Ninguém sabe com certeza se foi Charles ou William Lynch quem oficializou, ainda no século 18, o assassinato de uma pessoa, cometido por uma multidão, sem prévio julgamento ou prova de culpa. O certo é que a prática do linchamento tornou-se corriqueira e ganhou, mesmo, entre nós, uma subcategoria, a do linchamento moral. No Brasil, em especial, parece que linchar é um esporte tão fácil de praticar quanto jogar peteca ou chutar bola. Com o auxílio tecnológico das redes sociais, então, ficou ainda mais fácil participar de qualquer campanha linchatória sem sequer sujar as mãos. E é tudo muito rápido, veloz, um zás-trás: anteontem era o Rafinha Bastos, ontem foi o Orlando Silva e amanhã... talvez o ministro da Educação, por conta das sucessivas besteiras em torno das provas do Enem. É bom preparar as pedras - virtuais ou não.
O esforço gasto no linchamento alheio talvez seja o motivo de as pessoas não prestarem atenção nos detalhes sórdidos das histórias. Vamos pegar o caso do Orlando Silva como exemplo. Não acredito que o ex-ministro dos Esportes seja o anjo de candura e inocência que ele, seus correligionários e uma ala mais à esquerda da política querem mostrar. Também não acredito que ele devesse ser crucificado tão logo apareceu a primeira denúncia, como queriam os centro-direitistas espalhados pela política e pela imprensa. Há que se apurar antes de se dar qualquer sentença - pelo menos é isso o que eu espero que façam comigo, no hipotético caso de ser acusado de alguma coisa.
Não basta ser inocente, é preciso parecer inocente aos olhos da opinião pública. Mas vivemos numa situação em que, por princípio, todos parecem culpados de alguma coisa. Com isso, o bate-boca entre situação e oposição, normalmente já subnivelado, atinge o inimaginável. Deveria ser prática corrente o sujeito colocado sob suspeita pedir o chapéu e - temporariamente - sair do cargo que ocupa. Daria à investigação, ao menos, a aparência de que algo seria feito. Constatada a inocência, o sujeito voltaria pra sua salinha, sua secretária, seus despachos. Assim como outros ministros apanhados em algum tropeço, Orlando Silva não fez isso e, claro, submeteu o governo inteiro a uma frigideira quentíssima.
O mais impressionante no caso do Orlando - podemos tratar na intimidade, há 15 dias só se fala no homem, ele ja é de casa - é que, se levadas a sério, as denúncias deveriam derrubar tudo quanto é ONG, instituição beneficente, sociedade amigos de bairro, salão paroquial, o diabo a quatro. O desfile de organismos que levaram grana - e grana preta - do governo pra atender crianças que não existiam é de ofuscar concurso de miss. Os valores, sempre milhares de dólares, parecem saídos de um livro do Sidney Sheldon ou outro best-seller desvairado: não pode ser coisa de vida real lidar com 3 milhões aqui, 5 milhões ali, como se estivéssemos falando do troco pra comprar um chiclete.
Enquanto isso, no lado dos que gostam de arrotar moralidade em cima do outro partido, uma série de "denúncias" ameaça fechar um shopping construído em cima de um lixão, porque aquilo tudo poderia ir pelos ares. Quando alguém lembrou que havia um conjunto residencial popular - uma ex-favela devidamente encaixotada em alvenaria - logo também se chegou a um acordo e surgiram providências que deveriam ter sido tomadas há anos (e não o foram por dificuldades técnicas intransponíveis). Ficou tão evidente que rolou um "cala a boca" entre as devidas partes envolvidas que a gente até perde a noção do certo e do errado. O que antes era tratado com certo pudor, agora é praticamente escancarado. Perdeu-se o pudor de parecer desonesto.
Essa constante aula prática de Aética é o que tem guiado jornais, seja da mais raivosa direita, seja da mais energizada esquerda. Não há, até o momento, nenhum sinal de que princípios de moralidade e decência no trato da coisa pública sobrevivam em algum rincão de nosso território. Isso é muito triste, porque desobriga qualquer pessoa a cumprir uma lei que seja. Se a direita sempre fez o que bem quis e a esquerda, quando sobe, demonstra ter aprendido direitinho o que não presta... não sei bem o que devemos esperar desses seres que nos governam. Nem mesmo de nós, os governados. Fico perdido, entre o susto e o desânimo.
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