quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Cara de Mané


Devo ter cara de otário. Só pode. Já perdi a conta das vezes que estou andando na Paulista lotada, em pleno horário comercial, e o cara que vive eternamente com uma receita na mão dizendo que precisa comprar remédio vem até mim. Ele mira e vem. A velhinha que precisa de 1 real pra completar a passagem é outra, que mira e vem. Eles podiam, pelo menos, ter boa memória fotográfica e não atacar sempre a mesma vítima. Mas, nessa hora eu surpreendo. Tal qual um Giannechini fazendo papel de vilão (ok, menos bonito, mas nem tão canastra), olho friamente pra pessoa e digo: não. E sigo, impávido, rezando comigo mesmo pra pessoa não ser realmente uma necessitada. Vai saber...
Hoje pela manhã, a caminho da fisioterapia, numa rua relativamente calma dos Jardins, um carro parou ao meu lado e um sujeito bem vestido pediu ajuda. Aproximei-me e ele perguntou se eu falava inglês. Yes. Italian? No. Español? No, English is ok. E ele desandou a falar como as pessoas nos Jardins não falam inglês e não sei mais o quê. Na mão, um passaporte e uma passagem aérea daquelas antigas, sabe como? com capinha de papel e tudo. E sobre o banco, uma papelada da Armani e de outra grife internacional, Ferré, não lembro. Na hora me deu o estalo: é um daqueles picaretas que tentam te empurrar casacos de couro, roupas importadas, tudo de marca estrangeira, porque ele precisa viajar ainda hoje e te faz por um preço camarada, etc etc. Cortei, disse que tinha hora marcada - e era verdade - e o cara engatou a primeira e saiu. Me arrependi de não ter anotado a placa do carro.
O episódio me fez ficar pensando na minha cara de Mané. Ou de ambicioso. Porque todo golpista, quando mira um pato, está enxergando nele um ambicioso em potencial, um outro golpista ainda adormecido. O conto do vigário só tem resultado porque as duas partes querem dar o golpe uma na outra. O sujeito que "pede" ajuda está exibindo ao outro a chance de, investindo 10, ganhar 30. E o "bom samaritano" se dispõe a ajudar, porque se acha mais esperto... É tudo um grande conluio.
Nunca caí num golpe desses. Assim como existe a falsa magra, eu devo ser o falso pato. Mas sempre escuto histórias de quem entrou pelo cano. Narrada pela vítima, a história sempre tenta despertar a piedade - nós temos pena de quem perdeu grana. Mas quando você vai um pouco mais fundo, descobre a verdade e a piedade vira sarro. Não dá pra levar a sério.
E essa é a grande utilidade de um conto do vigário. Revelar a você mesmo que existe mais um tratante neste mundo de pilantras. Nem é preciso procurar longe, basta olhar o espelho.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Cuidado: cidade frágil


Devo estar muito antigo. Sou de uma época em que todos nós acreditávamos que esta era uma cidade forte, inabalável. Nada. É uma cidade frágil e só mesmo a memória ajuda a esclarecer.
Lembro do tempo em que as tempestades de verão inundavam meu bairro, a rua (de terra) transformava-se num rio e os meninos comportados tinham de ficar à janela vendo os moleques danados "nadarem" nas águas amarronzadas. Passada a chuva, as águas baixavam, ficava uma lama descomunal em todo canto - muitas vezes, no quintal ou dentro de casa, quando "dava enchente". Mas, repito, as águas baixavam. Íamos estudar ou fazer o que fosse preciso e encontrávamos a cidade no mesmo lugar em que estava antes do toró.
Já adulto, enfrentei várias enchentes - às vezes, na Folha, sobrevoando a cidade inundada a bordo de um helicóptero; outras, durante a longa temporada no Estadão, aprendendo a 'ler' as nuvens e avaliar onde haveria transbordamento. Só uma vez, dia de caos absoluto, ninguém conseguiu chegar nem sair da redação. Quem tinha entrado de manhã dobrou o horário e fez o serviço da turma da tarde. Uma vez.

O tempo passou e, pelo visto, a única tecnologia que não avançou um centímetro foi a que administra a cidade pós-chuva. Pelo contrário, recuou e muito. Agora, cada vez que chove, temos de pensar em várias coisas: onde há risco de encher mais rápido é a primeira. Além de adivinhar buracos e trechos intransitáveis, temos de ficar atentos cada mexidinha de árvore, porque o perigo da enchente vem do alto, quando um carvalho ou jequitibá ou sei lá que mastodonte arvóreo despencará em cima do seu carro, muitas vezes mirando o seu crânio. E aí, end of story.

Sobrevivendo à leptospirose e ao traumatismo craniano, resta ao paulistano a tarefa de encontrar uma paciência de jó e encarar as dezenas de semáforos queimados a cada chuva. Alguém consegue me explicar por que isso agora virou moda? Até cinco anos atrás, chovia, inundava, às vezes acabava a luz, os pobres perdiam tudo e os ricos tinham de trocar o estofamento do carro - mas ninguém enfrentava uma fileira de semáforos apagados ou em pane. O que acontece? Os relógios e termômetros quebrados, vergonhoso, são fruto de alguma licitação que não rendeu o suficiente para quem de direito. Isso é uma explicaçao. Mas, até o momento, não vi nenhuma reportagem que explicasse o sumiço dos faróis de trânsito. Será algum descaso de administração pública? Ou teremos de esperar que venha um governo estadual ou municipal de partido não-plumário para que a imprensa se indigne e denuncie como deve?

Sei que numa cidade em que bairros inteiros sucumbem à força das águas, à violência urbana cada vez mais irrefreável e a um sistema educacional que só não é humor negro porque é trágico e real, numa cidade dessas até parece frescura reclamar de um sinal de trânsito. Não é. Prejudica a madame de carro, o boyzinho e o trabalhador, apertado num transporte público imoral. Não dá para fingir que isso é da natureza.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Famílias do Obama


Pouco tempo depois da queda do World Trade Center, já no ano de 2002, apareceram na TV americana seriados que davam explicação pra tudo. Bones, por exemplo, reconstituía crimes a partir de ossos. Cold Case curava velhas feridas, reabrindo casos antigos e solucionando assassinatos graças à memória espantosa das testemunhas. Without a Trace reencontrava desaparecidos. E, o melhor de todos, Monk era protagonizado por um portador de transtorno compulsivo que colocava ordem no caos de São Francisco. Mesmo quando não eram histórias policiais, o efeito Torres Gêmeas aparecia: em Brothers & Sisters, a família Walker resistia a todos os abalos possíveis. Era uma maneira de a ficção dizer ao público que havia, sim, e sempre, a esperança do mundo voltar ao seu eixo. Era só manter a cabeça fria e a irmandade, unida.
Na atual safra de cinema americano - com o país administrado por Barak Obama e submetido a uma série de decepções econômicas e políticas -, a realidade novamente dá as caras. E, como sempre, a família ocupa um posto importante nos filmes. A família unida, mãos dadas contra todas as ameaças externas, é sempre um grande apoio pra quem vive de ficção. Não há tema mais universal do que as complexas relações entre pais e filhos, irmãos, primos, etc. É tiro e queda.
Em pelo menos três dos filmes candidatos ao Oscar, a Família surge de forma impositiva. Em Inverno da Alma, a protagonista precisa reencontrar o pai para salvar a casa em que vive com os irmãos menores e a mãe doente. É uma jornada clássica do herói, desta vez em versão mulher. Tudo é feminino, no filme - dirigido por uma mulher: as personagens mais fortes e que decidem as coisas, pro bem e pro mal, são mulheres. Elas espancam, elas ameaçam, elas fazem a segurança, elas cortam cadáveres. O homem acompanha, meio de longe, mas sempre presente. É um filme que avança nas velhas discussões do feminismo e coloca machos e fêmeas em situação de igualdade. Os homens do filme podem não decidir, mas não são frouxos como numa novela do Manoel Carlos. Tempos de Obama: é preciso unir forças, esquecer as diferenças (ou, pelo menos, não torná-las impeditivos) e sobreviver no mais áspero inverno.

Em Cisne Negro, uma mãe possessiva infantiliza o quanto pode a filha talentosa, até torná-la perfeita para o balé mas incapaz para a vida e suas contradições. Talvez não seja à toa que o único personagem masculino forte - que poderia ser visto como um paizão da bailarina - seja também o elemento sedutor. Aqui a família é uma ameaça, que não se restringe ao lar. Quem se dedica com afinco ao emprego, faz dele sua razão de viver e tal, transforma o ambiente de trabalho em sua casa: espalha as coisas diante do espelho, como se a mesa do escritório fosse a penteadeira do quarto. É o lar, a caverna onde se busca refúgio e sobrevivência (financeira).

O melhor retrato de um tipo de família, na temporada atual de filmes, está mesmo em O Vencedor. Ao redor do lutador Micky (Mark Wahlberg) giram figuras famintas como carcarás do sertão - o irmão viciado em crack (o estupendo Christian Bale), a mãe leonina e protetora do mais fraco (a também avassaladora Melissa Leo), várias irmãs feias e inúteis e um pai que tenta, mas não fura o bloqueio matriarcal. São figuras que desmentem o chavão da família unida e tornam boa parte do filme a incômoda imagem de um clã auto-devorador. Não há como justificar a ânsia esfomeada de mãe, irmãs e irmão; eles são desse jeito, aprenderam a sobreviver desse modo e a única maneira de escapar de sua energia sugante é cortar o laço de vez. Não é todo mundo que consegue. Pior ainda: o cinema americano acredita que um personagem ideal jamais tomaria atitude tão radical. Uma pena.

Mesmo assim, são retratos que ficam gravados na memória de quem vai ao cinema e tenta entender o mundo ao redor. Uma sociedade que precisa urgentemente sinalizar a importância da união familiar é a mesma que produz figuras capazes de invadir escolas armadas e matar meio mundo. Quando coloca a mãe da bailarina na arrepiante sequência final de Cisne Negro ou quando promove uma forçada paz entre os povos nos personagens que cercam o mocinho de O Vencedor, o cinema da era Obama está querendo nos convencer que, mesmo tendo caráter duvidoso, nossos familiares merecem crédito. Pode ser muito bonitinho como lição de moral, mas é péssimo como dramaturgia.