quarta-feira, 29 de julho de 2009

Rubinho, o Grande Personagem


Tenho um entendimento de Fórmula 1 muito próximo do que conheço de Física Nuclear Avançada. Ou seja... necas. Mais ainda: dedico ao "esporte da velocidade" o mesmo interesse febril que tenho por boxe tailandês ou o cultivo de ruibarbos no País de Gales. Mesmo assim, não consegui ignorar o acidente que juntou, a mais de 250 km por hora, a testa de Felipe Massa ao parafuso de Rubens Barrichello. O acidente acompanhado ao vivo pelo mundo inteiro teve de tudo um pouco: drama, comédia, pastelão e ameaça de tragédia. Até o momento em que escrevo, Massa se recupera bem num hospital militar da Hungria. Bom pra ele e pros seus fãs.


Meu interesse, no entanto, recai sobre o dono do parafuso solto, o nosso Rubinho Barrichello. Como não gosto nem me interesso por corridas, atrevo-me a concluir que Rubinho é um bom piloto. Deu azar de despontar depois de Ayrton Senna, tido e havido como um dos grandes no ramo - e morto de maneira trágica, em plena corrida. Mas o assunto é Rubinho: nenhuma escuderia investiria milhões de dólares num roda-presa qualquer. Mesmo assim, o ufanismo verde-amarelo não perdoa: Rubinho é sempre motivo de piada. Mas que ele dá motivo, isso dá.


Rubinho sofre do que eu chamo de Síndrome da Mão na Bunda. Sabe aquele menino chorão, que sentava nas primeiras filas - mas nem por isso tirava boas notas? Aquele menino que era o último a ser chamado pro time de futebol... Que quando havia festinha, era sempre convidado com um displicente "aparece também"... Que, em toda brincadeira mais física dos meninos, era sempre o que mais levava mãozada na bunda? Pois é. Pra mim, era ele.


Rubinho tem sempre uma cara de choro. Está sempre sendo vítima de algum complô multinacional para afastá-lo da corrida. E raras vezes chegou ao topo do pódio - e dizem que, quando chegou, teve vertigem por conta da altura. Frequentemente, ele chega em segundo lugar. Mas um levantamento anunciado pela BandNews FM informa que, na história da Fórmula 1, Rubinho é o segundo colocado em segundos lugares. Agora, vem a história do parafuso. Não foi culpa dele, evidente. Mas que rende piada, rende...


Não conheço o homem Rubens Barrichello, só sei da sua vida o que a Caras mostra de vez em quando. Mas o personagem que se pode criar a partir do que é mostrado nas corridas é estimulante. Se tivesse índole trágica, Rubinho seria Iago, o mais genial vilão criado por Shakespeare. Invejoso, traiçoeiro, ardiloso, Iago põe em movimento a tragédia de "Otelo". Se fosse mais próximo da comédia, haveria sempre uma vaga para Rubinho nas peças de Moliére.

Mas na verdade o que Rubinho é... é um sujeito igual a muitos de nós, que mais perde do que ganha... e que, quando perde, não posa de derrotado olímpico, não: ele chora, como qualquer um de nós choraria.


Somos mais rubinhos do que gostaríamos. Como num poema de Fernando Pessoa, nós adoraríamos ser campeões em tudo, sem nunca ter levado porrada nem ter chorado em público. Queremos todos ser Ayrton Senna, Lewis Hamilton ou Michael Schumacher. Esses, mesmo quando perdem, mantêm o olhar de campeões (isso é uma arte de sobreviver na selva urbana). E, no entanto, rimos do bom que parece fraco - talvez porque "segundo colocado" é o que não chegou a primeiro... Rimos do espelho que Rubinho nos mostra, porque rimos sempre de nós mesmos.


Se não tivesse colocado em risco a vida de Felipe Massa, o parafuso do Rubinho teria sido a grande piada nacional. A malandragem brasileirinha contra a empáfia italiana da Ferrari. O truque escondido no chapéu de palha do Jeca Tatu, capaz de desmontar a cartola dos europeus. O drible torto de Garrincha versus a fofice bem comportada de Kaká. Se não se parecesse tanto com todos nós, Rubinho seria o macunaíma de capacete, herói veloz da nossa gente... E Massa, o menino fofo que deu azar de ficar na frente do parafuso.


p.s. A foto, de minha autoria, foi tirada num shopping center de Hong Kong. Piada pronta.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Nem todo herói morreu de overdose











De uns 8 meses pra cá, Mônica, Cebolinha, Cascão, Magali e sua turma invadiram as bancas de jornais do país. Há cerca de dois meses, a invasão ganhou o reforço de Luluzinha, Bolinha, Alvinho, Aninha e outros da gangue. Das bancas para as mãos de seres com idade superior a 10 anos, foi um pequeno passo. Qualquer leitor de gibis dos anos 60 a 80 vai achar que isso é a maior obviedade - mas qualquer leitor mesmo vai saber que estou falando dos adolescentes. Sim. Mônica, Cascão, Luluzinha, etc etc etc, cresceram. E pelo sucesso de vendas de suas revistas, vivem aventuras que calam fundo em milhares de jovens brasileiros.



Por curiosidade e por causa do núcleo adolescente da novela ("Poder Paralelo", Record, segunda a sexta. Pronto, mais um merchan), virei leitor desses gibis. Na verdade, eu fui leitor de Luluzinha nos idos de... bem, há tempos imemoriais, quando os animais falavam, a Hebe era morena e a TV só funcionava depois do meio-dia. Os gibis tinham o tamanho de revistas, eram coloridinhos, deliciosos. Também acompanhei a Turma da Mônica, mas dava preferência à Tina, Rolo, o Louco e outros personagens menos infantis.



Maurício de Souza, o pai da Mônica, foi quem teve a sacada: seus personagens cresceram, estudam o segundo grau (ou seja lá como se chame agora), são ligadíssimos em jogos de RPG e estão com os hormônios à flor da pele. Mônica, é claro, puxa um trem por Cebolinha, que só troca letra quando fica nervoso. Cascão toma banho e adora esportes. Magali continua comilona, mas só procura alimentos orgânicos, politicamente correta. Até o Anjinho adolesceu! E a linguagem do gibi é a dos mangás japoneses (existe mangá de outra origem?).



No rastro, veio a gangue da Luluzinha. Ela e suas amigas ficaram lindas, Alvinho virou aprendiz de surfista e Bolinha, de bolinha só guardou o apelido: virou um gatinho, trocou o violino desafinado por uma guitarra e arrasa corações. Os gibis de Luluzinha Teen são interativos: Luluzinha e sua amiga Aninha alimentam um blog - real - e respondem aos leitores no meio das histórias. A internet e suas revoluções, como o twitter, estão assimiladíssimos pela turma da Lulu.



Há várias coisas interessantes no crescimento dessas crianças tão familiares. Um deles é que nenhum deles carregou os "defeitos" (notem as aspas, please) da infância: Bolinha alongou-se e ficou uma lindeza; Cascão perdeu o medo da água; Magali come e mantém a silhueta gata... Espinhas, acnes, peso elevado, crescimento desordenado dos braços, revolta com os pais... nada disso interfere - até o momento - na vida dos personagens dos dois grupos. Talvez eles sejam o espelho idealizado dos seus leitores e isso explicaria o sucesso.



Também quase não há adultos nos gibis. Se antes víamos pais e mães - seu Cebola, a mãe da Lulu (uma boa senhora, gorducha e ruiva...) - agora eles praticamente inexistem. E não fazem falta, nem às histórias, nem aos leitores. Adolescentes gravitam em torno de si mesmos, portanto, qualquer interferência de gente crescida é mal vinda. Em compensação, nenhum dos personagens avançou na sexualidade: namoram, ficam, trocam beijos e... fica tudo por isso mesmo. Mas não será nada desinteressante ver os personagens teens em campanhas pelo uso de preservativo entre adolescentes. Maurício de Souza sempre fez várias campanhas de saúde pública com seus meninos.



Por fim, é interessante notar que Luluzinha tem o Teen e não o Jovem ou o Adolescente acoplado ao seu nome. Lembro de quando aprendi a palavra teen, nas aulas de inglês da sétima série com a dona Sônia. Teen definia aquilo que éramos: adolescentes, a misteriosa fase da vida, que ia dos 14 aos 19, 20 anos. Hoje, teen é todo um conceito, e explica por si só muitas coisas, que envolvem qualquer criatura com idade variando entre 11 e 28 anos (alguns rapazes prorrogam o estágio para depois dos 30, acreditem). "Teen" adequa-se perfeitamente à tendência jovem de abolir as palavras com mais de três sílabas: faculdade virou facu; professora é pró; refrigerante é só refri. A longuíssima e defasada 'adolescente' virou 'teen', em bom português. Segura o Aldo Rebelo...
















quarta-feira, 22 de julho de 2009

Palavra de adaptador


Se escrever uma peça é gerar vidas, adaptar é o que os antigos chamavam de 'pegar pra criar'. A criança não é gerada por nós, mas temos por ela o mesmo amor. Em todos os textos que adaptei foi assim. Com alguns, o amor é escandaloso. "Assim com Rose", o espetáculo que escrevi a partir de três contos de Mário de Andrade, é dessa linhagem. Não me canso de assisti-lo. Sempre me emociono com ele. Sempre fico atento à respiração da platéia, adivinhando onde ela vai rir e a partir de qual cena vai começar a segurar (mal) as lágrimas.


No palco, quatro atores afinados - atualmente, Daniela Mustafci, Flavio Faustinoni, Paulo Cesar Melo e Tânia Casttello (e antes, já passaram por ali Flavia Garrafa, Renato Modesto e Suia Legaspe) - vivem as histórias com um à vontade de dar gosto. Eles tomaram conta do texto, são tão criadores quanto eu, quanto o diretor Jairo Mattos. Com um jogo divertido, numa hora são crianças, na outra, velhos, para em seguida serem fantasmas sensuais... E tudo de um jeito que só o teatro permite - sem realismo, só com o faz de conta. É uma delícia.


Transportar um universo alheio para o palco dá o mesmo trabalho que traduzir a própria imaginação. Adaptar parece mais fácil, porque a história-base está pronta. Tonto de quem pensa assim. Se não mergulhar no 'mundo' do autor original, o adaptador vai, no máximo, encenar o romance ou o conto. A primeira ação do adaptador é apropriar-se sem medo do texto do outro. Sem pudor. Mas com um respeito de amante. É preciso - em teatro, cinema ou TV - transformar o texto literário em ações e diálogos. E ninguém fala como aparece nos livros.


Em "Assim com Rose", várias são as referências tiradas da biografia de Mário de Andrade. E inúmeras são as referências emprestadas da biografia do Mário Viana. Coloquei-me sem pudor no meio das histórias do Andrade e talvez tenha encontrado aí o jeito de tornar aquilo mais próximo de quem assiste. Mas em nenhum momento, fiz uma peça-charada, daquelas que só meia dúzia de íntimos entenderia. Isso é para ególatras. Também fugi do didatismo de TV educativa como o diabo foge da cruz. Didatismo não é sinônimo de clareza.


"Assim com Rose" fala de pessoas. Não encontraram nada mais eficiente para embalar o coração do público.


Se você ainda não viu, "Assim com Rose" fica em cartaz até domingo, 26/7, no Teatro Artur de Azevedo (Av. Paes de Barros, 955, Mooca). Sexta e sábado, 21 horas. Domingo,19 horas. Preços populares. Pra quem usa transporte público, é só descer no Metrô Bresser e pegar qualquer ônibus que suba a Paes de Barros.


Hoje, uma reportagem na Ilustrada levantou suspeitas sobre a honestidade de dois jurados do Prêmio Shell, Kil Abreu e Valmir Santos. Discordo de várias indicações e ausências. Fernanda Montenegro merecia mesmo ser indicada por essa peça ou só está lá por uma certa subserviência cultural dos jurados? Como puderam ignorar Marco Antonio Pâmio? É muita cretinice. Também não acho elegante que os jurados indiquem duas peças em que eles estão envolvidos. Mas, dizem eles, as peças são boas... Hã-hã.

Kil e Valmir podem até ter sido ingênuos em acreditar que o maravilhoso mundo dos não-indicados acharia normal a indicação das tais peças. Ingênuos? Pode ser. Desonestos, não. Quem os conhece, sabe. E antes que me chamem de puxa-saco, nunca nenhum deles me indicou pra prêmio nenhum.



sábado, 18 de julho de 2009

Perguntas Urbanas


Por que os ciclistas acham que têm pernas e não rodas quando estão saracoteando pela cidade? Perdi a conta das vezes em que quase fui atropelado por ciclistas que ignoram aquela luz no meio da rua, que às vezes é verde, outras é vermelha...


Por que os carros importados chegam ao Brasil sem o pisca-pisca? O recurso é muito útil para avisar que o motorista pretende entrar à direita ou à esquerda.. mas são raros os condutores que sabem manejar o pisca-pisca aqui. Quando aluguei carro no exterior, testei e funcionou.


Por que insistir em bairrismos, quando ouvimos todos os sotaques e idiomas numa caminhada sem compromisso até o cinema?
Por que moramos num país em que o banco 24 horas funciona em horário comercial?


Por que não dá mais para falar ao celular quando se caminha pela Paulista (e arredores), correndo o risco de ser assaltado? Também não poderemos falar ao celular enquanto dirigimos, porque a multa será aumentada. Celular, em São Paulo, só dentro de casa. Ou da firma, se o chefe deixar.


Por que nos sentimos cada vez mais acuados? Miseráveis estendem seus trapos na Paulista, mas suas imagens não se refletem nos vidros fumê dos prédios bacanas... São os neo-zumbis, sem um Thriller que os redima.


Por que se diz que o consumo de crack tomou conta da cidade? Por dois motivos: primeiro, por que é verdade. Segundo, porque os crackeiros que viviam confinados na Boca do Lixo tiveram suas tocas demolidas ou lacradas pela Nova Luz. É triste a comparação, mas lembra um ninho de ratos atacado: a colônia se espalha por todos os cantos. E se reproduz mais.


Por que devemos tomar cuidado? Para que o nosso coração não se habitue ao desconjuntado e interminável desfile da miséria sob nossas janelas...



quarta-feira, 15 de julho de 2009

Você não vale nada...




Sei que não é muito elegante falar da concorrência, nem é muito inteligente, porque chama a atenção justamente para a concorrência. Mas o fato é que há algum tempo me dá certa coceira aquele forró gostosinho, "Você não vale nada, mas eu gosto de você", que martela os ouvidos de quem assiste "Caminho das Índias". A música é tema de um dos personagens mais engraçados da trama, a Norminha, vivida com exuberância de curvas por Dira Paes.




O resumo da ópera, pra quem não vê a novela, é o seguinte: Norminha é casada com um guarda de trânsito xarope, mas de bom coração. Toda noite, ela serve leitinho morno pro marido, temperado com sonífero. O guarda cai no sono e Norminha cai na farra. Acaba seduzindo um adolescente indiano com nome de prato do Almanara. Noite após noite, Norminha desmente o nome, descendo a rua, sendo vista pelo rapazinho a ajeitar os peitos dentro do sutiã rendado - e dá-lhe forró. "Você não vale nada, mas eu gosto de você..."




Como eu vejo a novela muito de vez em quando, não sei detalhes da trama. Mas me incomodava o fato de uma mulher que pula a cerca de maneira bem humorada "não valer nada" em rede nacional. Tudo bem, traição é sempre algo ruim, especialmente se você é a parte traída. Mas escapar do casamento meia-boca é não valer nada? Agora, a coisa piorou. Li que Norminha será castigada pelo marido, levando uma surra pública e exemplar.




O humor físico, desde Buster Keaton e Três Patetas até o Kramer, de "Seinfeld", volta e meia apela para surras, tapas e pescoções, com resultados hilários. A história deixa de ser bem humorada quando a violência é usada como solução moralizadora. A quem interessa que Norminha leve uma surra? Às donas de casa fora das medidas curvilíneas e sem condições de exibir os peitos em sutiãs rendados? Aos maridos dessas mulheres, que condenam a assanhada, mas apreciam uma vizinha que o seja? Aos guardas de trânsito?




Norminha é um personagem engraçado e a brasilidade explícita da atriz bane pra longe todos os arebabas e narrins da novela. Não sei quando será o linchamento moral da assanhada Norminha. Para ter algum fundamento prático, poderia ser no mesmo dia em que forem descobertas todas as mentiras contadas pela mocinha, Maya. Seria um paralelo interessante: mostraria que o olhar retrógrado não mora apenas na Índia. Está também em nossos bairros mais populares, em condomínios de luxo, em praças, parques e shoppings. Muitas vezes, está nos consultórios como o da psicóloga carioca que trata homossexualismo como doença e advoga teses que o papa Bento 16 acha meio conservadoras. O nome da moça, guardem, é Rozângela Justino - o sobrenome só pode ser ironia.


segunda-feira, 13 de julho de 2009

"A solidão vai acabar comigo..."


Abancado na poltrona E-10 do Teatro Augusta, sinto que o palco se transforma na fachada de um prédio de quitinetes do centro de São Paulo. É noite ou, melhor, aquela hora em que a noite não sabe se vai, o dia não decide se chega. Na calçada, um rapaz de corpo musculoso exibe-se com o despudor dos carentes. Nas janelas, cinqüentões bêbados assistem à passagem faminta do tempo. A nova peça de João Fábio Cabral, “Tanto”, dura 80 minutos, mas persiste mais tempo na memória da gente.

João Fábio vem construindo uma carreira muito legal de dramaturgo. Não nega as influências, mas aos poucos digere quem lhe serviu de mestre e aponta os próprios caminhos. Em “Rosa de Vidro”, linda, ele batia continência para Tennessee Williamns. Em “Flores Brancas”, arriscava-se no retrato da paixão de duas mulheres – a peça tinha diálogos atraentes, mas não aprofundava o conflito das personagens. Há outras peças dele por aí, é preciso ficar atento e ir. Ele erra e acerta, como todo mundo, mas faz, produz, dá a cara a tapa - como nem todo mundo.

Em “Tanto”, João Fábio mergulha mais fundo. Mergulha tanto, que no início temos a impressão que será uma peça de monólogos. Os personagens de João Fábio são verborrágicos – e por um momento eu temi não ouvir os sempre bons diálogos do autor. Enganei-me.

Quando começam a conversar, José, Antonio e Artur trocam tantas informações desencontradas, que o resultado – para eles, não para o público – acaba sendo o oposto. Fala-se muito, mas não se chega a lugar algum. Aqueles três homens não se entendem, estão sozinhos, esmagados por uma solidão absoluta. Nenhum deles é de São Paulo (como o autor), os três se conheceram aqui e não estranham serem de outros recantos – de onde, não dizem, tudo é deliciosamente vago. Esse não-dizer tem um encanto especial numa época em que as pessoas querem se expor sem limites.

A certa altura da peça, personagens expostos, diálogos travados – na platéia sente-se a amarga solidão que cerca aqueles homens. É como se o espírito de Caio Fernando Abreu pairasse no ar, mas sem a devoção mórbida que muita gente cultua em torno do escritor gaúcho. É como se a qualquer instante, a voz rouca de uma jovem Marina Lima fosse rasgar os ares cantando “Solidão”, de Dolores Duran. E ninguém achasse isso estranho.

Os personagens de “Tanto” moram no centro de São Paulo, mas são de fora. A peça se passa em dezembro e, mesmo assim, faz frio. Os personagens navegam na internet, mas vivem no aquário dos anos 80. O michê procura carinho, o escritor não vê mais saída e o gay – que profissão tem aquele gay? – mergulha na vodca e na saudade de Elis Regina, rindo de seus vexames. Ainda paira um romantismo nas relações, o dinheiro não limitou os caminhos.

Gustavo Haddad (o escritor depressivo) e Guilherme Gonzáles (o gay que adora Elis) são jovens demais para seus papéis, é verdade. Mas aí entra o que faz o grande e imenso barato do teatro: que importa? Lá pelas tantas, a gente está tão dentro da história, que Gustavo, Guilherme ou Fábio podem brincar do que quiserem, fingir que têm a idade que quiserem ter… Eu embarquei na viagem deles – e recomendo o roteiro. A peça fica mais dois fins de semana em cartaz.

É uma peça feita com a cara e a coragem, falando de gays, de homens solitários, de figuras urbanas, de gente que se arrasta nas ruas à procura de outro olhar. “Tanto” tem cenário mínimo, três bons atores e um texto que fisga. É o que os queridinhos da mídia chamam pomposamente de “teatro essencial”. Só que esse é de verdade.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Em maus lençóis maranhenses


O Maranhão é um Estado singular. Sua capital é a única, entre as históricas, que não foi fundada por portugueses. Em sua culinária, aparecem alguns dos pratos mais saborosos da cozinha brasileira, como o arroz de cuxá e a torta de caranguejo. De suas escolas, saíram dezenas de escritores – enquanto a Bahia tem cantores e o Ceará, humoristas, o Maranhão é o Estado que mais forneceu ocupantes às cadeiras da Academia Brasileira de Letras. Em uma de suas igrejas (essa, da foto ao lado), está sepultado o traíra-mor da Inconfidência, Joaquim Silvério dos Reis. O Maranhão também figura como um dos Estados brasileiros onde o coronelato político mais fincou raízes.

O clã Sarney está aí pra não me deixar mentir. Quem já esteve no Maranhão sabe que Sarney é sinônimo de Deus, ou alguma coisa muito, muito perto disso. Antonio Carlos Magalhães, com sua empáfia baiana, teve mais visibilidade – a Bahia sempre gostou de se exibir. Mas Sarney, protegido pela distância, fez do Maranhão uma grande e empobrecida Sarneylândia. Há municípios Sarney, maternidades Sarney, escolas Sarney, rodovias Sarney – e um rio de dinheiro tilintando, como as moedinhas caindo na caixa forte do Tio Patinhas, nas contas de já-imaginamos-quem.

A atual onda de denúncias contra o ex-presidente da República, atual presidente do Senado, apenas confirma o que todo mundo no Maranhão sabe ou desconfia – e talvez nem ache escandaloso. Ninguém se mantém tanto tempo no poder, ninguém briga tanto para segurar o osso, ninguém espalha tantos tentáculos – apenas pelo amor aos fundamentos políticos. O ataque mais atual vincula o uso de verbas obtidas com a Lei Rouanet para informatização da Fundação José Sarney – um estonteante museu dos tempos de Sarney à frente do Brasil – à engorda de várias empresas da família. Alguém aí ficou surpreso? Só se foi com a rapidez com que a verba foi depositada depois da lei aprovada: 24 horas. Quem já precisou de qualquer coisa do Ministério da Cultura sabe, na pele, que nem cafezinho ali sai tão rápido...

Mas é preciso cautela – não com a onda de reportagens denunciando os desmandos (algo a que os Sarney não estão habituados, já que controlam a mídia em seus terreiros). Nem sempre o denunciante age por amor irrestrito à moralidade pública. Há interesses na jogada, dos mais pesados. Se cair, José Sarney deixará a cadeira de presidente do Senado a um político do PSDB. Por isso, não causaria surpresa nenhuma descobrir que as denúncias sejam trazidas no bico de algum tucano.

Eis algo com que Lula não quer contar – interagir com a oposição. É preciso, na visão pragmatista do PT e do presidente, manter a ordem, nem que para isso seja necessário destruir a vergonha na cara a golpes de pá. É lamentável ter de assistir a esse show de variedades grotescas. Mas também é bom imaginar a conversa na hora do cafezinho, lá na bela mansão que os Sarney mantêm na Praia do Calhau: “Eita povinho ingrato!”

domingo, 5 de julho de 2009

Uma noite na ópera dos três vinténs




Foram duas horas de carinho nos tímpanos. O concerto do grupo americano Emerson String Quartet deliciou a platéia com os volteios de Haydn, a sedução de Dvorak e a gravidade de Shostakovich. No bis, uma peça graciosa de Mendelssohn. O local não poderia ser mais adequado – a Sala São Paulo, no deteriorado centro da cidade, a meio caminho da Luz e dos Campos Elísios.
Eu sempre me sinto bem, quando estou sentado numa das cadeiras acolchoadas, entre uma decoração de madeira clara e os rococós de estilo neo-qualquer coisa da antiga estação ferroviária Júlio Prestes. Alguns músicos não gostam, há quem fale de pontos ‘surdos’ no auditório, mas é difícil não se render ao charme da sala de concertos. Mais que o gigantismo do Teatro Alfa e o peso histórico do Teatro Municipal, é a Sala São Paulo que nos rende alguns momentos de ‘primeiro-mundismo’ cultural.
Vivemos uma época em que as pessoas discutem a sério o pensamento vivo de Suzana Vieira, consideram qualquer banda de garagem uma revolução na história da música popular e acham que seis ou sete falas intercaladas compõem uma peça de teatro. Nivelar por baixo tornou-se um hábito corrente na indústria cultural. Por isso, ter alguns lampejos de primeiro mundo na Sala São Paulo parece de um esnobismo sem freios ladeira abaixo. E é mesmo. Assumamos.
Como uma provocação elitista, a Sala São Paulo fica encravada no meio da cracolândia – ou no que o eufemismo político batizou de Nova Luz. Antes e depois dos volteios sinfônicos, o freqüentador da Sala São Paulo passa por um choque de realidade dos mais cruéis: a multidão de quase-corpos que vagueia pelas ruas do bairro procurando qualquer coisa que possa ser transformada em pedra de crack. Portas travadas, vidros erguidos, olhar assustado para as calçadas – eis o que nos espera, mal soe o último acorde da noite.
Em breve, ali, haverá um teatro para espetáculos de balé, no prédio da antiga estação rodoviária, que funcionou até os anos 80. Ao lado da Sala São Paulo já funciona um anexo da Pinacoteca, no prédio do antigo Dops, onde são exibidas algumas excelentes exposições de artes plásticas. A idéia é que a arte – o apogeu da nossa evolução como seres humanos – ajuda a espantar a barbárie. É lindo e chega mesmo a emocionar. Justifica até os desmandos fiscais – é um dinheiro bem aplicado, convenhamos.
Mas será que arte é ilha? Será que a gente só consegue usufruir de um momento de grandeza cultural se estabelecer limites muito rígidos com o mundo real? Uma das paredes do hall de espera da Sala São Paulo é toda de vidro – e deixa que os apreciadores de música clássica possam ver alguns trens chegando e saindo. É uma plataforma de trens bonita, com gente comum, mas gente de verdade. Os zumbis saídos do clipe de “Thriller” estão do outro lado da rua, naquele pedaço pelo qual nosso carro passa chispando, assim que o sinal fica verde. Fora do casulo, a arte não consegue nos proteger por muito mais tempo.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

O esquilo que habita em mim...


Na trilogia “A Era do Gelo”, não há personagem mais próximo de nós do que o esquilo Scrat. Obcecado por uma avelã, ele percorre os três filmes com um fôlego de dar inveja a qualquer atleta olímpico. Scrat não desiste, enfrenta todas as dificuldades, atravessa vales e montanhas, sempre à procura da avelã perfeita. Mais humano que isso, não há.
O filme tenta nos convencer que nossa proximidade é com a salutar convivência entre um tigre, dois gambás, um casal de mamutes e uma preguiça trapalhona. Não acredite nisso. O máximo que conseguimos é encontrar pontos em comum com a Sid, a preguiça medrosa. Scrat também tem medo – ele grita e esbugalha os olhos na maior parte das cenas... Taí, deve ser o medo que nos faz compreender o esquilo precavido e a preguiça assustada.
Ao contrário do que ensina o catecismo capitalista, não é salutar ser 100 por cento destemido. O medo, que pode paralisar, é o principal motor de nossos avanços. Só seguimos em frente porque tememos a imobilidade – parados são os mortos, vivo que é vivo se mexe. Seguimos assustados, passo a passo, atentos aos sinais. Isso nos garante a sobrevida.
Mas chega desse espírito de auto-ajuda. “Era do Gelo 3” é divertidíssimo e tem malícia pra dar e vender – a borboleta que saiu do casulo e os gases tóxicos são dois ótimos momentos em que a criançada ri, mas não sabe direito do quê. Papai e mamãe, se não forem desconectados do mundo, sabem.
Desta vez, Scrat, o esquilo, encontra uma potencial companheira. Ela é charmosa, tem olhar oblíquo e dissimulado e persegue uma avelã com a mesma avidez do macho. Seriam almas gêmeas, se a aventura representada pela avelã perdida não fosse uma tentação mais forte.
Forte também é o instinto materno da preguiça Sid, aparentemente o exemplar macho de uma espécie ameaçada de extinção. Sid é, acima de tudo, um trapalhão de primeira. Mas tem um coração de ouro, tanto que adota três ovos de dinossauro. Tem início a confusão.
Não é de hoje que os desenhos animados apresentam alternativas à fórmula da Grande Família: ao lado de Papai e Mamãe há sempre Tio isso ou Tia aquilo, os solteiros disponíveis e sempre prontos ao papel de babá e aventureiro. A família Disney, então, dispensa papi e mami e enche a sociedade de tios e tias devidamente assexuados.
Na Era do Gelo, pelo menos, reconhece-se o interesse sexual. E ele chega a ser tão forte que supera mesmo a fome atávica pela avelã.