terça-feira, 16 de novembro de 2010

Entre tapas e beijos


Nos últimos dias, o mundo gay e o noticiário policial voltaram a se encontrar. No primeiro caso, um rapaz de 18 anos foi preso ao beijar um garoto de 13 dentro de um cinema de shopping. No segundo, um grupo de meninos bem criados espancou quatro rapazes que encontraram ao longo de uma caminhada pela avenida Paulista. Em comum, todos os envolvidos - exceto o menino de 13 anos - passaram a noite em alguma cela do nosso educativo sistema presidiário. Todos foram libertados no dia seguinte, sob a alegação que não ofereciam perigo à sociedade em volta. E assim, a Justiça, cega e soberana, colocou no mesmo grau um beijo e um soco.

No caso do beijo, o caçula da dupla disse ao delegado que não foi obrigado a nada, que marcou o encontro pela internet e que não teria contado ao outro sua verdadeira idade. Quis beijar, beijou e pronto. Ele é daqueles que nasceu já ouvindo a falação na TV, nas rádios e, quem sabe, em casa, sobre os direitios de todos se exprimirem, etc etc, e acreditou no que ouviu (nossa geração ainda mais fala que pratica). O rapaz de 18 anos, estudante de cursinho pra Engenharia, foi considerado pelo juiz tão jovem e inexperiente quanto o outro e, por isso, foi liberado. E como canta Chico Buarque, "aí, a notícia carece de exatidão": o que acontece aos dois jovens depois do vendaval? O beijo vira namoro ou amizade? Os pais vão deixar? Do alto de seus 13 topetudos anos, o menino vai assumir mesmo sua homosexualidade ou tudo virará mais uma loucura de verão, daquelas que os netos nem imaginam ter acontecido na vida do vovozinho gagá?

Já sobre os agressores da Avenida Paulista, muita coisa foi dita, especialmente nas redes sociais. Até onde eu li, ninguém veio a público defender os meninos - a não ser alguns dos pais e o advogado pago pra isso. Sair por aí espancando gente a torto e a direito é mesmo indefensável. E parece que os tapas doem ainda mais porque - salientavam os noticiários - eram cinco jovens de classe média, alunos de colégios particulares, com famílias estabelecidas e pai com carro na garagem. Fossem filhos de diaristas com faxineiros, tênis de marca falsa comprada na 25 de março e saídos de um baile funk, à espera do bumba, o espanto seria menor?

A gangue da Paulista vinha de uma festa em Moema - bairro por excelência da classe média paulistana mais conservadora - e, horror dos horrores, alguns deles teriam sido paquerados por suas vítimas. Um piscar de olhos mais insinuante ou um convite mais provocativo - e acendeu-se o estopim. Isso, é claro, se o que os agressores contaram a verdade. Algumas testemunhas negam qualquer gesto por parte das vítimas... As testemunhas desmentem até mesmo a ocorrência de uma briga, onde uns batem nos outros respectivamente. Quando só um lado bate e o outro apanha, a Ação tem outro nome: massacre.

No argumento da defesa, mostra-se que teria havido, sim, homofobia - mas estimulada pelos devassos paqueradores. Por si só, é um argumento abjeto. É como justificar o estupro porque a mulher usa minissaias provocantes. Para mim, o que houve foi algo mais que simples homofobia (e simples, aqui, não julga o mérito). Os meninos juntaram-se para agredir qualquer pessoa que considerassem fisicamente inferior a eles. Devem ter pego só "inimigos" magros e miúdos, duvido que tenham encarado um gay malhado de academia ou um negão que faz bico como segurança de balada. Com tipos assim, os cinco valentões da Paulista afinariam bonito. Mais fácil catar o casal gay que passeia de mãos dadas ou o "baianinho" que estava indo trabalhar. Uso aqui os termos mais politicamente incorretos e de propósito. Isso vai facilitar a leitura, caso alguém ligado aos trogloditazinhos caia por engano neste blog.

Os pitbulls com cérebro de pulga mostraram-se mais deslocados na Paulista do que qualquer pai de família que veste a melhor roupa na criançada e tira o domingo para ver os enfeites de Natal na avenida dos ricos. A Paulista transformou-se num território de manifestações públicas variadas, da vitória do Corinthians à comemoração pela vitória da Dilma, da São Silvestre ao show do réveillon... E da Parada Gay. Antes confinada a um domingo de junho, a Parada Gay rasgou o calendário e seus participantes decidiram que a Paulista é deles quando quiserem. Casais de rapazes passeiam de mãos dadas e pares de meninas trocam beijos na porta da lanchonete. De uns tempos pra cá, os mais velhos seguiram o exemplo dos mais jovens e a idade média dos casais gays vem subindo. Aumentou a manifestação de um lado, seria de esperar uma reação do outro. Mas nem isso tem rolado, pelo menos quando não deixam escapar cinco ferinhas de Moema sem focinheira.

E mais. Usar como defesa o argumento de que os meninos têm nota boa na escola chega a comover de tão patético. Prova que essas mães ou não conhecem o filho que pariram ou conhecem e, no fundo, sabem que o que eles fizeram é mesmo indefensável.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

A cor da China


Para os chineses, a desgraça tem cor pastel. À medida que a história dos amantes condenados avançava em "Lanternas Vermelhas", o esfuziante colorido ia desaparecendo do cenário, dos figurinos e das maquiagens - sobrando apenas para a luz, deslumbrante e explosiva no seu final (na foto ao lado). A tristeza é transparente, lá para os lados de Beijing.

A retina da memória é renitente e segura em suas dobras o que marcou mais. E assim saímos do espetáculo apresentado pelo Balé Nacional da China com os olhos repletos de cores vibrantes e a alma tocada pela triste sina dos amantes, a jovem concubina do senhor feudal e um ator da Ópera de Pequim.

"Lanternas Vermelhas" nasceu como filme em 1991, dirigido pelo mesmo Zhang Yimou que criou o balé. Lanternas, o filme, conquistou o Festival de Veneza e chegou a ser indicado para o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro (perdeu para o suíço "A Viagem da Esperança", alguém lembra?). Lanternas, o balé, estreou em 2001 e não saiu mais de cena.

O que torna o espetáculo marcante não é apenas a história - amores perseguidos sempre conquistam nossa simpatia, já dizia o velho Shakespeare. Há um toque de mestre na maneira com que o cineasta Yimou (também diretor de óperas e de grandes eventos, como as cerimônias dos Jogos Olímpicos de Pequim) desenrola sua trama.

Criada nos anos 50 para ser um exemplo chinês para o mundo na categoria da dança, a companhia de balé nacional mostra que o investimento não foi em vão. Seus bailarinos flutuam, com técnica e graça, mas também com profunda expressividade. O que Zhang Yimou fez foi acrescentar à técnica perfeita alguns dos mais tradicionais elementos da cultura chinesa. E, aqui e ali, dar toques de influências ocidentais - o primeiro solo da jovem concubina, quando descobre que deverá esquecer o seu amor em nome de um casamento político tem movimentos que lembram as coreografias exóticas que Gene Kelly criou para "Cantando na Chuva" e "Sinfonia de Paris".
Alguns dos melhores momentos de "Lanternas Vermelhas" estão justamente nessa união do oriente com o ocidente. A cena do jogo de mah jong, uma espécie de gamão ou dominó pequinês, é deslumbrante, com todos os dançarinos praticamente imóveis em torno das mesas. Outro momento deslumbrante: o defloramento da concubina, uma cena de extrema violência, acontece atrás de uma imensa parede de papel de arroz. O jogo de sombras, uma tradição popular chinesa, explode em dramaticidade. Arrepia. Arrepiante também o final, com o vermelho invadindo o cenário de maneira inesperada, tão inesperada que o público chega a gemer nas poltronas.

Mais que um belo espetáculo de dança, "Lanternas Vermelhas" me deixou com a pulga atrás da orelha. É possível à arte retratar a violência e a dor, sem exibir cenas escatológicas ao público. Óbvio, mas é exatamente aí que está o segredo. Nossos olhos ocidentais ("decadentes", diriam os maoístas, espécie em extinção na Nova China) habituaram-se ao explícito, ao mastigado. As pessoas parecem ter preguiça ou medo de decifrar o que não entenderam à primeira vista. Querem o sangue das tragédias e o esgar da dor.

Talvez por isso, elas nem se importem em consultar as horas no visor do celular, pouco importando se a luz vai incomodar as pessoas ao lado. Nem mesmo se apressam em desligar o celular que toca no meio da sessão - aconteceu ontem com uma senhora, na fileira à minha frente, e eu espero que ela não tenha ainda voltado do lugar distante para onde a mandei, mentalmente. Não se respeita o que não se entende...

Saí daquele universo chinês cheio de dúvidas sobre o que estamos produzindo aqui, entre nós. E quando um espetáculo nos provoca isso, é sinal que valeu a pena ter enfrentado a noite fria no caminho do teatro. É para isso que existe a arte.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Procura-se vivo ou morto




A julgar pela repercussão do twitter preconceituoso de uma estudante de Direito - acho que paulistana, não estou certo -, correm perigo de elminação física ou expurgo dos livros de História os seguintes nordestinos:

Dorival Caymmi, Luiz Gonzaga, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Djavan, Gal Costa, Maria Bethânia, Simone, Castro Alves, Rachel de Queiroz, José de Alencar, Ednardo, Belchior, Elba Ramano, Zé Ramalho, Amelinha, Geraldo Azevedo, Sivuca, Hermeto Paschoal, Othon Bastos, Lázaro Ramos, Wagner Moura, Alceu Valença, José Condé, Clarice Lispector, Nelson Rodrigues, Capiba, Antonio Nóbrega, Dias Gomes, Glauber Rocha, Othon Bastos, Cacá Diegues, João Miguel, Fábio Lago, Zeca Baleiro, Rita Ribeiro, Aluisio Azevedo, Artur Azevedo, Gonçalves Dias, Ferreira Gullar, Franck Aguiar, Torquato Neto, Stefanny, Tom Zé, Joãosinho Trinta, Alcione, Souzândrade, Josué Montello, José Louzeiro, João do Vale, Renato Aragão, Chico Anísio, Tom Cavalcante, Roberta Sá, Fausto Nilo, Fagner, Virna, Oscar, Moacir Goes, Núbia Lafayette, Gilliard, Chacrinha, Câmara Cascudo, Catulo da Paixão Cearense, Alan Severiano, Fernanda Tavares, Aguinaldo Silva, Cátia de França, Chico César, Fuba, Lenine, Braulio Tavares, Batatinha, Riachão, D. Hélder, Dona Edith do Prato, Geraldo Vandré, Kaio Marcio, Renata Arruda, Flavio Tavares, Paulo Freire, Manuel Bandeira, Dominguinhos, Ronaldo Correia de Brito, Irandhir Santos, Karim Aïnouz --- e outros, centenas de outros, que deixo ao sabor e favor da memória dos meus leitores.

Se a tal "estudante de Direito" acha que pode formar uma nação sem a iluminada contribuição das pessoas acima, das esquecidas e dos anônimos que, diariamente, constroem a "cidade dos brancos", azar o dela. A minha Pátria se fez e se faz com essas figuras - incluindo `seu`Dezinho e dona Maria Quitéria, meus pais.