segunda-feira, 23 de abril de 2012

Thiago Klimeck

Thiago Klimeck (à esq.), que morreu como Judas em Itararé


De vez em quando lembro de uma resposta que o ator-diretor Hugo Possolo deu quando o "acusaram" de ser vaidoso. "Eu sou artista, tenho que ser vaidoso", disse ele. "Só a vaidade explica porque a gente fica em cima do palco". Não sei se era um chiste ou jogo de palavras, mas que eu concordo com o Hugo, concordo. A vaidade impulsiona os atores. Em alguns casos, é o único impulso, porque vaidade e talento não são sinônimos.

Voltei a lembrar da frase do Possolo, ao acompanhar a agonia do jovem ator Thiago Klimeck. Thiago quem? Thiago Klimeck morreu aos 27 anos, depois de se enforcar acidentalmente numa encenação da Paixão de Cristo, no interior de São Paulo. Até o dia 6 de abril, poucos tinham ouvido falar no talento dramático dele. Ontem, Thiago Klimeck foi assunto até do Fantástico.

Como milhares de outros estudantes de teatro e atores já formados, Thiago muito provavelmente era vaidoso e sonhava ser conhecido. Ninguém sobe no palco pra ficar anônimo, ninguém escreve peça ou lança livro pra ser ignorado. A vaidade nos faz querer mais. É humano. É óbvio. Doentio é o que algumas pessoas fazem em nome da vaidade, mas isso já é outro assunto. O tema aqui é Thiago Klimeck.

Infelizmente, para Thiago, a fama veio da forma errada. O Judas Iscariotes que ele fez na praça de Itararé entrou para a história do teatro porque seu intérprete morreu em cena. Morreram o personagem e o ator e até agora as pessoas tentam entender como isso aconteceu.

Nem assim o nome de Thiago Klimeck conseguiu o espaço que merecia. Ele se tornou "o ator que se enforcou encenando a Paixão de Cristo", no genérico. Thiago Klimeck, nome sonoro, bom pra ser anunciado em microfone e em elenco de novela, diluiu-se no noticiário. Virou apenas "o ator". E sobre o rapaz que morava com a família sabe-se pouca coisa. A imprensa de celebridades, que nos informa até a cor da cueca que o fulano usava na lua de mel, deixou pra lá os detalhes do jovem Klimeck - ele morreu, mesmo, de que adiantaria?

Vendo a notícia da morte, percebo que nada soubemos do ator. Será que ele queria fazer novela? Quem sabe, cinema? Talvez tentar uma vaga na trupe de Zé Celso, ser mais um dos atores do Oficina? Pode ser que Thiago sonhasse entrar para o CPT e, talvez, ser um novo Luiz Mello, um novo Lee Thalor... Se as coisas apertassem, ele não se importaria em animar festa infantil fantasiado de Pluto ou Cebolinha... Fazer propaganda ridícula, faturar uns trocados como estátua viva na Paulista, batalhar por um projeto, um patrocínio, uma permuta... Bateria a dúvida da carreira certa? Será que ele desistiria na próxima temporada e começaria a trabalhar na loja de material de construção do tio? Ficaria noivo, casaria, teria filhos e, do teatro, guardaria somente a foto dele como o Judas mais impressionante que Itararé já tinha visto... Bom, essa última parte ele conseguiu...

Ninguém diz se Thiago era bom ator. Dedicado, ele era: passou seis meses ensaiando o truque do enforcamento, uma cena que se repete milhares de vezes em toda encenação da Semana Santa... Será que o Judas que ele representou até o fim merecia mesmo um lugar  na história do teatro? Será que as pessoas ficaram com vontade de xingá-lo quando ele veio dar o famoso beijo traiçoeiro em Jesus Cristo? Quem era Thiago Klimeck, além de ser o ator que se enforcou no meio da Paixão?

Ficaremos no vácuo das informações. Talvez no velório alguém lembre que Thiago sempre chorava quando assistia a Paixão de Cristo. Quando tinha a cena do Judas, então... E o ouvinte sacudirá a cabeça, filosófico. "Parece que tava adivinhando..." Uma outra pessoa, também por ali, vai comentar que alguém insistiu pra ele ser Pôncio Pilatos, mas Thiago teimou, queria porque queria ser o Iscariotes. De novo, a filosofia popular: "Parece que tava adivinhando..."

Thiago alcançou a fama em plena transição da vida para a morte. Caso os defensores da vida após a morte estejam errados, ele morreu sem saber de sua notoriedade. Caso estejam certos, ele certamente vai passar um tempinho revoltado, porque, afinal de contas...


sexta-feira, 23 de março de 2012

Pai heroi, filho divino


Tal qual um folhetim pouco criativo, o fatídico encontro de Wanderson com Thor, na noite de sábado, vem cumprindo todas as etapas de crime ocorrido em republiqueta de bananas. Os personagens são o filho de um dos homens mais ricos do mundo, um ciclista sem posses, um delegado, um pai heroi e uma mãe ausente. Falta a mocinha romântica, mas o moço rico é também bonito, então não será difícil encontrar candidata. Até o momento, já se anuncia que o ciclista tinha bebido e, mesmo assim, conduzia veículo automotor. Promoveram a bicicleta a veículo automotor! E mesmo sem o laudo da perícia técnica pra determinar velocidade, impacto e outros itens que esclareçam como o coração da vítima foi parar dentro do carro, o delegado pressupôs que o ciclista estava no lugar errado. Convenhamos, o delegado acertou: o ciclista estava no caminho do mocinho rico.
Tem me chamado a atenção a ausência da mãe do mocinho. Notória foliã, capaz de pisar no sambódromo com o nome do então marido em uma coleira, fã declarada dos soldados do fogo, atriz (perdoem) bissexta, a Mãe tomou um inexplicável chá de sumiço. Talvez por não ter com a língua pátria uma relação de maior intimidade, a Mãe deixou que o Pai ocupasse a linha de frente da batalha do Rico contra o Exército de Pobres Invejosos que Infestam o País, respondendo pessoalmente a todos os ataques da patuleia no twitter.
E aí começa meu grande espanto com a indignação alheia. A não ser que ocorra uma dessas revoluções astrais, que fazem criança gostar de quiabo e gente de mau gosto ouvir música em baixo volume, o fim do filme é previsto: a culpa será do ciclista e, se bobear, o moço rico entra com ação de injúria a sua honra. Como eu disse, o folhetim carece de criatividade. O que não entendo é a indignação com a reação do Pai Herói.
Pense um minuto antes de me xingar. Imagine que você é dono da sexta fortuna do mundo. É dinheiro a dar com o pau. É bufunfa suficiente pra você colocar o carro importado pra dormir numa das salas de sua casa - não na garagem ou na vaga que sobrou na reunião de condomínio. Provando que muito dinheiro nem sempre rima com bom gosto, o sujeito botou o carro dentro da sala. E se você já desceu em seis pra praia, dormindo todos apertados dentro do fusquinha, vai morrer de inveja do carro, claro.
O fato é que, sentado no topo de uma montanha de dinheiro, você é informado que seu filho atropelou e matou um rapaz com um desses sobrenomes comuns, que todo mundo tem... Imagine que você tem dinheiro, dois filhos e mora num país onde a polícia não ficou famosa pela resistência à corrupção. Oras, vamos somar: um rico, um pobre, uma polícia passível de silenciar quando interessa... Você hesitaria em proteger seu filho amado? Não suba no salto do moralismo, tentemos ficar no campo do real. Quantas vezes você já torceu a cara pra vizinha que falou mal da voz do seu filho na festinha infantil do prédio?
O Pai Rico não é o único. Recentemente, tivemos a mãe que catou o filho na praia e fugiu com ele, serra acima, depois que o menino foi brincar de jet ski e matou uma menininha que nunca tinha ido à praia... A princípio, eu fiquei chocado com essa mãe. Depois, pensei melhor e fiquei em dúvida: o que eu faria no lugar dela?
De fora, é fácil apoiar-se no senso comum e na noção de Ética que deveria nos nortear em todos os momentos da vida. Dentro do furacão, é complicado. É claro que contra isso existem as leis. E se a Mãe do Menino do Jet Ski for processada por obstrução de justiça, o que devemos dizer ao Pai Heroi Muito Rico? Ele tem todo o direito de proteger seu filhote e, já que pode, contratar um ex-ministro da Justiça pra assumir a defesa do caso. Quem não deveria se deixar levar pelo canto da sereia milionária é a Lei (e seus representantes).
Em algum momento, uma luz deveria baixar nesses personagens, claro, aquela luz que faz todo mundo se casar com todo mundo e perdoar todo mundo e viver feliz pra sempre... Luz de fim de novela. Esse raio do bem traria consciência a esses pais e mães de atitudes heroicas, mesmo que imorais, e eles se envergonhariam de ensinar a seus filhos que uma boa maneira de se viver é fugir da responsabilidade, virar as costas e correr pra caverna mais próxima.
Até nisso a luta de classes revela sua face irônica: quem tenta fugir e virar as costas é a já muito perseguida classe média, aquela que tenta ascender ao primeiro andar, enquanto o seu piso intermediário está sendo invadido pelos zé-manés da periferia... Os muito ricos - foi o caso desse rapaz da nossa história, o filho do pai heroi e da mãe ausente - dão-se ao luxo de não fugir. Dizem que já por duas vezes o rapaz atropelou um ciclista e que, em ambas, não deu no pé. Levou a vítima ao hospital, no primeiro caso. Parou no posto policial, no segundo.
Para eu e você, que rebolamos pra acertar as continhas no fim de cada mês, essa atitude é chamada de pagar o pato, assumir o risco ou se submeter à lei. No caso do nosso mocinho muito rico, posso estar enganado, mas é apenas a certeza que nada de muito especial vai acontecer com ele. Fez merda, filho? Vai lá, socorre o infeliz, avisa a polícia e vai pra casa, deixa que papai dá um jeito.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

O Artista entre nós


Em meados dos anos 80, quando a Folha instalou os primeiros computadores na redação, lembro de ter olhado aqueles trambolhos com desdém. "Isso não vai pegar", eu disse. Ainda bem que ninguém tomou nota - se bem que eu não errei de todo. Os computadores eram umas caixas enormes, com tela escura e letrinhas irritantemente cor de laranja ou verde - e tinham o péssimo hábito de sempre apagar tudo quando você estava nas três últimas linhas e, obviamente, não tinha salvado nada. Já no fim da década de 80, quando a Veja informatizou a redação, a empresa teve o cuidado de deixar uma psicóloga por perto - juro. Como as pessoas não arrancavam mais a lauda ao perceber um erro grave, não se extravasava a agressividade. É incrível pensar que já houve quem se preocupasse com isso nas empresas. Mas por que estou reconstituindo esse Jurassik Park da imprensa paulista? Por causa do filme "O Artista".

Sinceramente, não acho que o filme de Michel Hazanavicius mereça tanto oba-oba. Dez indicações ao Oscar, não sei quantos Bafta, não sei mais que prêmio em Cannes... Ufa... O filme é bacana, sim, mas "Tudo pelo poder", "A Separação" e "Triâgulo Amoroso" ainda foram os melhores que vi neste começo de ano. Ao contar a história de George Valentin, popstar do cinema mudo, chocado diante do cinema falado que colocou sua carreira em risco, "O Artista" acerta mais no que não mostra do que no que aparece na tela. Temperado de citações e homenagens - a começar por "Cantando na Chuva", que contou a mesma história, mas com música -, "O Artista" fala de nós. De cada um de nós, colocado diante do novo. Eis aí a pedra de toque do filme.

Assim como eu fui um péssimo profeta, acho que muitos de nós - pra não ser exagerado e dizer todo mundo - tremem diante do novo. Abalam-se quando observam o tempo que passa. Assustam-se quando vêem surgir no portão a geração que vai sucedê-los. Menosprezar ou minimizar ("miniminizar", como diria o diretor de um grande jornal no qual trabalhei muitos anos) o futuro imediato é uma defesa automática de nossos sentidos. Alguns aferram-se a ela, à defesa, e tal qual o protagonista do filme acabam por afundar em seus orgulhos. Há os que aceitam e se adaptam, correndo o risco de incinerar o próprio passado. O ideal seria a aceitação com barreiras...

"O Artista" me pareceu um filme sobre a negação - tanto que a personagem feminina, que é a portadora da novidade, acaba se tornando mera coadjuvante na trama. Não é ela que interessa ao roteirista e diretor. Ela está pronta para o novo, ela usufrui e saboreia o sucesso. Melhor ainda, ela descobre a... Veja o filme, se quiser saber o resto. O que importa aqui é que, ao nos fazer seguir a derrocada de George Valentin, "O Artista" provoca nossa identificação com o conservador, o medroso, o despreparado - não aceitar que o tempo passa e que, como na música, o novo sempre vem, é estar despreparado pra vida.

Posso até não concordar com a chuva de prêmios que "O Artista" colheu e ainda vai colher mundo afora. Mas tenho de reconhecer que não é sempre que um filme nos faz refletir sobre a própria vida. Ponto pra ele.








quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

30 anos e 2 dias


Se é verdade que todo homem é um universo particular, no planeta Mário Viana a cantora Elis Regina ganhou dois dias de sobrevida. Em janeiro de 1982, eu acabava de chegar a Paris no mais perfeito estilo mochileiro: dinheiro não havia, o francês falado era xexelento e o jeito era se virar no subemprego. Fomos morar, Wanderley e eu, no quarto de um amigo pernambucano, no Hotel du Roussillon, Place d`Italie. Era uma verdadeira pensão - por onde haviam passado Alceu Valença, Florestan Fernandes Jr., Geneton Moraes, Ciro Cozzolino e muitos outros -, sem banheiro privativo, nem TV. Telefone, um só, na portaria - para recados.
No dia 21 de janeiro, consegui meu primeiro trabalho - pintar o apartamento de um colombiano que acabara de terminar o casamento com uma brasileira. Munido de um dicionário de bolso, eu li as instruções para aprender a abrir a lata de tinta... Por aí, pode-se imaginar o resultado da pintura: a conterrânea abandonada adorou, o colombiano reclamou que eu tinha deixado o carpete parecendo uma onça (eu li que a tinta era lavável e nem me preocupei em cobrir o chão...). "Vou te pagar só para não ter de ver nunca mais na vida", resmungou o colombiano. Deus ouviu suas preces.
Na hora do almoço, enfrentei a neve e fui encontrar o Wanderley num restaurante universitário próximo à Rue du Moufftard, na parte mais velha de Paris. Eu estava assustado com a primeira manhã de trabalho e ele, meio atônito. "Me falaram uma coisa, eu acho que é mentira", ele começou - havia um toque de carinho no cuidado pra dar a notícia a um fã. "Disseram que a Elis Regina morreu". Eu levei um susto, peguei minha bandeja, sentei. "Mentira". E começamos a almoçar. Eu parava. "Só se foi acidente de carro. Foi acidente?" Ele não sabia, ninguém sabia. Voltamos juntos pro apartamento do colombiano. Entre um e outro golpe de tinta na parede - não vejo outro modo de definir nosso trabalho - descobrimos o telefone do consulado brasileiro e eu liguei. Dois dias haviam se passado desde a morte e o rapaz que me atendeu só sabia confirmar a notícia. A causa, nada.
Em uma semana, começaram a chegar as cartas. No Roussillon, a brasileirada trocava recortes de jornais, revistas, tinha um que ia à loja da Varig roubar jornal antigo, um tinha o Globo, o outro a Folha... Ninguém podia gastar dinheiro em um telefonema ao Brasil e saber o que estava acontecendo... Eram outros tempos, definitivamente. Hoje, saberíamos da morte de Elis antes mesmo do corpo chegar ao IML. Teríamos todos os detalhes, os mais sórdidos, os mais chorosos. Não que isso aliviasse a dor de perder um artista querido. Claro que não. Mas era como um período pra curtir a dor, deixá-la encontrar espaço.
A rapidez das notícias acelerou também a velocidade do esquecimento. Recebemos tudo em grande quantidade e a comoção histérica vem no embalo. Louvações e linchamentos nivelam-se nas redes sociais, com a mesma intensidade. Paixões e ódios também são abandonados no acostamento, sem maiores explicações. E sem que esperemos, chega um artista e ocupa algum território ainda inexplorado de nosso sentimento. As gerações seguintes custam a compreender por que seus antecessores choraram tanto esse ou aquele. O enterro de Carmem Miranda parou o Rio? Chico Alves deixou o Brasil em lágrimas? Por que tantos choraram e choram até hoje por Elis Regina? Da mesma maneira que os seguintes lamentariam Renato Russo, Raul Seixas e Cássia Eller. Da mesma maneira que, talvez, alguém chore no futuro a morte súbita de Amy Winehouse.
Há artistas que completam lacunas. Em suas ausências, nos fazem refletir e crescer. Avançar, um tiquinho que seja. Devolvem-nos a condição de homens perplexos diante do incompreensível.