quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Fazer rir


Era quase uma da tarde, um ventinho frio começava a soprar na Praça do Patriarca, no coração de São Paulo. A roda de curiosos cercava o trio de palhaços do La Mìnima, que se apresentava com seu novo espetáculo, "Rádio Varieté". A cada piada, a cada gesto, a cada pantomima, o público ria e aplaudia, vidrado. Durante toda a apresentação, um senhor de idade indefinida assistia, entusiasmado. Puxava aplausos, comentava alto, atento às piadas e brincadeiras. Quase no fim, já sentindo que a farra ia acabar, ele cruzou o 'picadeiro' para ir cuidar da vida - e despediu-se com aceno tão carinhoso, que até os palhaços em cena notaram. Ele deu tchau e passou por mim, levando na cara um sorriso de tal modo sincero que eu tive certeza: esse vai sorrir o dia inteiro.

Voltei a atenção para a plateia. Misturados ao grupo, o multifacetado Antonio Nobrega e sua mulher, Rosane, assistiam tão seduzidos quanto o rapaz desconhecido, do outro lado, vestindo apenas uma camiseta, uma encardida calça de agasalho e um par de havaianas fajutas. Ignorava o frio, o moço. E só olhava, fixo e concentrado, o show dos palhaços. Ria e aplaudia, como se sua rotina fosse essa mesma, rir e aplaudir dos palhaços da vida.
Nessa hora, a ficha caiu. Como é bom fazer alguém rir. Faz tão bem à alma e ao corpo receber de volta um sorriso aberto, um olhar molhado das lágrimas provocadas pela risada. Faz tão bem que eu me espantei de já ter pensado em escrever "sério". Ali, na praça, vendo os espectadores se deliciando com as brincadeiras criadas por Fernando Sampaio, Domingos Montaigner e Filipe Bregantin, eu compreendi de um jeito muito forte a importância do meu trabalho.
Daquele roteiro que ajudei a escrever, junto com o super Luiz Henrique Romagnoli, Domingos e Fernando, tudo arrematado pelo olhar profissional de Antonio Nóbrega, saíam piadas, comentários, brincadeiras, saía um sem-fim de coisa que, tenho certeza, fez mais alegre a quarta-feira de muita gente. Como sentir frio depois de ouvir aquelas risadas e aplausos? Não dá, cara, simplesmente não dá. O prazer do riso alheio é uma endorfina, uma dessas drogas naturais poderosas a ponto de viciar definitivamente. Sou um fazedor de risos addict - em inglês fica mais chique.
Parece besteira, né? Justo eu, que nos últimos 30 dias, tive 5 comédias em cartaz nesta cidade maluca, todas atraindo público, justo eu fiquei comovido como o diabo por ver o povo rindo hoje. Deve ser por que, em alguns instantes, bate uma dúvida de saber se o caminho é esse mesmo... Dá vontade de ter um trabalho que os outros considerem profundo e o encarem com a seriedade que é fazer rir...
Confesso, cara lavada, que bate essas coisas. Mas aí, ufa, vem um espetáculo de rua, uma roda de gente que não tem dinheiro pra pagar um ingresso em teatros convencionais, mas que parou ali e deu aquilo que o artista mais gosta: um minuto de forte atenção. A alma encheu, o coração disparou e eu me toquei, enfim. Outras dúvidas virão, porque eu não pretendo parar de escrever tão já. Mas hoje, 16 de setembro, eu tô de alma lavada e feliz. Que nem o rapaz de havaianas falsas e o velhinho que deu tchau na praça.


Dedico esse post ao Aimar Labaki e ao Petrônio Gontijo, com quem troquei, direta ou indiretamente, reflexões ao redor desse tema.

p.s. 2 - Quem quiser assistir a alguma apresentação de "Rádio Varieté" nas praças do centro, pode consultar o site http://www.laminima.com.br/. Tem datas já agendadas no Largo São Bento, no Parque da Luz e na Praça Antonio Prado.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Sigilos quebrados


É evidente que qualquer pessoa em sã consciência vai achar escandalosa a violação de segredos fiscais de um cidadão. É mais evidente ainda que, se houver um mínimo de respeito pela chamada coisa pública, os responsáveis por essa aberração serão punidos com rigor - mas isso, é claro, se vivêssemos no melhor dos mundos, o que me parece não ser bem o caso. De todo modo, vincular a quebra de sigilo fiscal a campanha eleitoral me parece um desvio de rota. Vamos discutir a coisa? Sim, vamos. Devemos. É preciso uma explicação. Mas ao que consta um presidente não vai cuidar só disso. E o resto dos projetos de governo? "Depois que estrear a gente pega o pique" não dá mais.


Escrevo sem ter visto o efeito de tantas denúncias nas pesquisas eleitorais. Deve ter causado algum, sem dúvida - e é nisso que o segundo colocado nas pesquisas anteriores aposta, torcendo por um segundo turno. Até o momento, no entanto, paira uma dúvida cruel em todas as cabeças ligadas à corrida eleitoreira: quebrar sigilo bancário surte efeito na opinião da maioria dos eleitores? Em caso positivo, haverá uma comemoração pela resposta ética do sacrificado povo brasileiro. Em caso negativo, e se a candidata do governo subir no trono já no primeiro turno, não faltará quem ataque a conivência da patuléia. Em redes sociais, mesmo, já li que as pessoas - os "outros' - estão mais interessados em dinheiro no bolso e comida na mesa do que em lisura ética. Como se querer sobreviver com relativa dignidade tivesse se transformado em crime.

A cada vez que vejo candidatos espumando contra a violação do sigilo fiscal de seus correligionários e/ou aparentados (um crime, repito), lembro de uma viagem que fiz pelo Nordeste, entre Piauí e Maranhão. Para cruzar parte da região, era preciso pegar uma caminhonete Toyota e viajar na carroceria lotada - um pau-de-arara light, uma viagem que tinha até um pernoite porque o percurso era danado. Eu ia de turista, meio dondoca escandalizada. Mas os outros passageiros iam mesmo receber o pagamento na única agência do Banco do Brasil num raio de léguas. Eles tinham de dormir ao relento pra poder receber o auxílio financeiro de uma bolsa-família ou a aposentadoria rural.

Lembro deles, repito, e me pergunto se aquelas pessoas fazem ideia do que é quebrar um sigilo fiscal. Acho que eles nem sabem o que é "sigilo". Sequer imaginam o que é "bancário". Esse discurso indignado - com razão, porque nós, que pagamos impostos, não queremos nossa vida fiscal exposta ao público como pôster da Playboy - não atinge uma grande maioria de brasileiros, eleitores, tão cidadãos quanto eu, você, a filha do candidato ou o camelô da 25 de março. Acontece que a classe política que se julga melhor aparelhada para administrar o país não conhece aquilo que quer tomar conta. Dá as costas ao Brasil real e ainda se espanta quando as coisas não saem como ela acha que deveriam sair.

Na verdade, eu penso mesmo que a quebra de sigilo fiscal é uma prática mais comum do que sonha a vã candidatura. Não é nada raro receber e-mails de empresas que "descobriram" o seu potencial consumismo em alguma listagem vendida sabe-se lá por qual administradora de cartão de crédito. Até um tempo atrás, pra se obter visto de entrada em alguns países, era preciso mostrar a declaração de rendas. Mas hoje, com tudo informatizado... Gente, se o neguinho entra no sistema do Pentágono, não vai entrar na minha declaração de renda? Tá certo que, no que me diz respeito, ele vai rir um bocado e passar pro próximo - mas impossível não deve ser, não.

Outro dia, li que a Biblioteca do Congresso Americano guarda num computador todos os twitters escritos no mundo. Você consegue imaginar isso? Com dois toques no teclado, um hacker entediado tem acesso a todos os kkkkkks e demais bobagens que você tuitou por aí. Graças à Nota Fiscal Eletrônica, qualquer funcionário da Receita Federal pode descobrir onde o senhor anda gastando o seu salário - tá comprando sapato demais, hein? - mas isso não quer dizer que o sistema da NFE seja ruim: vai impedir que muito comerciante dê o truque, cobrando caro da gente e não pagando o que deve em impostos, alguns até trabalhistas.

Reafirmo o que disse no começo: quebrar sigilo bancário é uma violência inominável, que deve(ria) ser punida com tremendo rigor. Mas achar que isso é bruxaria de esquerdistas mal-intencionados é reduzir todo o avanço da tecnologia a uma disputa eleitoral passageira. A informática nos uniu numa intimidade tão promíscua, que quebrou até mesmo nosso direito aos segredos antes inconfessáveis. Mas, antes de mais nada, lembro sempre de uma frase que dona Maria Quitéria, também conhecida como minha mãe, dizia: quem não deve, não teme.