quarta-feira, 2 de março de 2011

O crime ao lado

Ainda outro dia, apoiado na experiência de ex-repórter policial e até hoje leitor de reportagens do gênero, eu explicava a alguns amigos que a morte do estudante da Fundação Getúlio Vargas, semana passada, só podia ter alguma explicação subterrânea - dívida de jogo ou drogas, quem sabe... "Nos dias de hoje, matar alguém por causa de mulher...", eu falava. Na hora, fazia sentido. Até aquele instante, dizia-se que os estudantes haviam se envolvido num bate-boca por causa de mulher havia cerca de um mês. Ninguém planeja tão longamente um crime desses - bom, pelo menos nisso eu acertei: o crime foi cometido por um rapaz que se sentiu ofendido pelos estudantes, que teriam mexido com sua namorada. Em uma hora, um deles estaria morto e o outro, quase.
Errar o palpite me fez sentir um dinossauro, sobrevivente dos tempos em que ninguém matava outra pessoa por causa de um olhar enviesado pra bunda da namorada - se é que houve isso (a moça disse na polícia que não ouviu ninguém mexer com ela). Matar por um "dá cá aquela palha", como se lê nos romances antigos... A vida humana virou desenho animado, um filme-catástrofe sem consequências - posso matar o cara, porque no filme que vem ele faz o mocinho.
A ironia cruel é que o assassino só foi preso porque uma das balas disparadas por ele e seu irmão atingiram seu pé. Ao sair mancando do boteco, conforme se vê no filme da câmara de segurança, ele deu a pista pra polícia. É bem capaz da defesa alegar que o destempero emocional era tamanho que o atirador errou até o alvo - embora uma vítima esteja morta e a outra, sem um rim, ainda hospitalizada. Não há justificativa para tamanha violência e só mesmo o choque entre mundos tão opostos como o dos estudantes e o dos atiradores lança alguma luz estrobo sobre o fato.
Sou vizinho do boteco onde ocorreu o crime. Não há 50 metros entre o portão do meu prédio e o bar. Naquela noite mesmo, eu voltava para casa e encontrei uma amiga tomando cerveja exatamente na mesa que aparece no tal video. Fiquei ali uns 5 minutos, de pé, trocando notícias. Devo até ter visto a mesa dos estudantes, porque tenho mania de lançar aquele olhar periscópico pros lugares. Se vi, não registrei. Fui pra casa e, uma hora depois, um dos meninos estaria morto.
Naquele instante em que eu estava ouvindo as histórias da Cidinha, o futuro atirador e sua namorada deviam estar ali também. Não houve briga, não houve bate-boca. Em vez de resolver a coisa à moda antiga, de chamar o don juan lá fora, o rapaz magrinho preferiu levar a namorada em casa e convocar o irmão, edificante figura que chegou com uma pistola do Exército e um revólver. Montaram numa moto e rumaram para o campo de batalha, certos do anonimato, protegidos por dois capacetes de motociclista que faziam deles uma cópia da biônica formiga atômica. Duas formigas atômicas no papel de Exterminadores do Futuro.
Teriam mesmo entrado pra história do crime sem solução, caso um deles não tivesse atirado no próprio pé. Levar para um hospital da zona leste, pra disfarçar, não adiantou. O ferimento a bala chamou a atenção da polícia, que encontrou armas suficientes pra justificar uma prisão preventiva. Sem querer, solucionava-se um crime.
O trágico disso tudo (além da morte) é que certos crimes mandam telegrama. O irmão fornecedor de armas já havia sido preso antes. Em outro caso tristemente recente e famoso, o suspeito de estuprar e matar uma vizinha também havia sido preso e era considerado uma figura perigosa. Estava solto. Hoje, a Justiça condenou o assassino do rapaz na Livraria Cultura a um ano de internação psiquiátrica, um ano - mesmo com avaliações nada otimistas de seu estado mental e sua periculosidade. A juíza que assinou a sentença certamente não frequenta, nem tem parentes ou amigos que frequentam, ambientes perigosos como uma livraria na Avenida Paulista.