que acho muito legal votar e detesto viajar em feriadão, vai ser dia de festa mesmo. Depois, serão 1.460 dias torcendo pra termos um bom governo, pra rolar um festival de ética, pra finalmente a coisa ter o jeito que ainda não teve como devia.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Dois irmãos de elite 2



Reconheço que foram experiências bem distintas diante da tela: o filme argentino "Dois Irmãos", de Daniel Burmán, e "Tropa de Elite 2", do José Padilha (vi também "Eu matei minha mãe", de um garoto canadense bem talentoso, mas não entra nesta análise). Enquanto o dos argentinos toca uma espécie de opereta bufa e, ao mesmo tempo, carinhosa com seus personagens, o arrasa-quarteirão brasileiro é puro rock'n roll.


Poderíamos retomar a ladainha que tenta explicar o sucesso dos filmes argentinos, usando um argumento que eu mesmo defendo: os filmes dos portenhos tratam de pequenos dramas cotidianos, retratam personagens comuns, de uma classe média esmagada entre o sonho inalcançado de uma vida mansa e as mordidas no calcanhar dadas pelos cães da pobreza.


O diretor Ricardo P. Silva me alertou pra um dado: nós também temos nossos filmes sobre a classe média. O problema é que e eles raramente atingem um grande público, a não ser quando ancorados numa produção da Globo Filmes - caso de "Se eu fosse você" e outros dirigidos por Daniel Filho. Pode haver exceções, como os trabalhos de Laís Bodansky ("Chega de saudade", "As Melhores Coisas do Mundo"), mas geral os filmes brasileiros sobre a classe média só fazem sucesso mesmo na televisão.


Isso, acho eu, tem uma explicação histórica. Desde o Cinema Novo, sofremos no Brasil de um Complexo de Glauber Rocha. Todo cineasta brazuca quer ser genial, definitivo, épico. Pode reparar, primeiro filme de um cara tem uma avalanche de histórias. Em entrevista, Daniel Burmán disse que uma de suas influências é o francês François Truffaut, mestre do filme que se prendia em detalhes deliciosos e, de lá, construía um mundo. O cinema brasileiro parece ter optado pelo mega-evento e acostumou o público a isso.


Brasileiro que gosta de histórias sobre a classe média recorre à televisão. Ela, sim, em seu caminhar histórico, desenvolveu uma excelente técnica narrativa voltada toda em torno da classe média. Nossas novelas desbancaram o receituário cubano de melodramas, aproximou o telespectador, soube retratá-lo com primor. É bem verdade que, de uns tempos pra cá, algum iluminado das altas cúpulas televisivas decidiu que o bom mesmo é fazer novela à mexicana, mas isso é outra história. Pensando nas qualidades de nossa teledramaturgia, abordamos assuntos contemporâneos - de homossexualismo a doação de órgãos -sem deixar o romance de lado. Avançamos tecnicamente também, criamos narrativas mais ousadas - os tempos misturados de "O Casarão", a novela inteira passada em uma só noite de "O Rebu", o realismo fantástico de "Saramandaia". Seja nas caretas ou nas ousadas, o personagem que conduz a trama é sempre saído da classe média.


Cinema brasileiro é outra pegada. Cinema brasileiro que atrai públicp é o que trata de grandes eventos. Caso de "Tropa de Elite 2". José Padilha é um ótimo diretor, daqueles que procura bons parceiros para se apoiar. O roteiro desse filme tem o luxuoso nome de Braulio Mantovani e o elenco só traz feras dispostas a fazer o melhor possível. É um filme tenso, bem feito, firme e que consegue uma façanha rara: aprofunda ainda mais os personagens do primeiro filme. Em quase todas as sessões, os ingressos se esgotaram. Entusiasmado, o público aplaude no final, como se aprovasse a lavagem de roupa suja exibida na tela. "É um filme que mostra a realidade", foi o comentário de muita gente . Nesse ponto, o espectador do filme distancia-se do que vai ao teatro e opta por comédias. "Não vou pagar pra sofrer", dizem. No cinema, eles pagam, sofrem, vingam-se e aplaudem no final. Mas há outros filmes que retratam a realidade e que caíram no vazio. O que agrada em "Tropa" é o super-espetáculo.

Os vários exemplos de filmes argentinos que chegam até nós mostram uma tendência oposta no país vizinho. Interessante, também, é notar que o cinema argentino toca em feridas que os brasileiros já deixaram de lado, como os efeitos da repressão política sobre a vida dos cidadãos. Mas até mesmo nisso, eles apostam na tendência da 'história mínima': em vez de grandes reconstituições históricas, mostram o que aconteceu com quem viveu a época dura da repressão. Tivemos nossos bons exemplos, também, mas a 'moda' no cinema nacional é mesmo retratar os pobres do sertão, muitas vezes de uma maneira admirada por eles serem tão éticos e bacanas. Ou então reunir meia dúzia de atores da TV e refazerem histórias que a própria TV levou de melhor forma - "Quincas Berro d'Água" e "Primo Basílio" são dois exemplos.

Seja como for, "Dois irmãos" e "Tropa de Elite 2" são dois ótimos filmes, que merecem ser vistos. E jamais comparados... (Mas quem for ao argentino, diga se estou errado: o casal protagonista é a cara de Gloria Menezes e Ary Fontoura!)

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Urubus, rasguem minhas fantasias...



Essa, acho que só os sócios do Clube do Lípitor vão lembrar : nos anos 60, o folgado papagaio Zé Carioca tinha como companheiro de aventuras nos gibis um simpático e azarado urubu, o Nestor. Depois disso, o urubu só frequentou alguma coluna cultural quando o Premê (outra pro Clube do Lípitor!) fez uma música sobre a ave que se apaixonava por uma asa delta. Ou seja, além de pouco frequente, o urubu só entrava no mundo das artes como um personagem de pouca sorte e inteligência reduzida. Agora, graças ao artista plástico Nuno Ramos, o urubu conquistou um lugar ao sol da cultura oficial.

Convidado para criar uma instalação na Bienal de São Paulo, Nuno apareceu com um projeto esquisito: um viveirão, que ocupa o vão dos três andares do prédio no Ibirapuera. Dentro, umas plataformas, umas carniças e três urubus, que ignoram solenemente os visitantes e dão seus volteios pelo espaço que lhes cabe. Sinceramente, como obra de arte, não achei grande coisa. Como manifestação do artista, também não entendi o que significa. Mas o fato é que a gaiolona está lá, os urubus idem - e toca o barco, porque esta Bienal tem muita coisa pra ver.

Acontece que ecologistas e ministério público se associaram na campanha pela libertação dos urubus. Alegam que as aves estão sendo maltratadas. Não parecia. Nuno - a quem não conheço - disse que os bichos são de laboratório, inaptos para enfrentar a vida como ela é. Os ecologistas e os funcionários do ministério público dizem que isso não se faz com as coitadas das aves, etc etc. Até o momento, parece que a Bienal terá de esvaziar a gaiola e despejar os urubus.

Estaria tudo nos conformes, caso os ecologistas não decidissem partir pra chamada ação armada e invadir a Bienal, sábado passado, munidos de cartazes, correntes e improvisados megafones de cartolina. Armaram um tremendo berreiro na exposição, atrapalhando a vida de quem só queria ver os desenhos "terroristas" do pernambucano Gil Vicente - aqueles que a OAB queria tirar da exibição - ou a excelente sala dedicada a Wesley Duke Lee e outras boas obras.

Não me contive e, no mesmo volume dos manifestantes, gritei que respeitassem o trabalho do Nuno Ramos. "Isso não é arte!", me responderam. "Nem isso que vocês fazem é manifestação decente", respondi, já sem ânimo de continuar o bate-boca. Desanimei de vez, assustado feito uma reginaduarte, quando uma das catifundas ecologistas berrou: "Cadeia pro Nuno Ramos!" Aquilo me chocou. Então, se a obra de arte não agrada os caminhos são proibição e cadeia pro artista? Defendo integralmente o direito dos ecologistas de se manifestar contra o trabalho na Bienal - mas se eles apenas se acorrentassem, com os cartazes (feios), acho que teria um efeito de revolta mais eficiente. Os gritos, francamente, eram muito chatos.

Mas não posso concordar com quem acha que o artista deve ir pra cadeia por causa de um trabalho desagradável. Tenho lá minhas dúvidas se aqueles manifestantes já tinham alguma vez entrado numa bienal. Se tiveram a mínima preocupação em percorrer os andares e ver que há muita bobagem, mas também muita coisa bacana exposta - a melhor, pra mim, é uma casa de favela, com portas e janelas cobertas por capas de livros muito significativos da geração que protestava com causa definida (tem Ana Cristina C., Torquato Neto e outros).

Acho mesmo que os defensores dos urubus - que, repito, não parecem maltratados, mas eu não tenho a menor intimidade com esses bichos, assim como quase todo mundo... - devem dar sua opinião na sociedade. Mas sou totalmente avesso a essas manifestações de fascismo disfarçadas de bom mocismo. Saí da Bienal muito intrigado com os rumos que as pessoas dão ao seu direito de emitir opinião.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Fazer rir


Era quase uma da tarde, um ventinho frio começava a soprar na Praça do Patriarca, no coração de São Paulo. A roda de curiosos cercava o trio de palhaços do La Mìnima, que se apresentava com seu novo espetáculo, "Rádio Varieté". A cada piada, a cada gesto, a cada pantomima, o público ria e aplaudia, vidrado. Durante toda a apresentação, um senhor de idade indefinida assistia, entusiasmado. Puxava aplausos, comentava alto, atento às piadas e brincadeiras. Quase no fim, já sentindo que a farra ia acabar, ele cruzou o 'picadeiro' para ir cuidar da vida - e despediu-se com aceno tão carinhoso, que até os palhaços em cena notaram. Ele deu tchau e passou por mim, levando na cara um sorriso de tal modo sincero que eu tive certeza: esse vai sorrir o dia inteiro.

Voltei a atenção para a plateia. Misturados ao grupo, o multifacetado Antonio Nobrega e sua mulher, Rosane, assistiam tão seduzidos quanto o rapaz desconhecido, do outro lado, vestindo apenas uma camiseta, uma encardida calça de agasalho e um par de havaianas fajutas. Ignorava o frio, o moço. E só olhava, fixo e concentrado, o show dos palhaços. Ria e aplaudia, como se sua rotina fosse essa mesma, rir e aplaudir dos palhaços da vida.
Nessa hora, a ficha caiu. Como é bom fazer alguém rir. Faz tão bem à alma e ao corpo receber de volta um sorriso aberto, um olhar molhado das lágrimas provocadas pela risada. Faz tão bem que eu me espantei de já ter pensado em escrever "sério". Ali, na praça, vendo os espectadores se deliciando com as brincadeiras criadas por Fernando Sampaio, Domingos Montaigner e Filipe Bregantin, eu compreendi de um jeito muito forte a importância do meu trabalho.
Daquele roteiro que ajudei a escrever, junto com o super Luiz Henrique Romagnoli, Domingos e Fernando, tudo arrematado pelo olhar profissional de Antonio Nóbrega, saíam piadas, comentários, brincadeiras, saía um sem-fim de coisa que, tenho certeza, fez mais alegre a quarta-feira de muita gente. Como sentir frio depois de ouvir aquelas risadas e aplausos? Não dá, cara, simplesmente não dá. O prazer do riso alheio é uma endorfina, uma dessas drogas naturais poderosas a ponto de viciar definitivamente. Sou um fazedor de risos addict - em inglês fica mais chique.
Parece besteira, né? Justo eu, que nos últimos 30 dias, tive 5 comédias em cartaz nesta cidade maluca, todas atraindo público, justo eu fiquei comovido como o diabo por ver o povo rindo hoje. Deve ser por que, em alguns instantes, bate uma dúvida de saber se o caminho é esse mesmo... Dá vontade de ter um trabalho que os outros considerem profundo e o encarem com a seriedade que é fazer rir...
Confesso, cara lavada, que bate essas coisas. Mas aí, ufa, vem um espetáculo de rua, uma roda de gente que não tem dinheiro pra pagar um ingresso em teatros convencionais, mas que parou ali e deu aquilo que o artista mais gosta: um minuto de forte atenção. A alma encheu, o coração disparou e eu me toquei, enfim. Outras dúvidas virão, porque eu não pretendo parar de escrever tão já. Mas hoje, 16 de setembro, eu tô de alma lavada e feliz. Que nem o rapaz de havaianas falsas e o velhinho que deu tchau na praça.


Dedico esse post ao Aimar Labaki e ao Petrônio Gontijo, com quem troquei, direta ou indiretamente, reflexões ao redor desse tema.

p.s. 2 - Quem quiser assistir a alguma apresentação de "Rádio Varieté" nas praças do centro, pode consultar o site http://www.laminima.com.br/. Tem datas já agendadas no Largo São Bento, no Parque da Luz e na Praça Antonio Prado.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Sigilos quebrados


É evidente que qualquer pessoa em sã consciência vai achar escandalosa a violação de segredos fiscais de um cidadão. É mais evidente ainda que, se houver um mínimo de respeito pela chamada coisa pública, os responsáveis por essa aberração serão punidos com rigor - mas isso, é claro, se vivêssemos no melhor dos mundos, o que me parece não ser bem o caso. De todo modo, vincular a quebra de sigilo fiscal a campanha eleitoral me parece um desvio de rota. Vamos discutir a coisa? Sim, vamos. Devemos. É preciso uma explicação. Mas ao que consta um presidente não vai cuidar só disso. E o resto dos projetos de governo? "Depois que estrear a gente pega o pique" não dá mais.


Escrevo sem ter visto o efeito de tantas denúncias nas pesquisas eleitorais. Deve ter causado algum, sem dúvida - e é nisso que o segundo colocado nas pesquisas anteriores aposta, torcendo por um segundo turno. Até o momento, no entanto, paira uma dúvida cruel em todas as cabeças ligadas à corrida eleitoreira: quebrar sigilo bancário surte efeito na opinião da maioria dos eleitores? Em caso positivo, haverá uma comemoração pela resposta ética do sacrificado povo brasileiro. Em caso negativo, e se a candidata do governo subir no trono já no primeiro turno, não faltará quem ataque a conivência da patuléia. Em redes sociais, mesmo, já li que as pessoas - os "outros' - estão mais interessados em dinheiro no bolso e comida na mesa do que em lisura ética. Como se querer sobreviver com relativa dignidade tivesse se transformado em crime.

A cada vez que vejo candidatos espumando contra a violação do sigilo fiscal de seus correligionários e/ou aparentados (um crime, repito), lembro de uma viagem que fiz pelo Nordeste, entre Piauí e Maranhão. Para cruzar parte da região, era preciso pegar uma caminhonete Toyota e viajar na carroceria lotada - um pau-de-arara light, uma viagem que tinha até um pernoite porque o percurso era danado. Eu ia de turista, meio dondoca escandalizada. Mas os outros passageiros iam mesmo receber o pagamento na única agência do Banco do Brasil num raio de léguas. Eles tinham de dormir ao relento pra poder receber o auxílio financeiro de uma bolsa-família ou a aposentadoria rural.

Lembro deles, repito, e me pergunto se aquelas pessoas fazem ideia do que é quebrar um sigilo fiscal. Acho que eles nem sabem o que é "sigilo". Sequer imaginam o que é "bancário". Esse discurso indignado - com razão, porque nós, que pagamos impostos, não queremos nossa vida fiscal exposta ao público como pôster da Playboy - não atinge uma grande maioria de brasileiros, eleitores, tão cidadãos quanto eu, você, a filha do candidato ou o camelô da 25 de março. Acontece que a classe política que se julga melhor aparelhada para administrar o país não conhece aquilo que quer tomar conta. Dá as costas ao Brasil real e ainda se espanta quando as coisas não saem como ela acha que deveriam sair.

Na verdade, eu penso mesmo que a quebra de sigilo fiscal é uma prática mais comum do que sonha a vã candidatura. Não é nada raro receber e-mails de empresas que "descobriram" o seu potencial consumismo em alguma listagem vendida sabe-se lá por qual administradora de cartão de crédito. Até um tempo atrás, pra se obter visto de entrada em alguns países, era preciso mostrar a declaração de rendas. Mas hoje, com tudo informatizado... Gente, se o neguinho entra no sistema do Pentágono, não vai entrar na minha declaração de renda? Tá certo que, no que me diz respeito, ele vai rir um bocado e passar pro próximo - mas impossível não deve ser, não.

Outro dia, li que a Biblioteca do Congresso Americano guarda num computador todos os twitters escritos no mundo. Você consegue imaginar isso? Com dois toques no teclado, um hacker entediado tem acesso a todos os kkkkkks e demais bobagens que você tuitou por aí. Graças à Nota Fiscal Eletrônica, qualquer funcionário da Receita Federal pode descobrir onde o senhor anda gastando o seu salário - tá comprando sapato demais, hein? - mas isso não quer dizer que o sistema da NFE seja ruim: vai impedir que muito comerciante dê o truque, cobrando caro da gente e não pagando o que deve em impostos, alguns até trabalhistas.

Reafirmo o que disse no começo: quebrar sigilo bancário é uma violência inominável, que deve(ria) ser punida com tremendo rigor. Mas achar que isso é bruxaria de esquerdistas mal-intencionados é reduzir todo o avanço da tecnologia a uma disputa eleitoral passageira. A informática nos uniu numa intimidade tão promíscua, que quebrou até mesmo nosso direito aos segredos antes inconfessáveis. Mas, antes de mais nada, lembro sempre de uma frase que dona Maria Quitéria, também conhecida como minha mãe, dizia: quem não deve, não teme.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Reality show de verdade


Se o noticiário deixava dúvida, a capa da Veja acaba com os questionamentos. Neste exato momento, no subsolo do Chile, 33 homens estão trancafiados numa mina que desabou. Muitos artigos - inclusive do Luiz Zanin, no Estadão - lembraram a trama do filme "A Montanha dos Sete Abutres", dirigido por Billy Wilder. Eu mesmo pensei logo no filme quando li a primeira notícia: na trama, um homem fica soterrado e um repórter sensacionalista transforma o caso numa histeria nacional. Acho mesmo que o filme tem um título opcional, "O Grande Circo". E é daqueles filmes que todo aluno de jornalismo deveria ser obrigado a assistir durante a faculdade. Mas se nem língua portuguesa ensinam direito nos cursos de Jornalismo, que dirá Ética...

Voltando ao caso dos mineiros do Chile. Mais que a obra-prima de Hollywood, o drama atual me lembra muito os reality shows que, há algum tempo, garantem a audiência das emissoras de TV. Já se tornou hábito esperar a escalação dos estranhos que vão coabitar juntos, exibindo corpos sarados e personalidades deturpadas em rede nacional. Com o trabalho primoroso dos editores - os verdadeiros gênios dos reality shows - essa convivência logo vira uma novela, que a maioria das pessoas acompanha como se daquilo dependesse a sua própria felicidade. Mistura-se dramalhão com comédia, vulgaridade com vilania e o circo está armado.

No Chile, o confinamento é real. Ali, sim, aplica-se o termo reality. Em torno dos 33 homens soterrados, circulam suas famílias, os funcionários de uma mineradora que descuidou acintosamente da segurança de seus funcionários e um sem-fim de funcionários públicos que não fez o que deveria ter feito. E enquanto profissionais discutem até que ponto os mineiros confinados devem ser informados da real gravidade da situação, a mineradora ameaça não pagar os salários dos homens presos na terra, alegando falta de dinheiro. Arma-se, dia a dia, um circo de horrores tristemente verdadeiros.

E o medo, o meu medo, é que esse horror aumente ao longo dos próximos 100 dias - prazo que, acredita-se, vai levar para ser cavado o túnel de saída. Se um dos homens enlouquecer, ficar doente, cair em depressão, poderemos assistir - de mãos atadas - à agonia pública. Há suspense pior: se um deles não emagrecer o suficiente - e atingir os 90 cm de cintura - poderá ficar entalado no túnel. Como será isso? El Gordo vai por último?

Será que - além das famílias - haverá muita gente interessada nos destinos desses homens daqui a 100 dias? E se for ao ar um novo reality show, desta vez com gente mais bonita, mais sarada e mais vulgar? A audiência volúvel mudará de canal? São muitas perguntas, mas a premissa, acho eu, é uma só. É preciso muito sangue de barata para levar ao ar um reality show programado quando a vida de verdade informa que homens iguais a nós padecem num confinamento cruel e de final imprevisto.

Eu já não assistia reality show antes. Agora, piorou.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Essa gente bronzeada mostra seu valor



Toda vez que vou a Minas Gerais (e bem que poderia ser mais vezes, quando lembro daquela comida gostosa...), me divirto lendo os jornais locais. São bons jornais, abertos ao noticiário nacional e internacional, cobertura ampla e tal. Mas quando falam de algum artista conterrâneo, fazem questão de lembrar isso ao leitor. Selton Mello não é apenas o ator e diretor de sucesso. É o "mineiro de Passos". É um orgulho ser conterrâneo de tal figura, diz-se nas entrelinhas. Ou é óbvio que faria sucesso - é mineirim, uai.





E antes que me acusem de tripudiar sobre o bairrismo, me adianto. Tenho a mesma sensação toda vez que os jornais noticiam algum evento internacional em que surja, de forma inesperada, a presença de um brasileiro. Esta semana aconteceu isso, com o acidente do avião na Colômbia. Uma aeronave partiu-se em três, uma mulher morreu do coração, não houve outros mortos - mas todos os noticiários aqui sublinhavam a presença de quatro brasileiros. Nem entraram no mérito de um deles, militar da aeronáutica, se não me engano, ter escapado ileso de forma bastante humana, mas não muito heroica.



Identificar um brasileiro num acidente aéreo, numa avalanche de neve em Bariloche ou numa enchente do Paquistão diferencia aquele incidente de outros tantos. O caso da adolescente condenada em Abu Dhabi por ter feito sexo com um motorista paquistanês só mereceu destaque porque a menina é "coisa nossa". Atentados terroristas ganham mais manchetes quando envolvem um brazuquinha perdido nos confins do Oriente Médio. Ah, esse nosso verde-amarelismo...

Não sei se outros povos - além do brasileiro e do americano - têm esse mesmo comportamento. Digamos que não. O que nos espanta tanto quando uma coisa dessas acontece? Será que até hoje não superamos nossa vergonha de ser colônia e viver longe do centro civilizado? Será que até hoje achamos inacreditável que um dos nossos - mesmo que não façamos ideia da existência dessa pessoa até o fato ocorrido - possa ter sido vítima ou testemunha de um acontecimento histórico?

Essa mania de achar que só turista alemão pode ser baleado num cruzeiro pelo Rio Nilo nos deixa na pole position em qualquer campeonato de provincianismo. Pior é quando as sensibilidades se sentem feridas - é o caso dos rapazes brasileiros condenados à morte na Indonésia por traficar drogas. É cruel, claro que é, especialmente pra quem - como eu - é contrário à pena de morte. Mas uma pessoa que infringe conscientemente uma lei severa sabe dos riscos que está correndo. Faz uma aposta alta e perde. As leis da Indonésia não livram a cara de ninguém só porque a pessoa nasceu num país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza.

As distâncias aproximaram os mundos e, hoje, não é nada difícil para um brasileiro estar do outro lado do planeta quando alguma coisa acontece. Eu mesmo estava a 400 km de Sichuan, na China, no dia em que ocorreu aquele terremoto pavoroso, dois anos atrás. Lembro até hoje do frio na espinha ao chegar no hotel, desavisado, e ver o mapa da tragédia no noticiário na CNN. Era muito perto! Isso faria de mim uma manchete: "Terremoto na China mata 200 mil chineses e um brasileiro". O pior é que ia aparecer um espírito de porco perguntando: mas que diabo ele foi fazer lá? Tanto lugar bonito aqui pra conhecer...

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Corpo a corpo


A campanha eleitoral nem começou na TV e os ânimos já se exaltaram. Nem estou pensando nas manchetes tendenciosas, cheias de malícia, que jornais e revistas andam publicando - e nem quero imaginar no que vem pela frente. Também acho desnecessário falar da militância aguerrida, com esses não tem discussão mesmo, o cara acredita em seu candidato e vai à luta. Basta ver que todos reclamaram de como William Bonner entrevistou o "seu" candiato. Ninguém saiu satisfeito.

O que tem me impressionado mesmo é a partidarização das pessoas comuns. Ok, é realmente muito bom ver que há bastante gente interessada nos destinosdo país... Mas a coisa atualmente não é tão simples. O que espanta é que gente comum, tipo você, eu e um milhão de almas usam o twitter, o facebook, os emails e os blogs pra não só divulgar seu voto, mas atacar os adversários e, acima de tudo, reagir de maneira espantosa a quem manifesta preferência por outro candidato que não o seu.

A impaciência chegou com tudo ao mundo virtual e o que antes era motivo para bons debates entre amigos, hoje tornou-se uma forma de agredir e até desprezar quem não pensa igual. Só por dizer que tinha votado no Lula nas duas eleições anteriores, me senti cortado da lista de algumas pessoas. As mesmas pessoas que me encontraram pela rede e se diziam mortas de saudades, vamos nos ver, etc etc. Um voto me transformou em persona indesejável na rede social.
Tenho amigos que vão votar no Serra, que fazem campanha aberta e escancarada pelos tucanos. Outros são Marina Silva desde a primeira infância. E há ainda os que votarão na Dilma sem pestanejar nem discutir as graves pisadas na bola da gestão petista. Tirando, obviamente, a opinião desfarovável que um tem a respeito do voto do outro, por que devo me afastar dessas pessoas? Por acaso, de agora em diante, só vou querer andar com corintianos e fãs do Chico Buarque? Na minha cabeça, já estavam mais que fora de moda figuras que só tinham amigos gays ou maconheiros ou jogadores de xadrez.
Dar opinião, ainda por cima em rede social, ficou muito complicado. Aquilo é terra de ninguém, é espaço público e, a não ser que você mande em private ou direct, está falando para todo mundo. Logo, está se submetendo ao julgamento geral e não pode reclamar de invasão de privacidade. Acontece que as opiniões favoráveis aos nossos não-candidatos são chatas. As favoráveis aos nossos candidatos também são chatas, mas pelo menos a gente concorda com elas em alguma coisa.
Uns e outros inundam as redes, caixas postais e tudo quanto é forma de comunicação falando bem do seu e mal do outro. E ai de quem tentar contestar. "Cretino" é praticamente um elogio de avó pra neto se compararmos com o que se escreve na rede. A palavra escrita, enviada a distância, serve de escudo e dá ao que escreve uma noção de super-poder que ele dificilmente teria no cara a cara.
Não deve ser difícil respeitar o voto alheio. Pessoas normais não saem se matando só porque torcem para times diferentes (pessoas normais, atenção). Podem bater boca, tirar sarro, tripudiar sobre o adversário que perdeu, mas não trata o outro como uma bactéria desprezível.
É claro que uma eleição não é um amistoso interclubes. O voto ajuda a definir os próximos anos de uma comunidade, um Estado, um país. É decisão que afeta a economia e o bem estar de muitos (ou pelo menos deveria ser assim). Mas a importância não significa que foi abolido o respeito à opinião alheia.
Se Serra conta com o apoio quase incondicional da imprensa. Se Dilma conta com o impulso irrefreável do governo federal. Se Marina Silva arrebanha os que não querem se envolver em briga de cachorro grande.Se Plínio revela agora um desconhecido lado de vovô da fuzarca... Todos esses "ses" serão resolvidos no dia da eleição. E passaremos os próximos anos submetidos à vontade da maioria. É assim que funciona.
E antes que eu me esqueça, meus votos decididos até agora são: Dilma pra presidente, Marta pro Senado, Erundina pra deputada federal e Salete Campari pra deputada estadual. É questão de opinião e não de aposta na mega sena. Se ganhar o Serra e meus outros votos não emplacarem, continuarei a tocar minha vida da mesma maneira. Mais crítico, claro, porque ninguém aqui é candidato a santo.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

O meu dia dos pais



Em 2003, minutos antes de abrirmos as portas do teatro do Centro Cultural Banco do Brasil para a estreia de "Vestir o Pai", Paulo Autran - que dirigia a peça - olhou a plateia vazia e comentou: "A gente passa meses ensaiando a comédia que você escreveu, mas só vai saber se fez o trabalho direito na hora que escutar a primeira risada do público". Uns 15 minutos depois, ouvíamos a primeira das muitas risadas provocadas em "Vestir o Pai" e relaxamos nas nossas cadeiras. A bola agora estava com Karin Rodrigues, Leona Cavalli e Otávio Martins, em cena. Mas a lição ficou na cabeça: só descobrimos que acertamos quando o público ri. É a agonia de quem faz comédia.





Depois da gestação em nossos cérebros e computadores, a peça chega ao corpo dos atores, mas passa algum tempo - dois, três meses - trancada nas salas de ensaio. Ali, sim, a peça começa a ganhar vida. Mas piada repetida vai perdendo a graça e, depois de dez dias de ensaio, ninguém mais ri do texto. Nos ensaios de "Vamos?", a equipe riu muito - das invenções, cacos, erros, nunca mais do texto. A noção do que é engraçado vai se diluindo com o passar do tempo. E de repente lembramos que a porta vai abrir, o público tomar seus assentos e - torcemos - rir. No fundo do pensamento, como a goteira na pia da área de serviço, surge de mansinho o frio na espinha: e se eles não rirem?





Vão rir, eu sei. Mas o medinho impulsiona a melhorar e aprimorar o trabalho. É a incerteza que me faz caprichar em cada fala. Pelo menos, eu tento. Mas, por mais confiança no taco que se tenha, a gente sempre leva uma surpresa quando a coisa dá certo. Eu, pelo menos, sou assim. Recentemente, fui ao centro de São Paulo assistir ao ensaio aberto de "Rádio Varieté", o novo espetáculo de rua da Cia. La Mínima. Escrevi alguns esquetes pra esse espetáculo e fui lá ver se funcionava - ou seja, fui checar se as pessoas ririam.



Foi a primeira vez que escrevi para uma peça de rua e isso exige uma outra técnica, outra noção de tempo de piada. Pra complicar, me meti a escrever uma cena de ventríloquo e, graças ao Domingos Montagnier e ao Fernando Sampaio, aprendi muita coisa. Vocês já tinham reparado que boneco de ventríloquo fala pouco? Pois é, fala. Mas o pouco que fala tem de ser engraçadíssimo. A cena feita na rua, pela primeira vez, trazia um boneco astrólogo que tentava adivinhar o signo do público. A plateia riu e, juro, eu fiquei arrepiado. O primeiro riso em qualquer espetáculo libera uma adrenalina lascada.



Eu só acredito em teatro feito em conjunto. Não em grupo, como uma noção engessadora, mas em conjunto - autor, diretor, atores, técnicos e público, todos fazem a peça existir. Na falta de qualquer um deles, a coisa não acontece. Não acredito em artista auto-suficiente, que no mesmo espetáculo escreve, dirige, atua, vende ingresso e estoura a pipoca. Pra substituir o público por si mesmo é um passo.



A multiplicidade é que dá a liga. Deve ser por isso que me sinto em casa trabalhando com os Parlapatões e o La Mínima, dois grupos que não exigem fidelidade partidária - a não ser ao trabalho em si, à seriedade com que encaramos o riso alheio. Deve ser por isso que gosto de trabalhar com Jairo Mattos, que tem uma paixão incontrolável, como ele mesmo, pelo teatro . Deve ser por isso que chego no ensaio de "Vamos?" e me atiro nos braços da equipe toda - Dalton Vigh, Rachel Ripani, Alex Gruli, Tânia Khalil, Rafael Maia, Rita Batata, Otavio Martins, Tati, Chico, Ed, Valdir... A gente se juntou e fez um timão.



Deve ser por isso que, neste fim de semana, cinco peças minhas vão ocupar alguns disputados espaços teatrais da minha cidade. Coincidência, ok. Mas também uma alegria imensa e uma ansiedade desmesurada. Minha cabeça entrou em processo de parto de uma peça, de formatura da outra, de festinha da outra... São filhotes, espalhados pelo mundo, e que vieram, vejam vocês, todos me visitar no dia dos pais.

O "Festival Mário Viana de Teatro & Risos" é formado por (na ordem alfabética):

AMANHÃ É NATAL, com Álvaro Gomes, Cinthia Zacariotto e Nana Paquini. Direção de Jairo Mattos. Teatro Paulo Eiró, Av. Adolfo Pinheiro, 765. Sex e sáb, 21 horas. Dom, 19 horas. Ingresso: 10 reais. Até 22 de agosto.

CARRO DE PAULISTA (escrita com Alessandro Marson), com Tadeu Pinheiro, Vinicius Oliveira, Aline Abovski, Fábio Neppo e Rodolfo Valente. Direção de Jairo Mattos. T. Ruth Escobar, R. dos Ingleses, 209. Sáb., 22h30. Ingresso: 30 reais. Até 25 de setembro.

O MÉDICO E OS MONSTROS, adaptação do original de Robert Louis Stevenson, com Cia. La Mínima. Direção de Fernando Neves. Teatro Cleyde Yáconis, Av. do Café, 277, Jabaquara (ao lado do Metrô Conceição). Qui, 21h. Sex, 21h30. Ingresso: 30 reais. Até dia 29.

UM CHOPES, DOIS PASTEL & UMA PORÇÃO DE BOBAGEM, com os Parlapatões. Já faz parte do repertório cult do grupo. Sex, 21h. Sáb, 21h e meia noite, dom. 20h. Ingresso: 15 reais. Até dia 8.

VAMOS?, com Dalton Vigh, Tânia Khalil, Rachel Ripani e Alex Gruli, direção de Otávio Martins. Teatro Imprensa, Rua Jaceguai, 400, Bela Vista. Sex, 21h30, sáb. 21h e dom., 19 horas. Ingressos: 40 reais e 50 reais. Estreia.

sábado, 24 de julho de 2010

O Crime Perfeito


De nada adiantou ter sido um leitor voraz de Agatha Christie, Conan Doyle ou P. D. James. Nenhum autor de romance policial chegaria ao esmero do crime no Brasil. Aqui, Hercule Poirot, Miss Marple, Sherlock Holmes e o inspetor Adam Dalgliesh teriam de passar suas tardes jogando biriba ou tomando chá com torradas. O Brasil, reconheçamos, atingiu a perfeição no mundo do crime. Aqui, pode-se matar uma pessoa, um outro ser humano, e nem é preciso manter o crime em segredo. Todos saberão quem fez o que com quem, e ficará tudo por isso mesmo. Basta atropelar alguém. Simples assim.

Foi o que aconteceu há algumas semanas na Rodovia dos Imigrantes, quando um motorista com os reflexos alterados pelo álcool perdeu o controle da kombi e atingiu três pessoas no acostamento, matando-as na hora. Foi preso, confessou que tinha bebido, pagou uma fiança de 1.200 reais e saiu, pra responder o processo em liberdade. Gente, 1.200 reais dá 400 reais por vida tirada. Nem o Imposto de Renda cobra tão pouco por um dependente.

Na semana passada, foi a triste vez de a atriz Cissa Guimarães ser atingida pela tragédia. Seu filho Rafael, de 18 anos, foi atropelado e morto dentro de um túnel no Rio de Janeiro, quando andava de skate com dois amigos. Era madrugada, o túnel estava fechado para o trânsito de veículos e, teoricamente, não haveria perigo para os skatistas a não ser um assalto inocente. Dois carros, pelo jeito disputando um racha, ignoraram os avisos de interdição e entraram no túnel. "O menino não saiu da frente do carro e manobrou pro nosso lado", explicou o passageiro do carro que atingiu Rafael. Sobre o fato de estar num local proibido para carros, nenhuma palavra.
Depois, ficamos todos sabendo que os dois policiais que interceptaram o carro assassino não perceberam o vidro estilhaçado, o capô amassado, o farol pendurado - e talvez uma ou outra mancha de sangue. Os PMs teriam pedido 10 mil reais pra sofrerem de amnésia. Teria dado tudo certo, caso Rafael não fosse filho de um músico respeitado e de uma atriz conhecida, que até dias atrás anunciava o torpedão da copa do mundo nos intervalos dos jogos. Se Rafael fosse filho da tiazinha que vende coco na praia de Copacabana, talvez o golpe da amnésia tivesse funcionado.
Cá entre nós, a participação dos PMs corruptos é quase que só um detalhe numa história por si escabrosa. O que me impressiona sempre que leio sobre acidentes de trânsito envolvendo mortes é justamente o sucateamento que se faz no Brasil dos seres humanos. Acidentes acontecem. Máquinas podem perder o controle. Todo mundo tem sua hora e dela ninguém escapa. A fartura de lugares comuns deixa claro que nem tudo é crime.
Quando uma pessoa bebe além da conta, sai em alta disparada, ignora um aviso de "proibido entrar" ou a placa de contra-mão... bem, se provocar um acidente, essa pessoa não pode ser tratada como alguém que, coitada, deu sopa pro azar. É crime doloso, sim. Você, deliberadamente, toma uma atitude que pode ter consequências fatais, isso é crime. Pode ter atenuantes? De repente, sim. Mas não se pode dizer que foi sem querer.
Ou pior ainda, não se pode acusar a vítima de ter entrado na frente do carro, impossibilitando uma manobra. Rafael, o filho da Cissa Guimarães, estava em um local onde não devia passar carro, ponto. E tem mais: o sujeito que estava ao volante tinha sob o pé direito o comando do freio. E nas mãos, o volante. Era só frear ou desviar. Bateria o carro, mas não mataria ninguém.
A situação beira o Cinismo Absoluto quando sabemos que há regras muito rígidas dominando o código de trânsito brasileiro. Se eu não fizer a tal da avaliação de poluentes do meu carro novo pagarei multa. Se eu falar ao celular enquanto dirijo, pagarei multa. Se eu tomar três e não um copo de chope, pagarei uma multa altíssima. São regras absurdas? De jeito nenhum. O absurdo é eu perceber que se atropelar e matar alguém, pagarei uma fiança e ficarei em casa. Poderei até dirigir! Quem morreu, afinal, foi o outro. Foi maus.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Gilberto, o Interminável


Até quando mesmo vai durar a - por assim dizer - gestão de Gilberto, o Alcaide? Eu sei, você pensou que eu tinha esquecido dele. Tinha mesmo. A vida oferece tantas coisas mais interessantes pra se pensar, algumas boas, outras nem tanto, sobrava pouco tempo pra analisar as estripulias do burgomestre. Verdade seja dita, ele também apareceu pouco, tanto que até deu uma passeadinha pela África do Sul, durante a Copa. E também a campanha à presidência de José Serra não deve fazer muita questão de ver o alcaide nas páginas de jornal. É melhor silenciar ou ignorar o por-si-só confuso prefeito.

Mas vai ser difícil fingir que não estamos vendo a - de novo, por assim dizer - gestão gilbertiana. Por mais que a imprensa simpatizante às aves silvestres de bico comprido tente minimizar, é impossível não enxergar a mão do Alcaide nas questões sociais. Ele decidiu acabar com a cracolândia e com a mendicância. Dito e feito: interditou os prédios velhos do bairro da Luz, onde a noiada comprava e consumia suas pedrinhas. E, depois, mandou fechar os albergues que serviam de pouso pra mendigos, sem tetos e desvalidos em geral. A ideia beira o genial de tão simples: sem ter onde pernoitar ou se drogar, a pobraiada ia se mandar pros bairros da periferia, deixando a região central mais limpa, linda e 'novaiórquica'.

Pena que Gilberto, o Alcaide, não seja Rudolph Giuliani, o prefeito que limpou (ou maquiou) Nova York. Pena também que não tenha havido - como houve lá em NY - uma campanha pras pessoas não darem mais esmolas, comidas ou qualquer tipo de ajuda que estimulasse os mendigos a ficarem nos bairros ricos. Aqui, a cultura do assistencialismo faz parte do DNA e se há um resquício de culpa na classe média por ter, a suadas penas, seu carrinho e seu apezinho, ele é compensado com pequenos donativos às crianças obrigadas a vender doces, panos de prato e outros troços nos cruzamentos. Pasmem, há dessas criaturas até mesmo na Rua Oscar Freire, o território dos chiques e endinheirados paulistas e sobre elas ainda não há Estatuto do Menor que proíba palmadinhas...

A - meu deus, eu não acho outra palavra - gestão de Gilberto, o Alcaide, falhou no trato com a classe social abaixo de qualquer linha de pobreza e humanidade. Os noias da cracolândia espalharam-se pelas ruas do centro, chegaram até os Jardins, e agora estão de volta ao reduto. Os mendigos e desvalidos não viram motivo pra ir dormir no fim do mundo, sendo que o dinheirinho ganho com papel catado, os restos de comida dos restaurantes e, vá lá, as esmolas, estão mesmo no centro expandido. Só não se trocou o seis por meia dúzia, porque agora eles - os pobres - não têm mais onde pernoitar e acabam ocupando ruas, calçadas, marquises e caixas eletrônicos das áreas bacanas. Trocou-se o seis por três e meio, e olhe lá.

Gilberto, o Alcaide, também pisou feio na questão do transporte público. Se quer tanto despachar os sem-nada pra longe, que crie pelo menos um meio de eles chegarem lá. Não. Circula hoje nos jornais a informação que a prefeitura adiou para 2013 a reforma do transporte público da cidade, uma reforma que jamais virá, como até Tom Cruise sabe (no filme "Encontro Explosivo", ele diz pra Cameron Diaz que não gosta da expressão 'um dia' porque ela é sinônimo de 'nunca'). Espertinho, apesar da expressão de quem soltou pum no batizado, Gilberto quer que o próximo prefeito descasque o abacaxi. Certamente, já tá contando com a derrota nas urnas.

Faz sentido tanto descaso com a classe baixa. Porque só mesmo em terra de novo rico o transporte público é tratado como problema de pobre. Não é preciso ter vivido no exterior, qualquer seriado enlatado ou filme mostra personagens pegando trem, metrô e ônibus pra resolver seus problemas. Claro que, nas grandes cidades, eles dispõem de transporte público, o que não acontece aqui. Mas enquanto postergar os investimentos nessa área, o governo-seja-qual-for vai afastar mesmo a classe média do ônibus. E todo mundo que vive em terra de novo rico sabe que só quando a classe média toma contato com certos serviços é que eles melhoram. Enquanto os problemas urbanos de São Paulo forem só 'coisa de pobre', as tentativas de solução serão adiadas até o dia de São Nunca.



quinta-feira, 8 de julho de 2010

Imitação da Arte



É de arrepiar a sinopse do filme "O medo do goleiro diante do pênalti", que Win Wenders dirigiu em 1971: "Baseado em obra de Peter Handke, o filme é centrado na figura do goleiro Joseph Bloch. Após ser substituído em uma partida, ele deixa o campo e passa a noite com uma atendente de cinema. Sem motivos, ele estrangula a moça na manhã seguinte".





Win Wenders, obviamente, não sabia nem poderia prever a existência do Goleiro Bruno do Flamengo - o rapaz perdeu sobrenome e ganhou essa marca registrada ao protagonizar uma das mais macabras tramas registradas pela imprensa nacional. Uma trama que ganha detalhes cada vez mais sórdidos a cada anoitecer e que requenta, de quebra, os preconceitos nossos de cada dia. Win Wenders deve ter feito um filme denso, como é em geral sua obra (eu não lembro de ter visto, só guardei o título, lindo). Mas nada que ele pusesse no roteiro no começo dos anos 70 chegaria aos pés da assustadora realidade que se revela.

Ao contrário de Wenders, que usou sua obra para discutir a coexistência nem sempre pacífica entre homem e sociedade, o goleiro Bruno devia acreditar que a vida era outro tipo de cinema - aquele dos filmes de violência gratuita, em que se degolam pessoas como se passa manteiga no pãozinho. Bruno e seus amigos - Macarrão, Coxinha, Paulista e outros de apelidos semelhantes - enxergaram a paranaense Eliza como uma figurante qualquer num filme do Steven Seagall ou do Jean-Claude Van Damme.


A figurante que, no começo, era apenas uma moça gostosa, disposta a se divertir e levar diversão aos jogadores - uma maria-chuteira, como dizem no futebol - resolveu ter fala no filme projetado na cabeça de Bruno e sua turma. Já não bastava ter engravidado? Eliza e Bruno tiveram suas noites de farra e da folia nasceu um garoto, cuja paternidade ela buscava reconhecer. Não devem ter sido conversas muito amenas, essas de Bruno e da possível mãe de seu filho. Eliza devia jogar pesado, como em geral jogam as meninas que se envolvem com esses caras.


Tudo poderia ter acabado em relativa paz. Ele pagaria a pensão do moleque, a mulher faria caras e bocas, mas o aceitaria de volta, e Eliza continuaria sua saga de colecionadora de fotos com jogadores. Aqui e ali surgem comentários sobre a vida assanhada da moça, que teria feito filme pornô e tudo. É como se cada cena de sexo reduzisse a culpa de seus assassinos e explicasse, por si só, o crime.

O erro trágico de Bruno e Eliza foi ter seus caminhos misturados aos de figuras ensandecidas e sem a menor noção de limite entre vida e ficção. A figurante deu problema? Nós a matamos e atiramos seu corpo aos cães. Literalmente. O que passa na cabeça de alguém que faz isso? Eu tento imaginar o processo mental - sim, há um - que leva alguém a considerar as cenas de um filme de ação suficientemente plausíveis para ser colocadas em prática. Matar alguém já está além. Matar friamente, então. E o que veio a seguir, nem se fala. O que espanta é que não foi um cara sozinho que fez. Havia um grupo de homens em torno de uma moça. E será que nenhum deles por um instante que fosse pensou que aquilo poderia dar algum problema? Ou será que ele viu a cena como mais um filme de ação, em que o prédio explode e ninguém quer saber quem morreu ou quem matou.


Para completar o quadro de horror, o pai da vítima agora foi apontado como possível estuprador de menores no passado. E a mãe da moça morta, a mãe que sumira, voltou das brumas de avalon para reivindicar a posse do menino, agora um órfão que certamente terá direito à pensão do goleiro. Há sempre um interesse esquivo fazendo pulsar certos corações.

E como se nada disso bastasse, o mundo do twitter se divide entre quem considere Bruno perseguido por que é preto e ex-favelado ou entre quem veja no caso inspiração para as mais insólitas piadas. No começo, algumas até que foram engraçadas - mas os detalhes surgidos dia a dia mostram que a turma de Bruno não estava pra brincadeira. E o riso, que já era amarelo, virou esgar.



Sem querer, quem melhor resumiu a trama de horror foi o menor que entregou o crime todo. Quando saiu do bagageiro e surpreendeu a moça, na van do goleiro, o menor teria olhado pra ela e dito: "Perdeu, Eliza". Tantas outras Elizas, que empataram ou ganharam o jogo de virada, estão por aí, levando suas vidas, apresentando seus programas, esquiando em suas estações de esqui preferidas. Eliza acabou despedaçada num canil. Pois é. Eliza perdeu e perdeu feio. Foi seu erro. Até pra morrer é preciso não cometer certos pecados.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

A pátria descalça


Acabou nosso carnaval fora de época, nossa micareta uniformizada perdeu o fôlego. As camisetas cor de canário voltam para o fundo das gavetas e as bandeirinhas, penduradas como se vivêssemos numa festa junina ufanista, continuarão balançando até que o sol consuma suas cores e intenções. E do último jogo do Brasil nesta copa sul-africana vai me ficar na memória a expressão agoniada de Daniel Alves segundos antes de cobrar a falta que poderia dar a chance de um empate ao Brasil. Foi o mais lindo e triste olhar de toda a partida. Nos ombros daquele moço escoravam-se as esperanças de toda uma torcida. Não deu.

Curioso país este, que apoia suas alegrias em 11 pares de pés. Toda Copa eu sempre me pego pensando no quanto há de irreverente e infantil em paralizar tudo por causa de um jogo. Não sou contra, não. Pelo contrário. Acho divertido, mais que isso, acho subversivo fechar banco, escola, shopping, tudo aquilo que move a máquina capitalista, apenas para assistir a uma partida de futebol. Trocamos o que se convencionou chamar de sério pelo prazer de poder gritar gol como se aquilo fosse nos salvar a vida, pela alegria de abraçar quem estiver do lado, igualmente feliz por mais um ponto no placar.

Pena que nossa macunaimice seja nosso calcanhar de aquiles. Por essa disposição de trocar tudo por uma tarde de 0lho no jogo ou por três dias de absoluta folia carnavalesca, enfim, por nosso olhar sobranceiro às coisas sem graça da vida, por tudo isso é que nossos colonizadores - de ontem e de hoje - nos convenceram sobre nossa inferioridade nacional. Aos olhos dos países sérios, somos uma imensa taba em constante quarup. Nada mais equivocado do que aceitar passivamente essa opinião eurocentrada.

Nossos problemas não vêm de nossa disposição para a alegria e a exuberância. Nossos problemas vêm justamente dos que nos enxergam como meros espíritos infantis - como se ser infantil fosse defeito e não qualidade. Embora os explorados históricos fôssemos nós, aceitamos a crítica como quem tem uma eterna culpa no cartório. Duvidamos mesmo da sinceridade de nossa tristeza, no momento em que o juiz japonês apitou o fim da partida contra a Holanda.

Assumamos, senhores, que a tristeza foi autêntica. Um pouco histérica, reconheço. Exagerada, sem dúvida. Mas o que faz a infância mais divertida não é justamente a tendência ao exagero? Meio termo e juízo são vícios que adquirimos com o passar do tempo. E dos quais só nos livramos, dizem, quando a velhice chega. Hoje, na Avenida Paulista, as expressões eram de real desamparo. O Brasil tinha perdido um jogo, estava fora da Copa e a vida teria de voltar aos trilhos. De repente, o que seria um quase feriadão transformou-se novamente numa enfadonha tarde de sexta-feira.

O mais irônico é perceber que a tristeza não será dividida com quem perdeu o jogo. Boa parte da seleção do Dunga fica lá pelas Europas mesmo. Da mesma maneira que não despertaram toda nossa empatia, os jogadores parecem lamentar ter perdid o prêmio em dinheiro e não o orgulho de ter bordado mais uma estrela no uniforme. Permanecem distantes de nossa cara de cachorro que caiu da mudança, alheios à nossa fossa. Que logo passará, é verdade, porque crianças não guardam mágoa por muito tempo.



terça-feira, 29 de junho de 2010

Valeu, Guzik!


Eu pensei em escrever várias coisas sobre o Alberto Guzik, o mix de professor, crítico, jornalista, autor e ator que morreu sábado. Mas tudo, tudo o que eu pensei, ou resvalava num chororô melodramático, ou revelava a pouca intimidade que eu e Guzik tínhamos. Nós nos dávamos muito bem, é bom que se diga. Eu via as peças dele, ele via as minhas, a gente sempre se festejava quando nos encontrávamos. Aliás, ele foi o primeiro incentivador destes olhares loiros, falava pra meio mundo na Praça Roosevelt. Mas não fomos amigos, no sentido mais íntimo da palavra. Calhou de ter sido assim.

Tenho várias imagens guzikianas na minha cabeça - ele no Jornal da Tarde, ele no refeitório do Estadão, ele caminhando com seus glocs pela Rua Augusta... - mas a que ficará mesmo é a de uma palestra que ele deu para o Núcleo dos 10, um conglomerado de candidatos a dramaturgos orientados pelo Luis Alberto de Abreu, e do qual faziam parte Marici Salomão, Beatriz Gonçalves, Nelson Baskerville, Michel Fernandes, Filastor Brega e eu, entre vários outros. Uma noite, o Guzik topou ir até lá e falar com a gente sobre teatro, arte, literatura - assuntos que ele dominava como poucos. Foi um bate-papo lindo, com o Guzik falando do papel de antena que os artistas têm. Da necessidade que a sociedade tem da arte, assim como tem da saúde, da educação e do transporte. Da nossa função e missão nesse formigueiro.

Lembro que, no final, dei carona pra ele. Na conversa, eu falava do dilema entre trabalhar no jornal e escrever teatro, quando ele - diante de um sinal fechado - me olhou sério: "Marinho, nem tente escapar: você é um artista e tem obrigação de levar isso adiante". Foi algo meio assim, forte, sem margem para discussões. Até hoje lembro do tom da voz.

Mas o que eu gostaria mesmo de falar sobre o que foi receber a notícia da morte do Guzik alguém já escreveu. Sergio Roveri postou em seu blog um lindo texto sobre o amigo que partiu. Não ousarei fazer minhas as palavras do Sergio, mas me permito convidar os leitores destes olhares loiros a ler o Só no Blog. O link é http://www.roveriblog.blogspot.com/

terça-feira, 22 de junho de 2010

Tá no fim! Corre!


A temporada paulistana de "Hoje tem Mazzaropi" tá chegando ao final. Acaba domingo, dia 27. Ainda dá pra assistir na sexta (21h30), sábado (21h) ou domingo (20h). O Teatro União Cultural fica na Rua Mário Amaral, 209, próximo ao Metrô Brigadeiro. Tem estacionamento conveniado. E os ingressos custam de 20 a 40 reais.

É uma montagem que me dá prazer assistir, porque o elenco todo - Júlio Lima, Iara Jamra, Dani Mustafci, Maria Carolina Dressler, Silvia Poggeti e Beto Galdino - dá show.

A peça recebeu elogios do Jefferson del Rios, no Estadão, e do Dirceu Alves, na Vejinha. E do Luiz Carlos Merten, em seu blog (leia abaixo).

Apareça lá, será um prazer.



Hoje tem marmelada? Não, Mazaropi!
por luizmerten
Seção: Sem categoria
21.junho.2010 21:50:35
Fico sempre em dúvida se digo ‘a’ Reserva Cultural ou ‘o’ Reserva. Afinal, é cinema, masculino. Fui ontem rever ‘O Profeta’ no Reserva, após o jogo do Brasil. Não havia muita gente – a Copa do Mundo é péssima para o negócio do cinema, mas eu insisto que vocês vejam o filme de Jacques Audiard com Tahar Rahim. Puta filme bom. Já havia gostado (muito) quando o vi em Cannes, no ano passado. Ontem, gostei mais ainda. E como é triste! A solidão do personagem, que consegue unir todo mundo contra, me destroçou, mas o final é ótimo. Não conto para não me acusarem depois de tirar a graça. Estou em casa, e cansado. Corri muito nesta segunda-feira, primeiro para tirar meu visto do México, depois para entrevistar a atriz de ‘Flor do Deserto’. Que que é aquilo? Mulher mais linda, e inteligente, afetiva. Ainda não postei nada sobre ‘Hoje tem Mazaropi’. O novo texto de Mário Viana está no Teatro União Cultural. Não sei se gosto tanto de Mazaropi quanto da representação que fazem dele outros artistas. Havia adorado ‘Tapete Vermelho’, de Luiz Alberto ‘Gal’ Pereira, com Matheus Nachtergaele como um pai que rasga coração para introduzir o filho pequeno no universo de Maza. O texto de Mário Viana agora imagina um primo do cômico e sua filha que não tem um pingo de talento, mas quer ser ‘artista’. Como Mateus Nachtergaele, Júlio Lima cria um Mazaropi marasvilhoso. E o texto é ingênuo na medida certa, jogando com o maniqueísmo de forma inteligente. O próprio Mário Viana estava no teatro no sábado à noite. Trabalhei com o Mário no ‘Estado’. Como autor, adora uma escatologia. Ele definiu ‘Hoje Tem Mazaropi’ com seu texto mais familiar e eu acrescento – ‘em termos’. Numa das cenas, em busca da filha que partiu, Maza, a mulher e a irmã da garota vão parar na fazenda de um coronel que acaba de morrer. Seu filho aparece carregando um ‘trabuco’ no meio das pernas, uma indecência divertida, bem como o Mário gosta. Como o texto é cifrado, cheio de referências – para quem quiser identificar – fiquei pensando se não será, aquele ‘exagero’, por causa de Davi Cardoso, que usava umas calças muito apertadas, com a genitália escancarada. Era um perigo, o cara. Não por isso, claro, mas vejam o espetáculo. É bonito. E o Maza merece, com seu jeca que virou emblema do humor caipira – e popular – brasileiro.

sábado, 19 de junho de 2010

Memórias de Viagem - Saramaguianas


Esta é especial. Em 2007, realizei um sonho nascido quando li "Memorial do Convento" - aquele que sugeri ao meu ex-chefe que me desse, quando me mandou embora. Estive em Portugal e fui visitar o convento de Mafra, o convento do memorial. O prédio cuja construção inspirou o escritor José Saramago é lindo, enorme, megalômano. Mal se consegue imaginar o príncipe dom João puxando terços pelos corredores, enquanto a rainha dona Maria gritava, alucinada, em outra ala. A Carlota Joaquina, princesa, ficava em Queluz, bem longe da família real.

A visita a Mafra - que fica a uma hora e pouco de Lisboa, dá pra pegando um ônibus que sai da estação República do metrô alfacinha - deve ser guiada. Lembro que a guia que nos acompanharia reuniu o grupo - havia vários ingleses e outros anglo-falantes - e avisou: "Vou acompanhar-vos durante a visita, mas nem adianta perguntar-me nada, pois sou agente de segurança e não guia turístico". Não satisfeita em proferir isso em português, a moça traduziu tudo direitinho pro inglês.

O começo foi estranho, mas a visita foi bem legal. Recomendo vivamente - assim como aviso pra não perderem tempo e correrem até a doçaria em frente, onde se fabricam (se não me falha a memória) fradinhos, que são uns doces de gemas d'ovos, amêndoa e toneladas de açúcar. Misteriosamente, não afetam a glicemia de ninguém. Devem ser docinhos bentos.


sexta-feira, 18 de junho de 2010

O evangelista


Eu devia ter desconfiado quando escutei alguém comentar na academia de ginástica: "O Saramago, é?" Onde eu estava com a cabeça para achar que, em pleno dia de revanche sérvia sobre a Alemanha, alguém ia ter cabeça pra pensar em José Saramago se não fosse por um só motivo... Descobri só no fim da tarde, ao chega em casa, que Saramago morreu.


Ok, não dá pra dizer que a morte de um homem de 87 anos, com a saúde frágil, nos pegue de surpresa. Mas que chateia, chateia e muito. Se a gente for pensar na lista de calhordas, malfeitores e escrotos que povoam o mundo, haveria muito mais candidatos ao cargo de morto ilustre de hoje. Só que nem tudo na vida segue uma lógica - aliás, quase nada. Aceita-se e pronto. Com a morte não se discute.


Saramago começou a escrever tarde. Quer dizer, tentou escrever cedo, mas seu primeiro romance é bem meia-boca. Ele mesmo reconhecia. Ao contrário de muita gente que insiste em depurar a própria mediocridade à custa dos leitores incautos, Saramago trabalhou muitos anos como jornalista até criar coragem e, já passado dos 50 ou perto disso, retomar a leitura. A maturidade fez um bem danado ao escritor.


Saramago já era um nome conhecido e ainda não tinha passado por minhas mãos. Eu sou sempre meio lerdo pra conhecer "autores novos". Mas um dia, em 1998, o meu então editor me chamou à sala dele pra me demitir. Acho que fui a primeira pessoa que ele demitiu na vida e isso deixa demitidor bem desconfortável. Eu me mantive calmo - não porque não precisasse do emprego, mas porque não nascera ali dentro e poderia perfeitamente sobreviver fora de lá (o que se provou a mais pura verdade). Tentando me acalmar - quando quem estava nervoso era ele - o chefe disse um tipo de "se eu puder fazer alguma coisa...". Em sua mesa, havia um pacote de livros que ele ganhara do Círculo do Livro e, entre os livros, "Memorial do Convento". Pedi o livro como uma espécie de "lembrança dos bons tempos" e ele nem discutiu. Meu primeiro Saramago veio assim, meio chantagem, meio truque.


Li o livro enquanto fazia um frila pro Estadão, em Foz do Iguaçu. As primeiras páginas causaram estranhamento, o que esse homem tem contra o ponto, meu Deus? Até que entendi o ritmo, comecei a respirar conforme o texto e a 'ouvi-lo' com sotaque lusitano. Saramago tem humor, sonoridade lusa, é uma perfeição de estilo. De lá pra cá, li coisas lindas dele: "História do Cerco de Lisboa", "A Jangada de Pedra", "O Evangelho segundo Jesus Cristo", "Ensaio sobre a Cegueira". Foi um belo reencontro com a literatura portuguesa e que me estimulou a redescobrir muitos autores brasileiros.

Nem tudo o que ele escreveu era bom. As peças de teatro eram barrocas. E alguns romances... enjoadinhos. Saramago virou uma persona, um esquerdista de plantão, o velho sábio da montanha. Mas volta e meia, saía alguma coisa legal. Lembro que, durante o lançamento de "O Evangelho...", ele contou que vira o título ao passar por uma banca de jornal em Sevilha. Alguns passos depois, a ficha caiu, a expressão era o máximo e ele voltou pra reler. Não encontrou nada, mas ficou com o título na cabeça.

Dele, lembro sempre de uma coisa linda que ele escreveu sobre a mulher, Pilar. Disse que valeu a pena ter vivido até depois dos 60, para poder conhecê-la. Ele disse, obviamente, de um jeito mais bonito e poético e é muito bonito. Está nos Cadernos de Lanzarote, caso alguém se anime.

De Saramago basta saber que deixou lindos livros, que soube burilar e mexer com a língua portuguesa. Para quem gosta de escrever e ler, ele foi um dos grandes. Nos dias que correm, isso já é um presente dos deuses.

domingo, 13 de junho de 2010

Doze de Junho



Tem data que fica na memória. 12 de junho, por exemplo, resplandesce no meu diário íntimo. Mesmo que eu quisesse esquecer, o sistema capitalista inteiro se mobiliza pra me lembrar que 12 de junho tá aí, tá chegando, não esqueça, etc etc. Num dia 12 de junho, 29 anos atrás, eu tomei meu primeiro avião. Acho que fazia sol, já não lembro. Mas não esqueço a data e toda vez que escuto uma música do Caetano, tenho uma fuga rápida para o pretérito mais que perfeito. "Minha mãe chorava em ai, minha irmã chorava em ui e eu nem olhava pra trás". No dia em que eu fui embora - de casa e do país - não teve nada demais. A não ser pra mim.



Meu primeiro voo foi para a Europa, a bordo de um avião da Lineas Aereas Paraguayas, a LAP. Naquele século, viajar de avião era chique. Viajar para fora do país era uma coisa. Viajar para a Europa, então, era tipo sonho dourado. Mesmo que fosse a bordo de um avião da LAP. O destino final era Madri, mas a passagem baratíssima dava direito a um percurso de romaria: Campinas (sim, saía de Viracopos) - Assunção - Salvador - Madri. Acho que a viagem durou umas 500 horas, mas era barato e, pra quem tava habituado a ir e voltar de Pernambuco em possantes ônibus da São Geraldo ou da Itapemirim, 500 horas eram bico. Era avião, ora bolas.

A aeromoça falava qualquer idioma, menos português. Acho que não falava espanhol também. Devia ser guarani. Vejam que falta faz a cultura geral. Vai ver, era guarani e por isso ela não entendia quando eu pedia "água". "No compreendo". Meu Deus, como será água em espanhol? O Wanderley, que viajava comigo, remexia nas raízes familiares hispânicas e concluía que água era água. "No compreendo". Deve ser por isso que, atualmente, bebo água feito um camelo toda vez que embarco num avião. Trauma.

Foi nessa viagem que descobri uma coisa fascinante. E assustadora. As asas dos aviões não são inteiriças. São feitas de pedaços que se dobram, abrem, mexem, tudo para fazer o bicho acelerar ou frear, quando pousa. Como eu não sabia disso, levei um puta susto quando o avião pousou em Madri e as asas começaram a se 'desmontar' para todo lado. Profeta da desgraça, eu só acertei em não sair gritando pelo avião, já que ninguém parecia se importar com o fato. Devia ser normal, mesmo que fosse esquisito. Era.

Juro que até hoje, toda vez que o avião pousa, eu olho as asas e lembro disso. Do meu susto. Fico contente em saber que ainda sobrevive em mim o capiau espantado, que saiu da zona norte de São Paulo para a Gran Via de Madri, sem nem imaginar que era verão na Europa e o sol custava a se por. Não falava espanhol, tatibitava no inglês, o francês não chegava ao oui, mon amour. E ainda assim eu embarquei naquele avião da LAP num dia 12 de junho.

Não vou me gabar nem cantar de galo, assumindo uma postura corajosa que nunca existiu. O corajoso desafia os medos e eu acho que nem medo tive. Não fazia ideia do que ia encontrar, ponto. Tava apaixonado, tava com sede de vida e fome de mundo. Minha agenda estava com as páginas em branco e o que ficou escrito nela foi porque uma coisa puxa a outra, a vida não para e tinha razão o Caetano quando cantava que era preciso estar atento e forte. Não havia tempo pra temer nada. Eu era um tropicalista na prática.

Uns meses depois daquele 12 de junho, eu caminhava sozinho por Lisboa, acho que pelo Rocio, no centro. Era noite e eu ia pro metrô, quando resolvi subir a pé a Avenida da Liberdade, olhando os turistas que tomavam seus drinques nos bares do passeio público. E eu sem um puto no bolso, a não ser o bilhete do metro. Havia muita estrela no céu - o céu de Lisboa é uma coisa inesquecível, de dia ou de noite, o motivo eu não sei, só sei que é. E eu, sozinho ali, cantarolando "Mamãe coragem", do Caetano. "A vida é assim mesmo, eu fui embora" e andava. "Eu vim, eu quis, eu fiz, seja feliz, mamãe, não chore". E eu chorei. A gente sempre chora no próprio parto.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

O Simba Safári da Paulista




E eis que rolou mais uma parada ABCDEFGHIJKLMNOPQRSTUWVXZ (eu sempre erro a sigla, então já tasco o alfabeto inteiro, vocês escolhem). A Paulista e a Consolação ficaram tomadas, gente de todos os sexos se beijava adoidado - houve alguns casos até de beijos em trios e quartetos, e a música eletrônica mandou ver o tempo todo. Aprendi a lição do ano passado e desta vez fui totalmente franciscano: grana espalhada por vários bolsos, o celular guardado em casa e radar ligado pra qualquer aperto mais forte que algum amasso por interesse. Deu certo.




Desta vez, fiquei também mais ligado nos trios elétricos. Alguns, como o do Casarão, mereciam um prêmio: todos os participantes estavam animadíssimos e fantasiados de lordes franceses ou algo que o valha, tudo branco. Dava um efeito legal na avenida, à luz do sol que se mostrou um simpatizante de primeira. O segundo carro a merecer aplausos foi o da drag Saletti Campari, a eterna Marilyn Monroe de Campina Grande. Agitada e agitadora, Saletti arregimentou a ex-prefeita Marta Suplicy, o apresentador Leão Lobo e atrizes do elenco de "Viver a Vida". Acho que foi o único carro (dos que eu vi) que tinha celebridade no topo. Os outros transportaram anônimos mesmo - e isso sempre foi o grande barato da parada paulistana: a festa é dos desconhecidos, dos comuns, dos eus e vocês.


O problema é quando os comuns são mal escolhidos. Vamos combinar uma coisa. O nego ganha um passe livre pra acompanhar a parada do alto de um trio elétrico e desfila pela avenida Paulista com expressão de quem está assistindo um torneio de gamão em Helsinque. Nem um sorriso, uma requebradinha que seja. Nada. O popular olhar de peixe morto, vocês lembram? Eu fico impressionado com isso.


Não acho que todo mundo deva sair pulando feito uma minhoca epilética a cada Lady Gaga ou Madonna... mas caramba, nem I Will Survive anima esse povo do alto dos carros. Em geral, são passageiros de carros bancados pela iniciativa pública - prefeitura, sindicato... São pessoas que parecem estar lá porque foram obrigadas. Será que alguém é obrigado a subir em trio elétrico?


Mas isso nem é o pior. O desagradável mesmo é quando o peixe-mortismo do olhar é substituído por uma certa abordagem antropológica. Lá do alto, eles olham a patuléia que - no asfalto - dança, canta, se beija e se embebeda de vinho Sangue de Uva (eu reparei no rótulo), enfim, a turma do trio olha a galera do asfalto como se visse uma manada de seres exóticos. Agem como se estivessem no Simba Safári, percorrendo devagar o reino das suricatas. Destinam aos anônimos pedestres um olhar de desdém, com se estranhos fossem os que vão à parada para se divertir.


Se alguém tiver acesso à organização da parada, pede pra eles serem mais seletivos na hora de distribuir o bilhete único dos trios. Quem quer fazer carão e pose de esnobe, que fique em casa. Ou no mesmo andar que a patuléia. Quem sabe a alegria contagie.