quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Aética Aplicada


Ninguém sabe com certeza se foi Charles ou William Lynch quem oficializou, ainda no século 18, o assassinato de uma pessoa, cometido por uma multidão, sem prévio julgamento ou prova de culpa. O certo é que a prática do linchamento tornou-se corriqueira e ganhou, mesmo, entre nós, uma subcategoria, a do linchamento moral. No Brasil, em especial, parece que linchar é um esporte tão fácil de praticar quanto jogar peteca ou chutar bola. Com o auxílio tecnológico das redes sociais, então, ficou ainda mais fácil participar de qualquer campanha linchatória sem sequer sujar as mãos. E é tudo muito rápido, veloz, um zás-trás: anteontem era o Rafinha Bastos, ontem foi o Orlando Silva e amanhã... talvez o ministro da Educação, por conta das sucessivas besteiras em torno das provas do Enem. É bom preparar as pedras - virtuais ou não.
O esforço gasto no linchamento alheio talvez seja o motivo de as pessoas não prestarem atenção nos detalhes sórdidos das histórias. Vamos pegar o caso do Orlando Silva como exemplo. Não acredito que o ex-ministro dos Esportes seja o anjo de candura e inocência que ele, seus correligionários e uma ala mais à esquerda da política querem mostrar. Também não acredito que ele devesse ser crucificado tão logo apareceu a primeira denúncia, como queriam os centro-direitistas espalhados pela política e pela imprensa. Há que se apurar antes de se dar qualquer sentença - pelo menos é isso o que eu espero que façam comigo, no hipotético caso de ser acusado de alguma coisa.
Não basta ser inocente, é preciso parecer inocente aos olhos da opinião pública. Mas vivemos numa situação em que, por princípio, todos parecem culpados de alguma coisa. Com isso, o bate-boca entre situação e oposição, normalmente já subnivelado, atinge o inimaginável. Deveria ser prática corrente o sujeito colocado sob suspeita pedir o chapéu e - temporariamente - sair do cargo que ocupa. Daria à investigação, ao menos, a aparência de que algo seria feito. Constatada a inocência, o sujeito voltaria pra sua salinha, sua secretária, seus despachos. Assim como outros ministros apanhados em algum tropeço, Orlando Silva não fez isso e, claro, submeteu o governo inteiro a uma frigideira quentíssima.
O mais impressionante no caso do Orlando - podemos tratar na intimidade, há 15 dias só se fala no homem, ele ja é de casa - é que, se levadas a sério, as denúncias deveriam derrubar tudo quanto é ONG, instituição beneficente, sociedade amigos de bairro, salão paroquial, o diabo a quatro. O desfile de organismos que levaram grana - e grana preta - do governo pra atender crianças que não existiam é de ofuscar concurso de miss. Os valores, sempre milhares de dólares, parecem saídos de um livro do Sidney Sheldon ou outro best-seller desvairado: não pode ser coisa de vida real lidar com 3 milhões aqui, 5 milhões ali, como se estivéssemos falando do troco pra comprar um chiclete.
Enquanto isso, no lado dos que gostam de arrotar moralidade em cima do outro partido, uma série de "denúncias" ameaça fechar um shopping construído em cima de um lixão, porque aquilo tudo poderia ir pelos ares. Quando alguém lembrou que havia um conjunto residencial popular - uma ex-favela devidamente encaixotada em alvenaria - logo também se chegou a um acordo e surgiram providências que deveriam ter sido tomadas há anos (e não o foram por dificuldades técnicas intransponíveis). Ficou tão evidente que rolou um "cala a boca" entre as devidas partes envolvidas que a gente até perde a noção do certo e do errado. O que antes era tratado com certo pudor, agora é praticamente escancarado. Perdeu-se o pudor de parecer desonesto.
Essa constante aula prática de Aética é o que tem guiado jornais, seja da mais raivosa direita, seja da mais energizada esquerda. Não há, até o momento, nenhum sinal de que princípios de moralidade e decência no trato da coisa pública sobrevivam em algum rincão de nosso território. Isso é muito triste, porque desobriga qualquer pessoa a cumprir uma lei que seja. Se a direita sempre fez o que bem quis e a esquerda, quando sobe, demonstra ter aprendido direitinho o que não presta... não sei bem o que devemos esperar desses seres que nos governam. Nem mesmo de nós, os governados. Fico perdido, entre o susto e o desânimo.


quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Alô, alô... responde...


Quantas palavras existem no mundo, não faço a menor ideia. Só sei que todas elas, juntas, não estão dando conta do recado. Nunca se falou tanto, nunca se escreveu tanto, nunca se comunicou tanto para tantos - e, contraditoriamente, nunca nos entendemos tão pouco. Nos e-mails, nas redes sociais, nos livros, jornais, blogs, revistas, nunca tantas palavras foram atiradas a esmo. Emitimos sinais, contamos façanhas, lançamos apelos - para quem? Antes, quando escrevíamos uma carta, colocávamos o destinatário no envelope e dávamos um rumo definido à mensagem. Trocamos o destinatário por "amigos" e "seguidores", subtraímos rosto e digital - mas perdemos em retorno. Com quem falamos? Quem tenta, em algum ponto do planeta, falar conosco? Consegue?
A "descomunicação" é o tema que une três filmes argentinos. Não deve ser coincidência que um dos povos mais falastrões do mundo tenha levado ao cinema essa preocupação - a comunicação com o outro está interrompida, fora de área, sem sinal. Estamos sós. Solitos, dizem os argentinos em filmes como "Um conto chinês", "Medianeras" e "O dia em que não nasci". É bom prestarmos atenção nisso.
Embora aparente ser o mais óbvio, "Um conto chinês" é o mais universal dos três filmes. Na fábula do irritadiço comerciante portenho (vivido com especial brilho por Ricardo Darín, o Mastroianni da nossa época) e de seu hóspede chinês (Ignacio Huang), que desembarca na Argentina sem saber nem um "hola que tal" básico, está muito da nossa vida atual. O desconforto com o desconhecido, o medo da solidão - e o pavor de aprender a conviver, tudo isso está no filme de Sebastian Borenztein. Os dois protagonistas não trocam uma só palavra diretamente. Nada de nada. Ali, não há lugar para google translator, nem para aqueles antigos dicionários de frases básicas para viajantes. Eles nunca se falam, mas acabam se entendendo. Une-os a solidão e esse é um dado fundamental para entender os três filmes e a nossa vida.
O segundo filme é uma co-produção Alemanha-Argentina, que toca numa ferida sensível - o destino dos filhos dos mortos pelo regime militar que dominou nosso vizinho nos anos 70/80. Se "A História Oficial" (1985) falava de uma mulher (Norma Aleandro, estupenda) que saía do casulo protetor da classe média ao descobrir ter adotado filhos de perseguidos políticos, o filme "O dia em que não nasci" conta a história de uma dessas crianças. Uma nadadora alemã, ao fazer escala de voo em Buenos Aires, lembra-se de uma canção de ninar cantada em espanhol, uma língua que ela nunca falou. É o mote para descobrir ser filha de um casal morto pela ditadura - e outras descobertas terríveis virão. O filme cresce, imensamente, quando entra em cena a tia argentina da moça - vivida por Beatriz Spelzini, uma atriz fantástica. A mulher está feliz por reencontrar a sobrinha que julgava perdida, mas não esquece que é preciso justiça para quem tirou a menina da família. O embate entre a alemãzinha e seus tios argentinos se dá por mímica ou por um vocabulário de inglês mequetrefe. Um não fala a língua do outro, mas ambos buscam desesperadamente um ponto em comum e, quando o encontram, descobrem que isso pode ser um problemaço.
O terceiro filme está fazendo mais sucesso, pois tem visual moderninho e soluções criativas para várias cenas. Infelizmente, é o de roteiro mais frouxo, esquemático. "Medianeras" seduz pelo que indica, não pelo que mostra. Espécie de "Nunca te vi, sempre te amei" da geração Apple, o filme tem um casal protagonista fofo - ela, a espanhola Pilar Lopez de Ayala é linda toda vida, e ele, Javier Drolas, tem charme - e usa & abusa de todos os ícones de nossa pretensa modernidade: internet, chat, computador da Apple, auto-depreciação bem humorada, onde está Wally, sexo sem paixão e delivery de comida chinesa. Saímos do cinema com o ar satisfeito de quem se viu na tela, em pelo menos um dos momentos, e nem nos damos conta que o roteiro é um curta espichado sem burilamento: faltou desenvolver melhor a personagem feminina, suas cenas de "solidão" são basiquinhas e repetitivas. Talvez por ser homem, o diretor caprichou mais nos percalços masculinos. E mesmo assim não explica como o rapaz de roupas sempre discretas tira do armário o moleton que usa na última cena. OK, fica uma gracinha, a gente suspira ("viu só? o segredo é não desistir de procurar"), mas não faz sentido.
O filme de Gustavo Taretto, no entanto, é eficiente ao mostrar que a solidão dos personagens é gritante e seus desencontros são a marca de nosso tempo. Estamos todos assim, vários mundos desconexos em estreitíssima convivência e sem tradução simultânea. O bom é que o cinema mostra que isso ainda nos incomoda. Só por isso, já dá pra ter esperanças.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Rafinha: basta.


O imaginário cultural brasileiro vive num clima de eterno Fla-Flu: você é marlene ou emilinha, chico ou caetano, elis ou gal, machado ou zé de alencar, legião ou barão. É como se no verde-amarelo das cores pátrias não houvesse lugar para o cinza ou, vá lá, um verde mais claro. Somos xiitas disfarçados em pele de cucas frescas. Nesse eterno sábado de aleluia tropical, o judas da temporada atende pelo nome de Rafinha Bastos. O irônico é que - mantendo a metáfora das festas católicas - o mesmo Rafinha passou o Natal sob melhores luzes: não era o cristinho da manjedoura, mas um dos reis magos, com certeza. Os ventos sopraram em outra direção, Rafinha Bastos não se tocou e agora se tornou a celebridade que todo mundo quer achincalhar. E só por escrever isto é bem capaz de alguém interromper a leitura e já me chamar de "adorador" do Rafinha. Dá um tempo. Continua a ler, no final a gente conversa.

Não vejo graça em Rafinha Bastos. O programa que ele faz - ou fazia -, o CQC, assisti, se muito, duas vezes. Do stand up do rapaz só vi alguma coisa porque, quando lançaram o DVD, eu estava na Fnac e uma TV exibia aquilo ininterruptamente, sempre assistido por um grupo interessado. Confesso que, pra comediógrafo, eu sou bem azedo quando assisto humor. E o humor que Rafinha e seus colegas fazem realmente não me atrai. Diante disso, tomei a atitude básica - não assisto. Não sei vocês, mas o aparelho de TV que comprei veio com um controle remoto sensacional. A modem da TV a cabo também tem um controle remoto e o DVD player, idem. Ou seja, são três oportunidades que a tecnologia me dá para não assistir coisas que não quero. E nem estou listando livros ou conversas com amigos...

Em resumo: contrariando algum instituto ligado ao Twitter, Rafinha Bastos nunca teria a menor influência em minha pacata vidinha, caso eu não fosse bombardeado com notícias sobre ele a cada piada boba, frase deselegante ou campanha publicitária estrelada pelo rapaz. Graças a isso, fiquei sabendo, entre outras coisas, que ele chamou de "feia" toda mulher que reclama de estupro... e que comeria Wanessa Camargo e o bebê que a cantora espera. Realmente, hors concours em qualquer concurso de frases de borracharia.

Não conheço Rafinha Bastos pessoalmente, nem a turma (ou ex turma) dele. Não posso dizer que são isso ou aquilo. De repente, o cara é até legal em churrasco de domingo, sei lá. Mas, pelos exemplos que pipocam em redes sociais e noticiários, dou a ele o mesmo nível de atenção que dedico a participante de reality show: zero. Ele lá e eu aqui. O mundo gira, a lusitana roda e nenhum dos dois lados perdeu o sono por conta disso. Mas a coisa começou a incomodar - e tudo por causa do tal do Rafinha Bastos, que eu nem sabia que era gaúcho (soube porque li na Vejinha).

O cara que sempre fez piada escrota e que era "irreverente", de repente virou "persona non grata". As feministas já tinham reclamado dele na ocasião da piada do estupro ("piada do estupro" é horrível, eu sei) e ganharam munição quando ele atacou uma mulher grávida e seu bebê ainda em gestação. Pior, uma gestante que, pelo jeito, o Brasil inteiro ama de paixão avassaladora. Lamento informar a moçada, mas tenho cá comigo que o politicamente correto teve peso mínimo nessa pendenga. O grande pecado do Rafinha Bastos foi mexer com o economicamente correto.

O marido da cantora e seu sócio famoso, Ronaldo Fenômeno, partiram pro ataque com a rapidez e a agilidade que todo corintiano, em vão, um dia quis do jogador. Foi um ataque agressivo, violento, bola alta, altíssima: eles teriam ameaçado convocar todos os anunciantes do programa da Band para um boicote. É dinheiro até dizer chega: o CQC deve ser a atração mais rentável da emissora. Mexer com grávidas e feias, poxa, Rafinha, isso não se faz, dá aqui a orelha pra um puxãozinho. Mas mexer com anunciante, opa!

Tal como vários políticos se habituaram a fazer nos anos de ditadura - hábito que alguns ainda mantêm em tempos democráticos - , o ex-jogador e seu sócio pediram aos donos da emissora a cabeça do humorista numa bandeja de prata. Verdade seja dita: nos tempos da ditadura, os políticos pelo menos fingiam não haver pedido nada aos donos dos jornais e TVs. As duas salomés barbadas parecem não ter se envergonhado disso, não. Deram à baixaria do humorista uma resposta igualmente baixa, só que apoiada em dinheiro. Mas até dá pra dizer que era caso de vingança pessoal.

Por trás desse troca-troca de baixarias e falta de ética, me assusta mais ver que, pouco a pouco, as pessoas perdem o pudor de querer a volta da censura. De qualquer censura. Ainda outro dia, comentei sobre comerciais que considero assustadoramente conservadores em seu conteúdo: o da Gisele Bundchen, de calcinha, dizendo que bateu o carro do marido, e o do pai bonitão dizendo que deveria ter vergonha do filho que não pega onda, nem toca guitarra, nem pegou mulher ainda. Uns concordaram, outros discordaram disso e daquilo, mas uma ou duas pessoas - que considero inteligentes, sagazes, etc - defenderam a retirada dos comerciais do ar. Tirar do ar por conta de um erro histórico grosseiro (o Machado de Assis quase loiro da CEF) ou por propagar conceito criminoso é uma coisa. Cortar porque a ideologia do anúncio contraria esse ou aquele interesse é outra coisa: é censura.

Não é a primeira nem, infelizmente, será a última vez que ouviremos a defesa desse tipo de corte. Também não será a primeira e, felizmente, nem a última vez que vou brigar contra a censura. Desde que, nos anos 80, o brilhante economista Celso Furtado defendeu a censura do filme "Je vous salue, Marie", do Godard, nunca mais li nada dele. Não dá pra acreditar num pensador que defende o sufocamento de uma ideia diferente da sua. Também não dá pra acreditar numa sociedade que, na defesa de um alegado bom gosto, comemore a caça ao humorista por meios contra os quais ele não tem defesa.

Insisto em reafirmar: não gosto das piadas que Rafinha e seus pares fazem. Mas não me recordo de ter sido obrigado a entrar no Comedians, na Rua Augusta, ou a sintonizar minha TV na Bandeirantes toda segunda-feira. Só haveria sentido em se pedir a cassação de um programa se fôssemos obrigados a vê-lo. Enquanto for opcional, por favor, me livrem de saber das bobagens que esses senhores cometem. E tratem de zelar pelo respeito à opinião alheia, porque conformar-se com a censura ao outro é o primeiro passo de quem será obrigado, mais dia menos dia, a engolir a censura à sua própria opinião - especialmente se quem não gostar da sua opinião for alguém muito mais rico ou muito mais poderoso que você. Se liga.