quinta-feira, 25 de junho de 2009

A morte e a morte de Farrah Fawcett


Morreu Farrah Fawcett. Morreu exatamente como viveu: na hora errada. Farrah estrelou um seriado de sucesso; tentou carreira no cinema; até casou-se com um astro. Mas foi tudo na base do desafino. Ela largou o seriado As Panteras no auge. Sua carreira no cinema atingiu a estatura dos vôos de galinha. E quando juntou sua escova de dentes à de Ryan O’Neal, ele nem lembrava o bonitão que tinha sido nos lovestóricos anos 70.
Farrah fez tudo como manda o figurino, mas a revista da qual ela copiava o modelo era velha... Finalmente, depois de uma tormentosa luta contra o câncer, na qual se expôs com rara coragem, Farrah morreu. Tinha 62 anos e fama suficiente para garantir notícia no mundo inteiro – mesmo que com um toque de nostalgia. Mais uma vez, Farrah errou o timing. No fim do dia, morreu Michael Jackson – e a Pantera desceu pro rodapé dos sites de notícia.
Michael Jackson, o esquisito genial – e bota “esquisito” e “genial” nisso – morreu como viveu: surpreendendo. E assim como surgiu precocemente para o mundo da música, saiu dele ainda jovem, com 50 anos, e sem a luta pública contra uma doença grave (não vamos falar no seu estado mental ou no estado de sua pele, bombardeada por um branqueamento animalesco – sem mencionar as plásticas que deram ao seu rosto um aspecto degradante).
Michael marcou minha adolescência. Até hoje, quando ouço “Ben”, lembro das meninas da minha classe, no Cefranco, chorando copiosamente – por que as meninas choravam daquele jeito? Pior foi descobrir, anos depois, que a música falava de um ratinho. De todo modo, Michael e seus irmãos eram um sucesso tremendo. Já adulto, jovem adulto, Michael nos ensinou a dançar aquela dança estranha – e Thriller fez história. Até hoje, é um disco genial. Até hoje, as primeiras gravações de Michael pela Motown são sensacionais.
Até hoje, Michael roubou a cena. Tirou de Farrah Fawcett a chance de um brilho póstumo. Apagou-se a loira que espalhou pelo mundo aquele corte de cabelo cheio de recortes e picos e volteios – seus fãs, certamente, erguerão altares e acenderão velas por ela. Mas os de Michael... aqueles anônimos que viviam de imitar os passos deslizantes do artista.... esses continuarão por aí – assim como os que imitam Chaplin e Marilyn. Rascunho póstumo de Dorian Gray, Michael continuará, como um fantasma que rejuvenesce a cada dia.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Tira o tubo! Tira o tubo!


Preparem o carbono 14. No começo dos anos 80, Jô Soares ainda não se achava mais inteligente que seus entrevistados e fazia alguns ótimos programas de humor. Um de seus melhores quadros foi o do general que entrou em coma no dia 1.º de abril de 1964 e só voltou à consciência durante o período da abertura política. Suas cenas eram sempre no hospital, com ele recebendo o soro que o mantinha lúcido. O cara levava um choque a cada programa, quando contavam de quem era situação em 64 e tinha virado líder da oposição, etc. A cada surpresa, ele chorava: “Me tira o tubo! Me tira o tubo!” O bordão virou um sucesso.
Atualmente, cada vez que leio a primeira página do jornal sinto uma devastadora vontade de gritar “tira o tubo!”. Mas gritar pra quem? Pra onde o ceguinho corre na hora do tiroteio? Os escândalos se sucedem com a velocidade de um seriado de aventuras – e daqueles com produção de quinta (atores péssimos, elenco feio, uma desgraceira só). A coisa chegou a tal ponto que o maior perigo, hoje, é nosso corpo deixar de produzir o hormônio da indignação. A anestesia moral nos ronda. Isso é apavorante.
Câmara dos Deputados e Senado Federal entraram num racha de devassos: competem para ver qual entidade produz mais pouca vergonha às custas do dinheiro público. Depois de decidir que podem viajar pra cima e pra baixo com nossa grana, os políticos acobertam uma série de “atos secretos”, nome educado para uma calhordice sem tamanho. Em vez de cobrar um mínimo de decência, o presidente do Senado, José Sarney, sobe à tribuna para chorar as pitangas e se dizer injustiçado, perseguido, caluniado – mas resolver o problema, que é o mínimo que se espera, nada.
Com isso, já teríamos assunto suficiente para chamar mais uma cerveja indignada. Mas lá do Cazaquistão – um daqueles lugares que ninguém encontrava nas partidas de War – o presidente Lula mete sua colher no angu e acaba de enfeiar o que já não era bonito. Dizer que ninguém pode falar de Sarney... pessoa comum... Enfim, quem lê o noticiário sabe do que estou falando. É doloroso ver a que ponto desce um político de passado combativo. Nada justifica, nem mesmo as negociações escusas pra se manter no poder a qualquer custo.
É de tirar o tubo de qualquer um. Em outra página do jornal, políticos do PT flertam com Orestes Quércia, oferecendo a ele uma cadeira de senador, com a promessa de 4 milhões de votos garantidos. Quatro milhões de quem, cara pálida? O meu voto, o Quércia não leva. Pra senador do PT, eu sempre votei no Suplicy, mas até ele saiu chamuscado com a farra das passagens aéreas. Flertar com Quércia, notório freqüentador das listas de políticos com enriquecimento estranho, equivale a pegar todos os panfletos, brochinhos, faixas, bandeiras e passeatas do glorioso passado petista e jogar na caçamba do lixo reciclável – quem sabe, dê pra fazer alguma coisa que preste com esse entulho democrático.
Numa terra que prima pelo império das leis – não pode fumar, não pode beber, não pode fazer festa na Paulista – chega a ser comovente o cinismo aviltante dos políticos. Ou você não tem vontade de sentar no meio-fio e chorar feito criança que se perdeu da mãe na feira? No mesmo país em que o seu suado imposto de renda ajuda a governadora Roseana Sarney a pagar seu mordomo em Brasília, um político de Brasília apresenta projeto obrigando teatros a exibir legendas para surdos – teatro com legenda, vocês leram bem – sem especificar de que bolso sairia o dinheiro para tal benemerência. A cada mês surge alguém com uma nova taxa, um impostinho aqui, uma obrigaçãozinha ali... E a nosso favor, nada.
Com o que contam os protagonistas dessa patética comédia de erros? Com a nossa pouca memória, fundamental para suas constantes reeleições? Com a nossa falta de vontade de esperar por eles ‘lá fora’ e descer o merecido cacete? Que reação, enfim, será necessária para que eles parem de se lixar para a opinião pública? Aquele deputado, coitado, foi o único sincero – os outros também se lixam, mas não abrem a boca.
Do início da abertura pra cá, passaram-se 30 anos... Tempo em que muita coisa mudou – mas algumas permaneceram tristemente as mesmas. Ainda dá pra rir de quem grita “Me tira o tubo!”. Mas, antes, nós ríamos do general recém-saído do coma. Agora, são os políticos que ouvem nossos gemidos na enfermaria da moralidade pública – e riem da nossa cara.

terça-feira, 16 de junho de 2009

Parada rumo ao armário




Os cariocas têm muito a ensinar. Em São Paulo, devíamos copiar alguns de seus métodos. Realização de grandes eventos, por exemplo. Desenvolvi comigo mesmo a teoria que o Rio de Janeiro fecha um pacto com os chefões do tráfico a cada grande acontecimento – Rio 2000 e tanto, Carnaval, Réveillon... Quem só vai ao Rio nessas ocasiões sai de lá com a melhor das imagens. Tudo funciona, tudo é lindo, tudo é perfeito. Tudo rola na santa paz do senhor.
A Parada Gay do último domingo virou, mais uma vez, o centro do noticiário local. Não é pra menos. São milhões de pessoas desfilando pelas Avenidas Paulista e Consolação, teoricamente defendendo o direito de cada um deitar com quem quiser. Dizem os organizadores que foram 3,5 milhões de almas – número rebatido pela oposição do próprio movimento gay. Em meio a tanta gente, a polícia registrou umas 60 ocorrências entre roubos variados e, horror, gente ferida, esfaqueada...
Por conta desses problemas, voltam a defender o fim da Parada na Avenida Paulista. Quem é o primeiro a alardear essa intenção? Gilberto, o alcaide. Só por isso eu já devia ser contra. Mas vamos ser democráticos e discutir a idéia. A primeira pergunta a ser feita é: por que? Porque a parada interrompe o trânsito de duas mega-avenidas paulistanas, impedindo o acesso a hospitais e cemitérios (convenhamos, fazer um velório escutando “I Will survive” ao fundo é de tremendo mau gosto). Realmente, a Parada altera e atrapalha o trânsito da cidade no domingo.
Mas... E a São Silvestre? O trajeto da corrida patrocinada pela Rede Globo é muito maior e interrompe o trânsito de muito mais ruas. E o show do ano novo, quando a prefeitura e a Rede Globo (gente, ela de novo!) montam um palco enorme no meio da avenida para que ídolos populares faturem o seu e animem a galera (público de evento é sempre galera). A construção do palco consome dias e dias, atrapalha o trânsito da Paulista dias e dias... Sua desmontagem também. Assim como a Marcha para Cristo (que reúne outros milhões de almas), o show de fim de ano é um evento pa-ra-do. A Parada e a São Silvestre passam pela Paulista. Interrompem, mas logo passa. Portanto, dizer que só a Parada atrapalha é falso.
Alegam agora o problema da segurança. E realmente, a coisa tá feia. Eu mesmo caí numa arapuca domingo. Fiquei 15 minutos vendo a parada, ali, na altura do MASP – perto do palanque das autoridades. Do nada, uma ambulância mal orientada entrou na avenida e começou a forçar caminho entre as pessoas. Foi um empurra-empurra assustador, o risco de tropeçar e virar purê era imenso. Nessas, meu celular passou do meu bolso para outro, sem que eu me desse conta. É um saco, claro, tenho que refazer a agenda, gastar dinheiro com um novo aparelho... mas pelo menos estou inteiro. Escapei ileso.
Enquanto buscava um meio de escapar à multidão (foram meus 15 minutos mais apavorantes dos últimos tempos), fiquei pensando na falta de policiamento – ok, guardinha nenhum daria jeito na turba. Pensei também no motorista daquela ambulância: quem é ele, quem o deixou entrar ali? A imprensa, que podia descobrir isso, nem se importou. Preferiu reportar o pânico de duas mães, que estavam ali no meio da turba com seus bebês – um deles, num carrinho!
Eu vi essa sujeita. E fiquei me perguntando o que faz uma cabeça de alcachofra dessas levar um bebê pequeno num carrinho a um evento que vai atrair milhões de pessoas. Mães também têm direito a se divertir, claro, mas sem colocar a vida dos filhos em risco. E sem querer dividir a responsabilidade com milhões de estranhos mais preocupados em seguir o trio elétrico da Marta Suplicy ou da Salete Campari (a Salete é a loira mais natural). Querer que a parada saia da Paulista porque a dona Alcachofra quase perdeu o filho é hipocrisia. Ou advogar um lugar mais aberto só porque o Mário perdeu o celular... ora... Multidão, minha gente, é assim mesmo, aqui ou em Nova York. A queima de fogos pelo 4 de Julho americano, lá em Manhattan, também é um pega-pra-capar incontrolável.
Afastar a Parada da Paulista pra onde? A Marta Suplicy, quando prefeita, organizou uma festança na 23 de Maio – uma possível alternativa, avenida larga, etc. Foi a festa mais chata da paróquia. Sem graça, sem charme. Mandar os trios, as travecas e os go go boys para o Sambódromo também é outro mico. Só vão eles, uma caravana de Jundiaí e a turma que mora na Zona Norte. Mais ninguém. Será que a intenção é essa? Devolver os gays, os simpatizantes e até seus assaltantes de estimação pro gueto?
A classe média intelectualizada, que sempre achou o máximo uma parada gay em São Paulo, capaz de nos igualar a San Francisco, Sidney e Nova York, essa classe média já vem se afastando da ‘nossa’ parada. Eles se sentem acuados com “o pessoal da periferia” – um pessoal mais feinho, magricela, disposto a encher a caveira com aquele vinho de quinta... A maioria nem é gay! Ou pelo menos não parece. Vai lá pra tirar foto abraçado às drags, que vivem seus momentos de Paris Hilton do Tietê.
Enquanto era um evento mais elitista, a parada atraía atores, jornalistas, escritores, pintores, arquitetos e outras categorias profissionais mais chiques. Com a chegada das caravanas e com o empobrecimento estético e econômico de seus participantes, ir à parada é out, fora de moda, cafona. “Bem feito que foram assaltados! Quem mandou?” Assim, se Gilberto quiser mandar as travecas pobrinhas pro Sambódromo, danem-se eles... Acontece que as monas, drags, bibas e bichinhas caipiras, doidas pra ferver no coração de São Paulo são tão donas da Paulista quando o Abram Szajman, Gilberto Kassab, Salete Campari, eu ou você.
Pior: lá no outro lado do Tietê, a Parada vai virar um evento falsamente popular. Não há metrô nem ônibus que levem ao sambódromo, pelo menos com acesso tão fácil quanto na Paulista. O sambódromo paulistano, sabemos todos, é um arremedo do carioca. É tão paulistano quanto o Lagoa do Abaeté. O charme, a beleza e o segredo da parada é estar na Avenida Paulista, é usar o corredor financeiro do país pra mostrar que aqui tem veado, lésbica, mãe de família, guarda de trânsito e aposentado se divertindo. Tem cenas homofóbicas, também, e essas devem ser reprimidas com rigor. Mas, no geral, o clima é de festa e não de reunião de pais e mestres. E é isso, acima de tudo, que precisa ser preservado.
Senhores empresários que faturam com o Pink Money, não deixem que estrangulem a galinha dos ovos de ouro. Lojistas, hoteleiros, donos de restaurantes e saunas e bares, batedores de carteira e camelôs de vinho vagabundo, uni-vos!


domingo, 14 de junho de 2009

Ver Fernanda


Uma cadeira aproxima Fernanda-mãe da Fernanda-filha. Há quatro ou cinco anos, Fernandinha Torres implodiu os palcos com uma interpretação vigorosa da sexagenária desbocada de “A Casa dos Budas Ditosos”. Passava quase duas horas sentada atrás de uma mesa, pretensamente dando uma palestra, na qual relatava escandalosas memórias sexuais. Era um momento de puro teatro – aquela mulher ainda jovem passar a experiência de uma velha, sem recorrer a próteses, peruca de fios brancos e voz trêmula.
Atualmente, é a Fernanda-mãe, também conhecida como Fernandona, que recorre à cadeira. Durante 60 minutos, a escritora francesa Simone de Beauvoir reencarna no corpo de Fernanda Montenegro, na peça “Viver sem tempos mortos”, baseada nas cartas que Simone de Beauvoir deixou. Às vésperas de completar 80 anos, Fernandona transmite a uma platéia que, muito provavelmente, nunca leu “La” Beauvoir, o que pensava e sentia a mulher que mudou a imagem que o mundo – e a própria mulher – tinha do sexo feminino. Faz uma Simone com os olhos brilhando ao contar como conheceu Sartre. Segura os seios com uma sensualidade que nenhuma siliconada consegue atingir. Simone de Beauvoir existe ali.
A francesa ainda entraria pra enciclopédia como “a mulher” do filósofo Jean-Paul Sartre – embora nunca tenham sido oficialmente casados e tenham mantido uma relação aberta. Abertíssima. E até hoje provocadora de risadas nervosas na platéia, que parece espantada por aquela senhora no palco contar de seus casos com rapazes e meninas, movida unicamente pelo direito ao prazer.
Se Fernandinha provou de vez que era ótima atriz sentada numa cadeira, sua mãe parece estar se despedindo do palco sentada numa outra cadeira. Pode não ser intenção de Fernandona aposentar-se de vez, mas a platéia age como se assim fosse. Aplaude emocionada um espetáculo que nem é pra tanto. Fernanda comove, claro. Domina cada sílaba, entende cada pausa, controla o público com invisíveis cordões de marionetista – mas não atinge as notas sublimes de “Dona Doida”, “As Lágrimas Amargas de Petra von Kant” ou “É”.
Mesmo assim, tem a ousadia de fazer uma peça sem pirotecnia – é ela, vestida de camisa branca e calça escura, sentada num palco cinza, mais nada. E fala de Sartre, de Merleau-Ponty e outros escritores que a gente nem sempre ouviu falar. Num tempo em que as pessoas famosas sublinham o fútil, falar de valores intelectuais soa como um atentado terrorista.
Um ou dois dias antes de eu assistir a “Viver sem tempos mortos”, o jornalista Robinson Borges comentou, entusiasmado: “Tem um momento do espetáculo em que você não sabe se quem está ali é a Simone ou a Fernanda”. É verdade. Simone e Fernanda tiveram em comum a união com um homem forte. Simone com Sartre, Fernanda com Fernando Torres, falecido no ano passado.
Enquanto os franceses levavam uma existência de “fiestas” sexuais, Fernanda e Fernando – pelo menos no que chega a nós – tiveram uma vida dedicada um ao outro. Não se sabe de escapadas ou farrinhas de nenhum deles. No entanto, quando Simone/Fernanda narra o período em que seu homem agonizava doente numa cama, você fica em dúvida: quem está falando? A atriz ou a personagem?
Eu esperava me emocionar mais com Fernanda. Ao mesmo tempo, saí contente do teatro por vê-la em cena, dedicando cada um daqueles minutos a mim – ok, a nós – e fazendo brilhar um texto que, nas mãos de outra atriz, soaria piegas. Depois de Cleide Yáconis, que vivia uma sensacional Simone de Beauvoir na peça “A Cerimônia do Adeus”, de Mauro Rasi, Fernanda Montenegro faz uma Beauvoir provavelmente muito mais interessante do que a original.
É a arte e seu poder recriador. O gesto certo, a luz adequada e a entonação correta – e nossa imaginação concorda que a Rua Doutor Vila Nova é a margem esquerda do Rio Sena e que aquela birosca de café expresso é o Café de Flore, no bairro de Saint-Germain. Pouco importa se, na saída, a discussão será em qual pizzaria terminar a noite. Por uma hora, estivemos respirando o mesmo ar que Fernanda Montengro, Simone de Beauvoir e outras figuras lendárias. Tornamo-nos, nós também, parte da lenda.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Um post sem jeito


A conversa alheia me fascina. Volta e meia, eu me pego escutando o que pessoas perto de mim conversam, entretidas, sem se dar conta da minha bisbilhotice. Às vezes, são frases pescadas no meio do assunto. Outro dia, no Extra da Brigadeiro, escutei dois funcionários fofocando, enquanto repunham o estoque da prateleira. “Foi na Virada, menina. Ela largou dele no meio da Virada!” Continuei minhas compras, pensando: esse cara vai odiar a Virada pro resto da vida... Depois, pensei: em que show será que foi? O da Maria Rita? Do Marcelo Camelo? Do Reginaldo Rossi? Ou dos Novos Baianos? Não, ninguém larga ninguém no meio de um preta-pretinha...
Essa semana, eu me trocava no vestiário da ACM quando pesquei a conversa de um professor com o faxineiro, um pernambucano palmeirense apelidado de Tiririca. Caí de pára-quedas no corredor ao lado, eles não me notaram e eu só comecei a me interessar pela conversa lá pelo meio. Era alguma coisa sobre saga familiar – e como pernambucano tem família grande, o papo ia longe. Lá pelas tantas, Tiririca conta de um irmão, que ficou doente e morreu. Tudo muito rápido. “Ele perdeu o jeito de viver”, disse o Tiririca. E eu fiquei pasmado, segurando a toalha úmida, esperando passar o efeito da poesia repentina.
“Ele perdeu o jeito de viver” carrega tanta tristeza, tanto machucado... Seria diferente se ele tivesse dito do irmão: “Ele se entregou à doença”. O resultado seria o mesmo, o irmão teria morrido. Mas o motivo é bem diferente. Quem se entrega desiste, joga a toalha, cede, sai derrotado. Quem perde o jeito de viver, não.
Perde-se o que se tinha: o cara devia ser um sujeito alegre, festeiro, aquele que chega e anima a reunião. Ficou doente e alguma coisa se quebrou dentro dele, ele ‘perdeu o jeito’. Viver passou a ter um segredo, a ser um truque escondido numa cartola impossível. Como uma ordem vinda de fora, um fado contra o qual sempre se perde, apesar da luta.
A gente perde o jeito de muita coisa na vida e nem sempre se dá conta. Perde o jeito de amar alguém. Perde o jeito de saborear uma amizade ou de admirar um gesto. Quando perde o jeito, a gente para de regar a planta, não aduba mais o sentimento, deixa a coisa correr por si. Perde o jeito de ouvir o outro, de reconhecer o erro, de pedir desculpas ou de falar coisas bonitas. Falar bobeira, discutir a sério, rir à toa ou deixar cair o choro. Perder o jeito deixa um vazio. Perder o jeito é um perigo.

domingo, 7 de junho de 2009

Levantou, mas não sacudiu a poeira


“Um homem de moral”, o documentário dirigido por Ricardo Dias, começa de maneira inusitada. Tendo como tema a obra do homem que compôs ‘Ronda’, o hino da boemia paulistana, o filme se inicia com o nascer do sol. Gente indo pro trabalho, preparando as barracas da feira, esperando a loja abrir... O filme começa quando os personagens de Paulo Vanzolini vão dormir. Ao longo do filme, esses personagens vão aparecendo em flashs, como se tivessem saído das letras do compositor.
Ricardo Dias conhece bastante o seu personagem. Desde criança, é amigo de Vanzolini. É cientista, que nem ele. Trocam idéias e figurinhas. Graças a essa intimidade, o filme registra um Vanzolini à vontade, distante da imagem de urtigão que se tem dele. Mas é também graças a essa intimidade que o filme de Ricardo Dias tropeça. Por conhecer demais Paulo Vanzolini, o cineasta esqueceu-se de contar ao público quem é aquele velhinho cheio de marra e perspicácia. Quem não sabe nada sobre a vida do compositor continuará sem saber. Pena. Ricardo Dias chega ao ponto de contar na primeira pessoa, em off, sobre um outro filme que fez com o compositor. Não explica e, se não pesquisar, você fica sem saber que filme era ou de quem era a voz que contou isso.
“Um homem de moral” ganha pontos em alguns números musicais – mas atinge o máximo, mesmo, ao mostrar para muita gente que Paulo Vanzolini assinou muitas letras sensacionais. Pena que nem todas sejam tão conhecidas. Algumas dessas letras podem figurar entre as mais bonitas da música brasileira – “Praça Clóvis”, por exemplo, é uma obra-prima. “Chorava no meio da rua”, outra. “Maria que ninguém queria”, mais uma. Saímos do filme com a sensação de ter visto um show bacana.
Mas depois de “Simonal, ninguém sabe o duro que dei”, fazer documentário sobre músicos brasileiros pode ser mais complicado do que catar meia dúzia de depoimentos, colocar seis ou sete artistas pra cantar – e estamos conversados. Não basta expor, é preciso refletir sobre, inovar na apresentação e surpreender a audiência.
Não é por acaso que os melhores momentos de “Um homem de moral” fogem do esquema. Quando junta uma renca de gente cantando versos de “Volta por cima”, Ricardo Dias emociona – eis a prova: a obra daquele homem é mesmo conhecida por todo mundo. Isso é lindo e poderia ficar ainda melhor se ele tivesse confiado no taco, tirando a gravação com Noite Ilustrada, que guia as participações populares. Outro momento sensacional é a japonesa no karaokê – explicitando um depoimento do próprio Vanzolini no começo do filme. Bárbaro.
Tem ainda um inusitado depoimento de Adoniran Barbosa, o outro compositor símbolo de São Paulo. Autor de muito mais sucessos populares que Vanzolini, Adoniran parece intimidado ao falar do amigo – eles eram amigos – e reproduz a voz corrente: Adoniran era bom, mas Vanzolini (doutor) era mais completo – por que era doutor, por que escrevia certo, por que não era bagaceira. Pena que Adoniran não esteja vivo para que alguém o contestasse. Mentira.
Adoniran e Vanzolini têm a mesma estatura, são excelentes compositores e conseguiram captar o coloquial brasileiro em suas letras como poucos. Achar que as excelentes letras de “Ronda”, “Volta por cima” e “Praça Clóvis” sejam superiores a “Apaga o fogo, Mané”, “Vide verso meu endereço” e “Iracema” é lançar um olhar preconceituoso sobre poemas tão lindos. Nenhum dos dois merece isso.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Rico brasileiro não tem espelho


Descobri que um vizinho do prédio (ou melhor, do condomínio; morar em ‘prédio’ ficou muito chinfrim) está envolvido com o curso de luxo da Fundação Getúlio Vargas – gestão do luxo, administração do luxo, alguma coisa assim. Aulas sobre vinhos especiais, investimentos, roupas, sonhos de consumo, enfim, tudo aquilo que fica ao alcance de quem tem muitos zeros à direita no saldo bancário. Ele só se embananou na hora de montar um módulo sobre os ricos na arte brasileira. “Não tem”, ele me disse, tomando um cafezinho no Viena da Avenida Paulista. “A não ser em novela”.
Meu mergulho mais profundo para entender o faiscante mundo rico foi a leitura de “Riquistão”, do jornalista americano Robert Frank, que passou anos acompanhando a trajetória de gente muito-muito-muito rica para o Wall Street Journal. Do curso para mordomos até a hora de escolher um iate, tudo passou pelo crivo de Frank. Mas essa leitura não ajudaria na minha conversa com meu vizinho, preocupado com a falta de ricos na arte verde-amarela.
O cinema, ele disse, nem toca no assunto. É verdade. Cineasta brasileiro sempre optou por retratar as classes mais desfavorecidas, também chamadas de ‘pobres’. Diz-se que isso acontece porque nossos cineastas nascem em classes abastadas. Não é só. A síndrome do desdentado que aflige boa parte do cinema nacional tem muito a ver com o destinatário do filme, o público classe-média. Parece que, didaticamente, os cineastas dão a seguinte mensagem ao espectador: “A diarista, a tia do cafezinho ou o tiozinho da faxina, veja você, têm histórias pra contar. E algumas muito interessantes. Até edificante, não é só choradeira e miséria. Essas são suas histórias.”
A crítica – e os espectadores mais ‘antenados’ – também ajudam a perpetuar o figurino de chita nas nossas telas. Qualquer filme com personagem mais arrumadinho é logo acusado de ter “linguagem publicitária”. O máximo que se autoriza é personagem classe média, desde que espezinhado pela crise e amargurado por um passado sombrio. Se ele ficar em silêncio, olhando o vazio como se tivesse algo profundo a dizer (não tem, mas vale o fotograma), não precisa nem roteiro compreensível. Os filmes de Claudio Assis (Baixio das Bestas) e Selton Mello (Feliz Natal) provam a tese.
No teatro, então, nem se fala. Toda vez que querem montar uma peça sobre ricos, os diretores recorrem a Oscar Wilde. Noel Coward, muito de vez em quando, raríssimo. É bem verdade que, devido à carência orçamentária, os ricos do palco ficariam muito falseados. E também devido ao desconhecimento da espécie retratada, poucos atores conseguem interpretar um rico sem: a) soar antipático; b) parecer fútil; c) falar como se tivessem sido empalados por um cabo de vassoura; d) se jogar no sofá: por alguma razão que me escapa, todo rico de teatro se atira no sofá da sala, como se não soubesse se sentar normalmente.
Na música, rico só aparece cantando. Nos anos 60, Tereza Mecha-Branca e Maysa. Mais recentemente, Mariana Aydar e Roberto Justus gravaram seus CDs. Mariana é ótima, de verdade. Agora, chamar o Justus de cantor é a mesma coisa que equiparar a Caras a Dostoievski. Não dá – nem pra ouvir, nem pra levar a sério.
Resta mesmo a televisão. Nas novelas, o núcleo rico é o sonho de muita atriz, que só assim poderá fazer as unhas e os cabelos por conta da produção. Até o advento de Gilberto Braga, rico de novela só servia para espezinhar pobre e ter filho que se apaixonasse pela empregada. A Mãe Rica, invariavelmente má, arquitetava planos maquiavélicos enquanto tomava chá (rico sempre toma chá completo, pode reparar).
Gilberto Braga criou ricos verossímeis, dando-se ao luxo até de ter a melhor Mãe Rica Má de todos os tempos, a insuperável Odete Roitman: Odete defendia os filhos, à sua maneira torta, e dava duro diariamente na empresa da família, a TCA. Os ricos de Braga não vivem de brisa. Felipe Barreto era cirurgião plástico, agora a Stella Simpson... essa eu não lembro o que fazia. Atualmente, tem até rico bobo de tão bonzinho, como provou João Emanuel Carneiro, em “A Favorita”.
Mesmo sendo um naquinho da pirâmide social, em números absolutos, os ricos mereciam mais espaço nas artes. Em outras atividades, coitados, eles vêm seus redutos ocupados por uma classe média das mais barulhentas – quando alguém imaginou que um resort all-inclusive seria oferta de uma CVC? É o fim dos tempos.
Nota-se, aqui e ali, movimentos discretos de revolta. Um site de relacionamento só para gente muito endinheirada. Clubes com ingresso exclusivérrimo. Revistas classe A plus noticiam seus feitos (a Caras, no começo, ainda mostrava um pouco do universo dos happy few, mas agora, só dá capa para cantora de axé e apresentadora de programa infantil). E fica por aí. Sem nada que os mostre de verdade nos cinemas, na literatura e nos palcos, resta aos realmente ricos os campos de pólo, desde que os paparazzi não venham atrás do Rico Mansur, aquele wannabe deslumbrado.

terça-feira, 2 de junho de 2009

Paris, dois tempos

Há vários dias me entusiasmei com a leitura de “Os exilados de Montparnasse”, do jornalista e pesquisador Jean-Paul Caracalla. O livro faz um apanhado histórico do que era Paris nas quatro primeiras décadas do século 20 – a capital do mundo. Londres tinha mais dinheiro, mas Paris tinha o glamour, a liberdade, a efervescência. E dentro de Paris, nada era mais fervido que o bairro de Montparnasse, na margem esquerda do Rio Sena. Todo mundo que um dia viraria verbete bem recheado de enciclopédia circulava por ali.
Pela descrição de Caracalla, era praticamente impossível pisar em qualquer rua de Montparnasse sem tropeçar em Picasso, Hemingway, Gertrude Stein, Erik Tatie, James Joyce, Scott & Zelda Fitzgerald, além de outros que entraram no papel de “grande elenco”. Cafés e restaurantes que, hoje, têm as mesas disputadas a tapa por turistas de camisa florida e sacola de compras, eram os templos onde imperavam escritores, editores, poetas, fotógrafos e atores.
Eu ia mesmo escrever sobre o livro, mas aí acordei na segunda-feira com a notícia do acidente com o avião da Air France. Não tinha clima pra falar de uma cidade que fervia de intelectuais quando tudo que envolvesse o nome de Paris fosse uma grande nuvem de lágrimas. Além do óbvio – compaixão humana, solidariedade, etc – o que teve esse acidente que mexeu com todos nós?
A localização, talvez. Desaparecer no ar, sobre o Oceano Atlântico, tem algo de ficção científica, de “triângulo das Bermudas” ou “Lost”. Da mesma maneira torta que o rapaz da zona sul paulistana jogou o carro sobre três pessoas na rua, matando um, nós também poderíamos ver o acidente como um episódio de seriado que terminasse com o avião pousando em algum recanto perdido nas costas da África.
Como a vida não é roteirizada em Los Angeles, o Airbus sumiu mesmo, por razões até agora desconhecidas. Aos familiares das 200 e tantas vítimas não será dada sequer a oportunidade de deixar uma flor no local da morte. Onde foi? Em suas casas, eles devem olhar o mapa-mundi com a perplexidade dos perdidos. Na segunda à noite, o pai de um passageiro ainda dizia – mais para si mesmo – que tinha esperanças de encontrar o filho vivo. Inútil esperança.
Nosso mal-estar também se mistura ao destino do vôo: Paris. Paris não é lugar de sofrimento, de dor ou punição. Quantos, dentre aqueles passageiros, não acordaram no domingo com um brilho excitado nos olhos: “Hoje eu vou pra Paris”? E os amigos, parentes, colegas sorriam de inveja, mesmo de quem fosse a trabalho. Não se chora em Paris – só nos filmes franceses. O acidente do Airbus traiu as expectativas de seus passageiros. Negou-lhes Paris e imprimiu, nos corações de quem sobreviveu, a imagem de uma dor que parece sem cura.