terça-feira, 30 de abril de 2013

Escárnio e Barbárie


            
Já faz um tempo que venho ensaiando retomar o blog, mas a velocidade da vida tem sido maior que meu ímpeto opinativo. A cada fato que surge no noticiário, maior é o meu espanto, o choque, o "isso não está acontecendo" invadindo a alma. Das leviandades proferidas pelo deputado pastor Feliciano à discussão sangrenta sobre redução da maioridade penal, passando por crimes que nem os roteiristas mais encapetados de Hollywood conseguiriam bolar... A geleia geral que o Brasil anunciava nos anos 60 virou um sarapatel indigesto.
            Nosso horóscopo, como nação, tem somente dois signos: Escárnio e Barbárie. Um está ligado ao outro, um gera o outro, um consome o outro. E ambos renascem, como paródia da fênix da mitologia, dos próprios excrementos. Colocar o homofóbico racista à frente de uma comissão que deveria lutar pelos Direitos Humanos... colocar um condenado por improbidade na comissão de Ética... Governar fazendo da patuleia uma enorme torcida figurante, pronta apenas para aplaudir inauguração... Dar adeus às ideologias e abraçar de vez o casuísmo... Ou, como hoje, culpar os usuários pelo caos no transporte público da maior cidade do país... Tudo isso é regra de etiqueta no país do Escárnio.
            Poderia ser apenas um filme B de horror, daqueles que passam de madrugada e não nos afetam. Mas não é. O escárnio oficial é um fermento fedorento, um bolor que rapidamente toma conta das juntas morais do país. Vaza dos palácios e chega às ruas, às lojas e bares, aos lares. E quando se mistura a ele o perigoso tempero do "pra farinha pouca, meu pirão primeiro", a desgraça está feita.
            O território do Escárnio, então, cede espaço à Barbárie. É do escárnio oficial que nasce a fama de impunidade, a filosofia do jeitinho, o conceito de que, por aqui, tem lei que não pega - como semente atirada em terreno de pedra. Quando o deputado esbraveja que não vai obedecer o juiz do Supremo Tribunal - e nem vou entrar aqui no mérito do que ordenou o juiz, ele também dado a desvarios absolutistas - , quando o deputado ameaça ignorar a Lei, não há porque esperar que um adolescente criado a iogurte e maçã fresquinha tenha de se submeter às regras. Se o deputado pode, eu também posso - eis o resumo.
            Se o deputado pode ignorar a voz das ruas por que eu devo obedecer o aviso de desligar o celular no cinema, no teatro, no avião? É meu, eu tenho direito de usar. Se o vice-governador só se manifesta sobre a violência urbana quando o carro de sua filha é atingido, por que o filho mimado de um aposentado precisa se preocupar em socorrer o ciclista atropelado na Avenida Paulista? Só por que sobrou um braço dele no carro? Oras.
            Por que devemos discutir a redução da maioridade penal? Por que mataram algumas pessoas de classe média? Enquanto morriam somente os jovens da periferia, ninguém pensou no assunto... Mas reduzir a discussão a esse maniqueísmo social é indigência cultural. Como cidadão, eu não sei ainda o que pensar. Argumentos para os dois lados, há. Ouço, pondero e indecido.
            Só noto, horrorizado, que os crimes crescem em violência e desumanidade. O que fazer com quem ateia fogo a uma vítima? O que fazer com quem atira a sangue frio  no menino que não reagiu? Colocá-lo na prisão não vai resolver o problema. Mas deixá-lo impune também não. A não ser que a ideia embutida na discussão seja adotar de vez e oficialmente a pena de morte.
            Foi isso que me assustou quando começaram a pipocar os bate-bocas sobre a maioridade penal. Os mais radicais queriam mesmo era "meter uma bala na cabeça desses animais"- palavras extraídas de um post no facebook. A barbárie de lá vai ser combatida com a barbárie de cá, é isso mesmo?
            Num país em que o condenado que já cumpriu sua pena mofa na cadeia, porque a Justiça esquece de tirá-lo de lá, é bastante arriscado adotar uma medida tão definitiva quanto a pena de morte. Se não confiamos na Justiça para prender, tratar e reeducar nossos presos, por que haveremos de confiar na que aplica a pena capital?
            Da guerra de barbáries, de selvagerias de parte a parte, brota novamente o escárnio. Defende-se a impunidade de um criminoso cruel e ainda jovem com a mesma energia com que se advoga o direito do jovem em eleger o presidente e até em escolher o próprio sexo. Por fim, qual será o critério adotado pra reduzir a maioridade penal? A julgar pelo comportamento cada vez mais infantil de nossos "jovens" de 30 anos, a maioridade penal deveria ser ampliada, em vez de reduzida.
            Será essa é a filosofia cínica que nos move? Será que o deus que rege nosso signo é Saturno, o que devorava os filhos recém-nascidos para que não lhe tomassem o trono?