quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Cuidado: cidade frágil


Devo estar muito antigo. Sou de uma época em que todos nós acreditávamos que esta era uma cidade forte, inabalável. Nada. É uma cidade frágil e só mesmo a memória ajuda a esclarecer.
Lembro do tempo em que as tempestades de verão inundavam meu bairro, a rua (de terra) transformava-se num rio e os meninos comportados tinham de ficar à janela vendo os moleques danados "nadarem" nas águas amarronzadas. Passada a chuva, as águas baixavam, ficava uma lama descomunal em todo canto - muitas vezes, no quintal ou dentro de casa, quando "dava enchente". Mas, repito, as águas baixavam. Íamos estudar ou fazer o que fosse preciso e encontrávamos a cidade no mesmo lugar em que estava antes do toró.
Já adulto, enfrentei várias enchentes - às vezes, na Folha, sobrevoando a cidade inundada a bordo de um helicóptero; outras, durante a longa temporada no Estadão, aprendendo a 'ler' as nuvens e avaliar onde haveria transbordamento. Só uma vez, dia de caos absoluto, ninguém conseguiu chegar nem sair da redação. Quem tinha entrado de manhã dobrou o horário e fez o serviço da turma da tarde. Uma vez.

O tempo passou e, pelo visto, a única tecnologia que não avançou um centímetro foi a que administra a cidade pós-chuva. Pelo contrário, recuou e muito. Agora, cada vez que chove, temos de pensar em várias coisas: onde há risco de encher mais rápido é a primeira. Além de adivinhar buracos e trechos intransitáveis, temos de ficar atentos cada mexidinha de árvore, porque o perigo da enchente vem do alto, quando um carvalho ou jequitibá ou sei lá que mastodonte arvóreo despencará em cima do seu carro, muitas vezes mirando o seu crânio. E aí, end of story.

Sobrevivendo à leptospirose e ao traumatismo craniano, resta ao paulistano a tarefa de encontrar uma paciência de jó e encarar as dezenas de semáforos queimados a cada chuva. Alguém consegue me explicar por que isso agora virou moda? Até cinco anos atrás, chovia, inundava, às vezes acabava a luz, os pobres perdiam tudo e os ricos tinham de trocar o estofamento do carro - mas ninguém enfrentava uma fileira de semáforos apagados ou em pane. O que acontece? Os relógios e termômetros quebrados, vergonhoso, são fruto de alguma licitação que não rendeu o suficiente para quem de direito. Isso é uma explicaçao. Mas, até o momento, não vi nenhuma reportagem que explicasse o sumiço dos faróis de trânsito. Será algum descaso de administração pública? Ou teremos de esperar que venha um governo estadual ou municipal de partido não-plumário para que a imprensa se indigne e denuncie como deve?

Sei que numa cidade em que bairros inteiros sucumbem à força das águas, à violência urbana cada vez mais irrefreável e a um sistema educacional que só não é humor negro porque é trágico e real, numa cidade dessas até parece frescura reclamar de um sinal de trânsito. Não é. Prejudica a madame de carro, o boyzinho e o trabalhador, apertado num transporte público imoral. Não dá para fingir que isso é da natureza.

6 comentários:

  1. o crescimento sem planejamento, a cidade que tira sua terra e árvores e fica vitrificada, assusta. beijos, pedrita

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  2. Você via a enxurrada da janela ou "nadava" na água marrom???

    Beth

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  3. Beth, que pergunta. É claro que dona Quitéria não deixava os filhos nadarem naquelas águas... nem era pela sujeira, não... era por medo da enxurrada...

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  4. Parece uma cidade que há anos está sem governo, tudo cresce e acontece ao Deus dará. Para a gente que gosta tanto desta cidade é desolador. Desanimei, não acredito em mais nada, perdi a capacidade de reconhecer qualquer cidadão governante como mimamente confiável. É uma pena, uma cidade tão legal. Pelo que me lembro da elegante Dona Quitéria, ela não iria deixar nadar na água marrom também não.
    Bjs Angela

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  5. Sábia D. Quitéria! Ainda bem que a enxurrada não te levou... bjsss

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  6. Mário:
    Vc tem toda a razão de comparar o q acontece agora e há poucos anos (não precisa ir tão longe, mas sua lembrança das "águas amarronzadas" é tocante).
    Claro q é falta de administração e planejamento.
    Mas tem um agravante que já vem ocorrendo há DOIS anos: a verba aprovada no orçamento para conter enchentes não é utilizada na totalidade (a desse ano parece q não chegou a ser usada nem a metade orçada)!!!!
    Isso é mais q absurdo!
    Crescimento desordenado, impermeabilização do solo, desleixo com o lixo etc já estamos carecas de saber. Mas não utilizar uma verba para que impeça maiores males das chuvas
    (q por morarmos num país tropical, no verão sempre chove muito)isso é CRIME>
    E o alcaide só se preocupa com qual partido ele vai concorrer a novo cargo público!
    Fim da picada!
    bjs
    Maurício

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