Eu devia ter desconfiado quando escutei alguém comentar na academia de ginástica: "O Saramago, é?" Onde eu estava com a cabeça para achar que, em pleno dia de revanche sérvia sobre a Alemanha, alguém ia ter cabeça pra pensar em José Saramago se não fosse por um só motivo... Descobri só no fim da tarde, ao chega em casa, que Saramago morreu.
Ok, não dá pra dizer que a morte de um homem de 87 anos, com a saúde frágil, nos pegue de surpresa. Mas que chateia, chateia e muito. Se a gente for pensar na lista de calhordas, malfeitores e escrotos que povoam o mundo, haveria muito mais candidatos ao cargo de morto ilustre de hoje. Só que nem tudo na vida segue uma lógica - aliás, quase nada. Aceita-se e pronto. Com a morte não se discute.
Saramago começou a escrever tarde. Quer dizer, tentou escrever cedo, mas seu primeiro romance é bem meia-boca. Ele mesmo reconhecia. Ao contrário de muita gente que insiste em depurar a própria mediocridade à custa dos leitores incautos, Saramago trabalhou muitos anos como jornalista até criar coragem e, já passado dos 50 ou perto disso, retomar a leitura. A maturidade fez um bem danado ao escritor.
Saramago já era um nome conhecido e ainda não tinha passado por minhas mãos. Eu sou sempre meio lerdo pra conhecer "autores novos". Mas um dia, em 1998, o meu então editor me chamou à sala dele pra me demitir. Acho que fui a primeira pessoa que ele demitiu na vida e isso deixa demitidor bem desconfortável. Eu me mantive calmo - não porque não precisasse do emprego, mas porque não nascera ali dentro e poderia perfeitamente sobreviver fora de lá (o que se provou a mais pura verdade). Tentando me acalmar - quando quem estava nervoso era ele - o chefe disse um tipo de "se eu puder fazer alguma coisa...". Em sua mesa, havia um pacote de livros que ele ganhara do Círculo do Livro e, entre os livros, "Memorial do Convento". Pedi o livro como uma espécie de "lembrança dos bons tempos" e ele nem discutiu. Meu primeiro Saramago veio assim, meio chantagem, meio truque.
Li o livro enquanto fazia um frila pro Estadão, em Foz do Iguaçu. As primeiras páginas causaram estranhamento, o que esse homem tem contra o ponto, meu Deus? Até que entendi o ritmo, comecei a respirar conforme o texto e a 'ouvi-lo' com sotaque lusitano. Saramago tem humor, sonoridade lusa, é uma perfeição de estilo. De lá pra cá, li coisas lindas dele: "História do Cerco de Lisboa", "A Jangada de Pedra", "O Evangelho segundo Jesus Cristo", "Ensaio sobre a Cegueira". Foi um belo reencontro com a literatura portuguesa e que me estimulou a redescobrir muitos autores brasileiros.
Nem tudo o que ele escreveu era bom. As peças de teatro eram barrocas. E alguns romances... enjoadinhos. Saramago virou uma persona, um esquerdista de plantão, o velho sábio da montanha. Mas volta e meia, saía alguma coisa legal. Lembro que, durante o lançamento de "O Evangelho...", ele contou que vira o título ao passar por uma banca de jornal em Sevilha. Alguns passos depois, a ficha caiu, a expressão era o máximo e ele voltou pra reler. Não encontrou nada, mas ficou com o título na cabeça.
Dele, lembro sempre de uma coisa linda que ele escreveu sobre a mulher, Pilar. Disse que valeu a pena ter vivido até depois dos 60, para poder conhecê-la. Ele disse, obviamente, de um jeito mais bonito e poético e é muito bonito. Está nos Cadernos de Lanzarote, caso alguém se anime.
De Saramago basta saber que deixou lindos livros, que soube burilar e mexer com a língua portuguesa. Para quem gosta de escrever e ler, ele foi um dos grandes. Nos dias que correm, isso já é um presente dos deuses.
eu fiquei muito triste qd soube de manhã. belíssima resenha. eu amo memorial do convento, mas gosto e amo vários outros. queria q ele vivesse pra sempre e sempre igual. beijos, pedrita
ResponderExcluirEu gosto muito de Cadernos de Lanzarote - e acho que pouca gente leu... Beijos
ResponderExcluirMário, mais uma vez, belo texto. Saramago é, de fato muito bom. Além de excelente escritor, sempre se colocava muito bem nas polêmicas. Edi
ResponderExcluirObrigado, meninas.
ResponderExcluir"Lanzarote", eu li aos pedaços, quando ia à praia. Nunca terminei.
E lembrei depois que gostei muito de "A viagem do elefante" e do final de "As intermitências da morte".