domingo, 5 de julho de 2009

Uma noite na ópera dos três vinténs




Foram duas horas de carinho nos tímpanos. O concerto do grupo americano Emerson String Quartet deliciou a platéia com os volteios de Haydn, a sedução de Dvorak e a gravidade de Shostakovich. No bis, uma peça graciosa de Mendelssohn. O local não poderia ser mais adequado – a Sala São Paulo, no deteriorado centro da cidade, a meio caminho da Luz e dos Campos Elísios.
Eu sempre me sinto bem, quando estou sentado numa das cadeiras acolchoadas, entre uma decoração de madeira clara e os rococós de estilo neo-qualquer coisa da antiga estação ferroviária Júlio Prestes. Alguns músicos não gostam, há quem fale de pontos ‘surdos’ no auditório, mas é difícil não se render ao charme da sala de concertos. Mais que o gigantismo do Teatro Alfa e o peso histórico do Teatro Municipal, é a Sala São Paulo que nos rende alguns momentos de ‘primeiro-mundismo’ cultural.
Vivemos uma época em que as pessoas discutem a sério o pensamento vivo de Suzana Vieira, consideram qualquer banda de garagem uma revolução na história da música popular e acham que seis ou sete falas intercaladas compõem uma peça de teatro. Nivelar por baixo tornou-se um hábito corrente na indústria cultural. Por isso, ter alguns lampejos de primeiro mundo na Sala São Paulo parece de um esnobismo sem freios ladeira abaixo. E é mesmo. Assumamos.
Como uma provocação elitista, a Sala São Paulo fica encravada no meio da cracolândia – ou no que o eufemismo político batizou de Nova Luz. Antes e depois dos volteios sinfônicos, o freqüentador da Sala São Paulo passa por um choque de realidade dos mais cruéis: a multidão de quase-corpos que vagueia pelas ruas do bairro procurando qualquer coisa que possa ser transformada em pedra de crack. Portas travadas, vidros erguidos, olhar assustado para as calçadas – eis o que nos espera, mal soe o último acorde da noite.
Em breve, ali, haverá um teatro para espetáculos de balé, no prédio da antiga estação rodoviária, que funcionou até os anos 80. Ao lado da Sala São Paulo já funciona um anexo da Pinacoteca, no prédio do antigo Dops, onde são exibidas algumas excelentes exposições de artes plásticas. A idéia é que a arte – o apogeu da nossa evolução como seres humanos – ajuda a espantar a barbárie. É lindo e chega mesmo a emocionar. Justifica até os desmandos fiscais – é um dinheiro bem aplicado, convenhamos.
Mas será que arte é ilha? Será que a gente só consegue usufruir de um momento de grandeza cultural se estabelecer limites muito rígidos com o mundo real? Uma das paredes do hall de espera da Sala São Paulo é toda de vidro – e deixa que os apreciadores de música clássica possam ver alguns trens chegando e saindo. É uma plataforma de trens bonita, com gente comum, mas gente de verdade. Os zumbis saídos do clipe de “Thriller” estão do outro lado da rua, naquele pedaço pelo qual nosso carro passa chispando, assim que o sinal fica verde. Fora do casulo, a arte não consegue nos proteger por muito mais tempo.

5 comentários:

  1. nossa, eu penso como vc, não suporto nivelar por baixo. acho bacana a ideia de colocarem quadrinhos para as crianças na escola. e sim, é uma forma de incentivar a cultura. mas p q precisam transformar clássicos em quadrinhos? não dá pra somar em vez de dividir? e p q acham q todos não vão gostar de ler? p q generalizam? eu estudei em áreas q eram poucas as aulas de literatura e o estímulo a eles. então era o meu professor de matemática q me indicava livros de literatura. eu vivia na biblioteca do colégio. acho um horror acharem q todos serão iguais. amei seu texto. bom, vc sempre escreve maravilhosamente. beijos, pedrita

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  2. Por isso q agora sou a favor da interdisciplina nas escolas, aprovado recentemente pelo MEC.
    Não é somente o professor de português que deva ensinar os alunos sobre leitura de livros e literatura.
    Muito bom o blog e amei a última mensagem.
    "Fora do casulo, a arte não consegue nos proteger por muito mais tempo"

    abs

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  3. Foi o melhor som de violino que ouvi na vida, a acústica da sala São Paulo é impressionante. Mas tenho medo de ir lá. Nem consigo filosofar, não tem nada de preconceito, de elitismo, é só medo, medo, medo, como diria o Belchior. Odeio essa sensação e no meu raciocínio totalmente cuzão, penso que poderiam ter feito essa obra em outro lugar.

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  4. É Mário,
    Durante um ano e meio eu andei ali diariamente, de a pé, como dizem os drogaditos. Nunca pedi uma lasquinha de pedra, também nunca me ofereceram. Nunca fui assaltado, só "estrupado" em minha digamos já pouca fé em algo etéreo, transparente, insípido, inodoro e incolor. Cara, vi coisas que até deus duvida. Quando sai de lá, só não me benzi porque tinham bebido minha água benta.... Nem te conto. Acho que daria uma peça no estilo vianístico (com algumas mulheres peladas, claro).

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  5. Mário surpresa boa tive com a chegada de Vanderley,só faltou vc.Como vê tenho acompanhado seu trabalho ,seu blog é leitura obrigatória.Fico feliz por tantas coisas boas está acontecendo pra vc.Um grande abraço..

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