terça-feira, 12 de abril de 2011

A cor da memória



Minha mãe tinha uma Tia Senhora. Lembro de, entre criança e adolescente, ter visitado a parente lá nos interiores de Pernambuco. Não lembro da cara, mas sempre me senti fascinado pelo nome - tia Senhora. Um batismo, pelo jeito, comum aos pernambucanos: em "Álbum de Família", Nelson Rodrigues dá esse nome a uma das personagens da tragédia. Nas casas dos familiares e amigos do sertão, as paredes eram decoradas com fotos, muitas fotos. Na casa de meu avô materno, em Jupi, o longo corredor era marcado pelas fotos de casamento de todas as filhas. "Como papai era novo! E a Tia, que magrinha!"
Lembro também que na casa de outro avô, 'seu' Antônio, já vivendo em São Paulo, migrante vindo de pau de arara com 9 dos 11 filhos, havia o retrato pintado do casal mais velho. Expressões sérias, porque naquele tempo ninguém ria pras fotos. Registrar a imagem era coisa séria. Nem os artistas riam, ao posar no melhor ângulo para sua legião de fãs. Mesmo sem fãs, meus avós sabiam que aquele momento importante ficaria para sempre. Por ironia, sabe-se lá onde foi parar o retrato pintado dos meus avós.
Perdidos no tempo, os retratos de tantos parentes e conhecidos voltaram às paredes da memória, enquanto visitava a exposição "Fotopinturas", na Galeria Estação, em Pinheiros. A mostra reúne 150 trabalhos da coleção particular de Titus Riedl, um sociólogo alemão que mora no sertão do Ceará há 16 anos. A curadoria de Eder Chiodetto selecionou trabalhos não necessariamente bonitos, do ponto de vista estético, mas instigantes, porque lidam com a reconstrução do real.
No texto do catálogo, Eder conta um pouco da origem dessa técnica - partir de retratos oficiais, formais, para o quadro pintado a cores, elemento praticamente obrigatório em todas as casas nordestinas a partir de 1945. Os retratados não se contentavam em ver a própria imagem reproduzida em cores. Buscavam melhorá-la, ajeitando o cabelo pixaim, a testa assim ou assado... e juntavam todos os membros da família no mesmo retrato, ainda que misturassem mortos e vivos, jovens e velhos. A realidade era o que se queria mostrar.
Da coleção de Riedl fazem parte muitos retratos rejeitados pelos clientes dos foto-pintores. O trabalho talvez não tivesse resultado como eles queriam, vai saber, o artista foi realista demais e não corrigiu o olho estrábico ou o excesso de rugas. Havia também a quebra de decoro - homens deviam sempre ser retratados de terno e gravata e, se não aparecessem assim no retrato, não valia.
Na mesma semana em que um jovem esquizofrênico dizimou 12 famílias, matando seus filhos na escola, eu recolhia em baús perdidos na memória trapos e fiapos que me ajudaram a chegar até aqui. Quem recria a realidade, hoje em dia, sou eu. Com minhas peças, contos, roteiros, ideias. Embelezo e enfeio, arrisco, carrego na tinta, erro no verbo, mas exponho, tal qual um retrato colorido na parede, os fantasmas camaradas que habitam minha imaginação. Dou prosseguimento ao sonho de Tia Senhora e Vô Antonio, mesmo sabendo que, deles, nem o retrato na parede restou.

A exposição Fotopinturas fica em cartaz até 21 de maio, na Galeria Estação (Rua Ferreira de Araújo, 625, Pinheiros). Conforme a hora, você sai da mostra e filosofa à vontade entre chopes e bolinhos do Pirajá, ali pertinho.

domingo, 3 de abril de 2011

Pais & Filhos


É muito feio fazer o que eu fiz. Abandonar o blog, mesmo com bons argumentos - estava ocupado com textos para novos projetos, lancei o livro "Carro de Paulisa", acompanhei a estreia do Festival de Teatro Grotesco do N.e.x.t. - mas a vida não tem nada a ver com isso, certo? Quem tem blog precisa cuidar dele, zelar, acarinhar os seguidores. Não dá pra ficar tanto tempo distante. Feito o mea culpa, vamos à luta. Voltei!

Eu não achava que o nobre deputado Jair Bolsonaro fosse me inspirar a escrever um novo post. Na verdade, não inspirou mesmo. Eu preferiria ignorar a baciada de tonterias que aquele homem atirou na cara dos telespectadores do CQC - mas confesso que mandei minha mensagem pra ouvidoria do Congresso, pedindo providências contra tanta paquidermice mental. Estava até conseguindo um certo distanciamento, muito embora cada notícia dada sobre o fulano me deixasse perplexo. Reconheço, entretanto, que não fiquei tão perplexo quanto os mais jovens e talvez os meus colegas de geração me ajudem a explicar a coisa.

Quem cresceu, fez faculdade e se formou sob o tacão do regime militar não esperaria outra coisa de um milico. Que me perdoem os militares avançados, de mente aberta (eles existem, sim), mas a imagem que ficou das Forças Armadas pra minha geração foi de truculência, mentalidade tacanha e zero de disponibilidade ao diálogo. Uma figura com o carisma democrático do Bolsonaro não arrancaria maiores suspiros entre os crescidos nos anos 70 e comecinho dos 80. Ele espanta hoje em dia? Ainda bem que sim! Mostra que estamos avançando, mesmo sabendo que uma boa parcela de eleitores do Estado do Rio ajudou a dar emprego à Bolsonaro & Sons.

Com o fim do regime militar, as forças avançadas fizeram jus ao nome e avançaram. Talvez não o suficiente para evitarmos os debates constrangedores da última eleição presidencial, quando só faltou reivindicar a volta da virgindade como troféu de casamento. Mas avançamos a ponto de nos mobilizarmos e gritarmos quando uma - digamos levianamente - pessoa como aquele deputado é convidado para ir à TV manifestar o seu (perdão pela imprecisão do termo) pensamento. Ele pode, sim, pensar do jeito que bem entender, foi pra isso que defendemos tanto a democracia. Mas seu direito de se manifestar termina onde começa o direito de exposição dos que o acham uma infeliz caricatura.

Com os aguerridos defensores do conservadorismo, acho que nem é tão difícil conviver. Eles emitem lá seus raciocínios, nós emitimos cá os nossos, assim vamos levando. O diabo é quando o conservadorismo aparece disfarçado de qualquer outra coisa que nós até achamos engraçadinho. Não podemos atacar o pensamento arcaico do Bolsonaro e, ao mesmo tempo, tratarmos como "acredite se quiser" a notícia de que o ex-jogador Toninho Cerezo vai à Itália dar entrevista ao lado do filho transexual. Por que o apoio de um pai a um filho merece tamanho destaque? É, obviamente, pelo fato de jogador de futebol ser macho o suficiente para encarar a realidade de um filho traveca. Não sei se isso mereceria destaque numa sociedade realmente isenta de preconceitos.

O deputado expôs seu ponto de vista diante da câmera de um programa conhecido por só poupar da execração o peso do Ronaldo Fenômeno. Deu a cara a tapa - ou melhor, deu um tapa na cara daqueles a quem despreza, certamente imaginando que pretos e bichas fossem mais cristãos e oferecessem a outra face. Toninho Cerezo não pediu a ninguém que pagasse sua passagem pra Itália, nem mesmo ameaçou chegar lá e dar uma surra de chicote no filho veado. Sabe-se lá quantas lágrimas o jogador deve ter derramado até aceitar a decisão do filho - e se alguém achar que estou sendo machista, tenha dó... Toninho certamente tinha algum sonho pro filho, da mesma maneira que o deputado. Só que o primeiro não impôs o seu modelo de vida. Cerezo, chorando ou não, aceitou e convive com a situação certamente inesperada. Apoia o filho publicamente e, para tanto, não depende dos nossos votos. Não merece, portanto, ser alvo de chacotas, muito menos de chacotas disfarçadas.

Duvido que o deputado fosse macho o suficiente pra ter a atitude do ex-jogador.