terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Um brinde a 2010




Com exceção dos lojistas da 25 de Março, dos velhinhos que fazem bico de papai noel e dos cantores de coral, acho que pouca gente acredita mesmo que o Natal seja uma noite feliz. A melancolia dá o tom e mesmo quem tem uma graninha acaba se contagiando - deve ser por isso que alguém sempre chora na ceia de Natal. De onde será que vem isso? Ninguém chora no meio do jantar de Páscoa, quando se fala da crucificação de Jesus - mas no nascimento do coitado, é um chororô só.


O bom do Natal é que, logo depois dele, tem o Ano Novo. O Réveillon. As boas entradas. A julgar pelo movimento das pessoas e pelo clima das ruas, eu não sou o único a curtir essa semana que antecede a queima de fogos em Copacabana ou o show da virada na Paulista... ou os sete pulinhos no mar da Praia Grande, da Boa Viagem, de Canoa Quebrada, Ponta Negra ou Mole... Em qualquer trecho do litoral brasileiro vai ter alguém vestido de branco, olhando o mar como se deve viesse a notícia salvadora: "Sim, o ano novo vai ser mesmo tudo isso que você quer dele".

Nos dias que separam o Natal do Reveillon, os otimistas e os preguiçosos trocam olhares emocionados. Os primeiros acham que o ano novo, sim, será absurdamente feliz: pelo menos, é o que desejam uns aos outros. Os preguiçosos não vêem a hora do ano velho acabar, coitado, justo ele que tinha sido recebido com tanta euforia uns meses atrás. Mas o Ano em Curso é que nem amigo hospedado há muito tempo em casa: no começo, é uma diversão só, mas passou o alalaô, vem a rotina e os defeitos começam a aparecer. Bom mesmo é ano novo.

A gente deseja feliz ano novo - eu, pelo menos - com uma tremenda sinceridade. Você não deseja felicidades pra alguém que te encha o saco, te torture a existência, te faça mal - pensando bem, se essa pessoa é assim tão vudu, que diabos você faz ao redor dela? Se fuçar bem, vai descobrir que o problema é você e não ela, que apenas segue sua natureza de coisa-ruim. O legal de desejar feliz ano novo é que nem o mais azedo dos infelizes vai te mandar à merda. Você pode cometer gafes, como desejar feliz natal pra judeu, mas ano novo... gente, ano novo é ano novo.
É provável que a crença num novo ano feliz venha dos tempos em que a vida dos homens era marcada pelos ciclos rurais: ano novo seria o equivalente à colheita. Na Europa, o Ano Novo antecede a primavera, estação do renascimento, da volta do verde, das cores... No Brasil, nem tanto, mas como já copiamos tantas coisas dos gringos, mais essa não vai fazer diferença. Réveillon - que tem a ver com o francês 'reveiller', despertar, acordar - é isso: acordar limpinho e bacana pro novo tempo que vem aí. Tempo de colher, de criar, de alimentar. Tempo de ver o sol, a chuva e esquecer o frio que estava até agora nos calcanhares.
Simbolicamente, ano novo é tudo isso e mais um pouco. A gente quer deixar os problemas pra trás, como se o último banho do ano nos purificasse e nos jogasse, semivirgens, nos braços do ano recém-chegado. Eu sempre penso isso quando tomo o banho-antes-da-festa. "Xô, tranqueira" é minha palavra de ordem, meu lema, meu refrão. Nem sempre dá certo - e a prova é que as tranqueiras aparecem loguinho (dependendo da festa em que você foi, aparecem na noite do réveillon mesmo...). Mas tudo bem, ano que vem tem mais. Ainda bem.
Feliz Ano Novo. Ou melhor, como me mandaram num lindo cartão virtual outro dia: FELIZ OLHAR NOVO. Tem alguma coisa mais linda? Não é o Ano. É o Olhar. É você que será novo a partir de... de agora. Vamos combinar assim: o réveillon já começou!




quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Luzes da cidade


Muitas pessoas que lêem esse blog - sim, no plural! - têm urticária quando passam pela Avenida Paulista em dezembro. Bancos e prédios investem pesado em luzes, neve artificial, renas de pelúcia e pacotes de presente exagerados... É Natal na Paulista e isso já virou programa de família aos domingos. No último, eram quase onze da noite, uma multidão se espalhava pelas calçadas da avenida e o trânsito estava caótico - as pessoas simplesmente param o carro onde quer que estejam e fazem fotos com seus celulares ultra-mega-super modernos, comprados com o décimo terceiro.

É um caos? É. Aqueles enfeites são bregas? Demais da conta. Só mesmo uma cabeça formada pra considerar o Hemisfério Norte como modelo a ser copiado é que vai achar natural um velhote coberto de peles, sob neve, iluminado por um sol de quase 35 graus. Nesse ponto, continuamos iguais aos ingleses que vieram para o Brasil com a corte de d. João VI, em 1808, e abriram no Rio de Janeiro diversas lojas importadoras de lareiras e esquis. A suadeira tropical levou muito comerciante à merecida falência.

Pois eu acho lindo - apesar de todos os defeitos - aquele festival de sinos e ho-ho-hos. Tudo bem, não passo de carro por ali, nem paro a todo instante pra ver o anãozinho tocar o sino (do jeito que ele está pendurado, mais parece um baixinho se enforcando...), mas acho um tremendo barato aquelas famílias colocarem suas melhores roupas, tomarem um ou dois ou três ônibus e descerem do metrô na Paulista. São turistas daqui mesmo. Gente que vem do caixa-prego. Pessoas que vivem a galáxias de distância da Paulista, dos shoppings e de todos os ícones que nossa "paulistanice" elegeu como links da modernidade (palavras em inglês são essenciais pra ser moderno). Não é a breguice que incomoda, mas a invasão dos 'de fora'.

Aqueles meninos que caminham excitados pela avenida, os olhos fascinados com os prédios tão altos e tão coloridos, lembram o meu encanto pela "cidade". Era assim: um dia, meu pai chegava do trabalho e avisava: "Hoje nós vamos na cidade". Morávamos num bairro da zona norte e tínhamos de tomar um ônibus até o centro - devia ser uma viagenzinha de uma hora, algo assim, naquela época crianças não tinham nem precisavam de relógio.

Mas era sempre época de Natal e pros meus olhos acostumados às ruas do bairro os prédios e ruas enfeitados eram um mundo mágico, uma caverna de ali babá, com seus ouros e brilhos noturnos. Íamos ao Mappin, ganhávamos um presente, também uma roupa e, no fim, dividíamos um misto quente na Leiteria Americana, ao lado do Mappin. Com guaraná champanhe! Não há Fasano que chegue aos pés desse misto quente - e não estou desmerecendo o restaurante mil estrelas dos Jardins, longe disso.

Pode ser bobeira minha. Mas as famílias que hoje circulam pela Paulista atraídas por um enfeite luminoso brega e efêmero são desdobramentos, cópias, continuações da mesma família que éramos nos anos 60. Mudou a economia, hoje os meninos correm pela avenida com o celular do pai - comprado em prestações, muitas vezes - pra fazer uma foto que prove sua passagem pelo mundo mágico. É essa magia que me interessa, é esse fascínio que me comove. É bom demais prestar atenção no olhar dessas crianças, que não vão passar férias na Disney nem em acampamentos de verão, mas também não vão cair no lodaçal do crack e do crime. São crianças que crescerão, trabalharão e terão seus filhos, a quem levarão no Natal em algum lugar bem iluminado e mágico.

Há comércio demais, marketing demais, bom gosto de menos. O trânsito piora, parece uma invasão bárbara. Danem-se. Pelo menos durante um mês as luzes natalinas compensam a péssima iluiminação pública e o risco da ameaça de assalto nas esquinas afasta-se, expulso pelos cascos das renas de pelúcia. Por alguns instantes, haverá um reino mágico no olhar da criançada. Se isso não valer a pena, apaguem a luz, fechem a porteira e vamos todos viver no fundo da mata escura.


p.s. Momento deduragem carinhosa. Uma de nossas frequentadoras assíduas, com cartão de milhagem e tudo, faz aniversário neste dia 24. Beijos, Ana.


quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

O Príncipe e o Mendigo


Se a vida fosse uma novela, dessas que a gente assiste (ou, no meu caso, escreve), a coisa já estaria encaminhada. No fim da trama, os maus seriam punidos - alguns até com morte - e os bons se encontrariam, todos se entenderiam e dariam início a uma nova e feliz existência. Infelizmente, a vida teima em não seguir um roteiro. Nós, da grande platéia, só sabemos o que os jornais noticiam. De um lado, um menino norte-americano, filho de mãe brasileira, virou o lencinho no cabo de guerra que seus avós e seu pai travam diante do mundo todo, literalmente. Do outro lado, enfiado numa cama de hospital no interior da Bahia, está o menino cujo padrasto vingou-se da mulher, enfiando 42 agulhas no corpo do garoto de 2 anos.

Um, no Rio de Janeiro, vive cercado de tanto, mas tanto amor, que não tem quem pense nele. O outro, em Ibotirama, vive com a mãe, os cinco irmãos e o padrasto - e não teve ninguém que prestasse atenção nas agressões que seu corpo sofreu ao longo de dois meses. Numa novela, dessas que disputam a audiência ponto a ponto, os dois meninos seriam provavelmente irmãos separados no nascimento. Na vida real - se é que podemos chamar isso tudo de vida - eles nunca vão nem saber da existência um do outro. O mais pobre, talvez, nem sobreviva às agulhas.

O menino rico - deve ser rica a família, para mover com tanta gana a roda implacável da Justiça brasileira - virou alvo de uma disputa insana: os avós querem mais poder que o pai. Não sei se o pai é bacana ou pilantra, mas se fosse pilantra mesmo não estaria brigando tanto pelo moleque. Os avós, com certeza, vêem no menino uma extensão da filha morta. É justo que queiram ficar perto do neto. Mas será que a ponto de separá-lo do pai, apenas por que a filha tinha terminado o casamento? É uma discussão cabeluda, mas o que me chama mais atenção é a sensação de que, em momento algum, as duas partes se sentaram numa mesa para conversar.

Devem ter sentado, é claro, mas com posições já definidas. Delas, nenhum dos dois lados abriu mão. E o resultado é o interminável bate-boca jurídico, envolvendo até mesmo a super-poderosa Hillary Clinton. Ok, exagerei, a simplesmente poderosa Hillary. O pai tem a aura de norte-americano, o que dá a ele certo poder mítico. Os avós brasileiros são de uma família influente e bastante enfronhada nos meios do Judiciário. E nós sabemos o quanto isso pesa na hora de um juiz dar uma sentença.

Do menino baiano, o que sabemos é que a mãe só percebeu que algo estava errado quando o filho começou a vomitar e sentir dores fortes no estômago. Um raio X revelou a brutalidade. Uma criança de 2 anos, normalmente, já é pequena. Uma criança pobre, do interior do nordeste, é menor ainda. Mais frágil ainda. O que passa na cabeça de uma pessoa que, deliberadamente, submete um ser desses a tamanha tortura? Cachaça demais? Não tentem colocar a culpa na coitada da caninha.
Do baianinho quem vai cuidar, além dos médicos, é um delegado de província e um promotor, tomara Deus, bem intencionado. Não haverá roda implacável da Justiça movendo-se a favor do menino. No lugar de uma Hillary Clinton, talvez uma freirinha ou uma militante de ONG, mais ninguém. As mulheres poderosas de nossa terra - a primeira-dama, as ministras, as apresentadoras de TV que derramam lágrimas pelas criancinhas do show da TV - estão ocupadas procurando o marido, cavando uma vaguinha na presidência ou posando pra Caras.
Eu queria ser roteirista da novela dos dois meninos, só pra poder arrumar um fim bem meloso e feliz pros dois. Só pra escrever a cena em que os dois se encontrariam na rua, talvez diante de uma vitrine de doces ou, quem sabe, num play ground de uma praça abandonada. Eles se olhariam, trocariam um brinquedo, falariam de suas vidas - em sua linguagem quebrada de criança - e superariam todas as diferenças. Nos anos 60, Kadu Moliterno trocou de lugar consigo mesmo e o que era príncipe virou mendigo e vice-versa. Na minha novela, não. Nenhum deles seria príncipe, mas nenhum viraria mendigo. Sairiam pela rua, de repente fugindo com um circo, e seriam, talvez não felizes, mas crianças.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Festival de besteiras



Desta vez, não teve pra ninguém. Gilberto, o Alcaide, saiu na disparada e bateu o ranking de besteiras ditas por um político durante uma tragédia. (Ok, Lula extrapolou com a merda no discurso, mas não havia uma tragédia em andamento). Gilberto alistou-se, assim, no clube que reúne gente mais tarimbada na política, como o falecido Franco Montoro e a resistente Marta Suplicy.





Pra quem esteve em Marte na semana passada, eu explico: de segunda pra terça-feira, o céu desabou sobre São Paulo. Choveu gato, cachorro, periquito, cacatua, rinoceronte, iguana e ferret - em suma, choveu até dizer chega. Dois dias depois, a TV mostrava alguns bairros que teimavam em permanecer alagados.





E o que disse Gilberto a respeito desse dia tão caótico, mas tão, que a cidade registrou índice zero de congestionamento - simplesmente porque as pessoas não conseguiam se locomover a partir de certos pontos. "Está tudo sob controle", disse o Alcaide, revelando uma face budista desconhecida até de quem votou nele por convicção. Em seguida, Gilberto contestou os pessimistas e afirmou que a coisa não estava tão feia. O grande debate que surgiu a partir daí foi tentar entender o que o alcaide da maior cidade do país define por "caos".



Falar cretinices é um esporte muito praticado entre os políticos. Revela, além da pobreza de raciocínio, um tremendo desprezo pelo bem estar público. Exagero meu? Não. Quando Franco Montoro percorreu as áreas da cidade cobertas até o teto por água de enchente, em vez de lamentar a desgraça dos atingidos, suspirou: "Lembra Veneza". Foi muito gratificante para as vítimas da enchente saber que sua vida chegara, enfim, a níveis europeus.



Também Marta Suplicy perdeu uma luminosa oportunidade de se fingir de surda, quando questionada sobre o caos aéreo que transformava qualquer vôo numa gincana de Rollerball. À época ministra do Turismo, Marta disse que os prejudicados pelos atrasos monumentais deviam "relaxar e gozar". Trata-se de uma frasezinha que todo mundo usa de vez em quando. Na boca de uma ministra, chamada às falas sobre um problema seríssimo de sua pasta, a frase levava o maior jeito de chacota.

Recentemente, ao anunciar o plano de obras que interdita total ou parcialmente cinco pontes sobre o Rio Tietê, o governador e o prefeito estavam tranquilos: as obras não prejudicariam o trânsito de São Paulo. Limitados pela realidade concreta dos fatos, alguns repórteres insistiram e, ao Estadão, o governador deu a solução mágica: "Basta o cidadão negociar novos horários de trabalho com suas chefias". Deve fazer muito tempo que o governador não pega no pesado de verdade, das 8 às 18 com uma hora de almoço. Desconfio até que nunca tenha passado pela experiência de carregar uma marmita.

Não ter sofrido não significa que o sujeito seja um monstro insensível. Ele pode ter tido berço de ouro e compreender o quanto é ruim, por exemplo, usar o transporte público nessa cidade. Qualquer guaxinim que tenha frequentado a escola - mesmo que levado de carro particular por pápi e mami - conseguiria entender que os novos ônibus de São Paulo, cheios de degraus, são um convite ao braço quebrado. Mas, o que faz a prefeitura? Aceita esse veículo e obriga a população a fazer verdadeiros malabarismos diariamente nas ruas da cidade.

Da mesma maneira, na gestão de Erundina (de quem gosto muito), um elogiado programador visual, querido em tudo quanto é bar bacana da Vila Madalena, determinou que todos os ônibus de São Paulo tivessem as mesmas cores. O Iluminado esqueceu que uma grande maioria da população tem pouquíssima intimidade com a língua escrita - maneira tucana de dizer que são analfabetos - e o que se via nos pontos era um amontoado de gente desesperada atrás de seu ônibus, já que não conseguia ler os letreiros...

Estou fugindo do tema? Acho que não. Tudo gira em torno do mesmo ponto: o solene desprezo pelo bem coletivo, pelo interesse da população. É como se prefeitos, governadores, ministros e os que os assessoram trabalhassem não pela cidade em geral - mas contra seus não-eleitores. Eles não governam: vingam-se dos votos não recebidos. O pior é que, na hora de votar, a marujada vai lá e reelege essas figuras. Francamente, nem sei porque eu esquento a moringa.

p.s. Divertidíssimo imaginar a cara de Gilberto, o Alcaide, ao ver que os vereadores rejeitaram seu pedido de aumento salarial. Atire a primeira pedra quem nunca pediu aumento e o chefe disse 'não'...

p.s.2 Como vocês devem ter desconfiado, se chegaram até aqui, eu não estou no time dos colegas artistas que derramam-se em elogios às administrações, presentes e passadas, só porque visitaram um dos nossos no hospital. Luz na praça, que é bom... policiamento, que é fundamental... necas...

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Complexo de Orfeu


Num hipotético dicionário do comportamento urbano, o verbete que me define estaria entre o A de 'ajuizado' e o C de 'cagão'. Jamais chegaria ao R de 'resistente a assaltos'. Mas quem teve algum contato com a obra e a figura do dramaturgo Mário Bortolotto sabe muito bem que ele jamais se intimidaria por um assaltante noiado. Especialmente, se esse noiado estivesse agredindo alguém indefeso. Bortolotto é do tipo que parte pra porrada, no teatro e na vida.

O assalto na madrugada de sábado, na Praça Roosevelt, que deixou Mário Bortolotto ferido por quatro disparos - e mais outros dois feridos com menor gravidade-, acabou expondo também a fragilidade de nossa classe artística. No ato público realizado na noite de domingo, lotando o bar do Espaço dos Parlapatões e a calçada em frente, muita gente ainda carregava uma expressão de choque: "Atingiram um dos nossos! Isso não pode continuar!"

É como se, no fundo, nos acreditássemos protegidos por um escudo invisível. Não. Nem nós, nem ninguém. A rigor, os tiros que feriram Bortolotto são os mesmos que atingem dezenas de pessoas diariamente em São Paulo. A falta de segurança que agora aperreia os frequentadores da Praça Roosevelt é a mesma que incomoda quem caminha tarde da noite pela Avenida Paulista ou desce do ônibus lotado em alguma rua deserta do Jardim Ângela.

Bortolotto foi ferido não por ser artista talentoso, mas por ser um cidadão - dos que pagam imposto e conta em dia - colocado em mais uma cena de violência urbana . A ingenuidade da classe artística revela-se na crença de que vamos trocar o pipoco das balas pelos aplausos a nossas performances, usando apenas o sorriso cativante e a riqueza de rimas. Fazemos nosso trabalho, atraímos nosso público, cientes de nosso papel social como artistas e, por isso, acreditamos que as feras vão se acalmar.

Somos Orfeus gagos e de lira quebrada. Infelizmente, nosso canto, sozinho, tem pouco alcance. Mas não é por isso que vamos deixar de cantar e remendar as cordas da lira, pra tentar seduzir alguma fera perdida. Não podemos esquecer que sempre dependemos "da bondade de estranhos", como já disse Blanche Dubois em "Um bonde chamado desejo".
Sem o poder público que forneça segurança, ilumine as ruas e termine o que começou (a demolição dos escombros da praça, por exemplo), pouco poderemos avançar. Mesmo que não sejamos seres dotados de imunidade especial, apesar de nosso talento, temos algo que a grande maioria da população nem sonha em ter: acesso aos meios de comunicação. Em alguns casos, temos acesso direto a quem manda na polícia militar e na guarda civil metropolitana.
Não devemos reduzir a reivindicação por mais segurança a uma campanha destinada a proteger uma casta de divinos. É a cidade que precisa de segurança, é o cidadão que precisa de proteção. Ou seja, nós todos.

O ato público ontem, capitaneado por um emocionado Hugo Possolo, teve uma santa missão: dissemos a quem quisesse ouvir que não vamos recuar, não vamos abaixar as portas e tomar nossas cervejas em silêncio, aplaudindo com estalar de dedos pra não atrair a bandidagem. Dizer"não" ao medo é fundamental pra que nossa vida e nossa arte tenham algum sentido.

No melhor dos mundos, essa onda de coragem avançaria e tomaria conta da cidade - passaria pelos bairros centrais, avançaria pelos arredores da cidade e chegaria aos rincões distantes, sempre conseguindo afastar o perigo e a maldade. Não custa sonhar e é disso que vivemos, nós que escrevemos, atuamos e caímos no meio do picadeiro pra divertir a galera. Vivemos do sonho de construir um mundo melhor.


quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Gastronomia & Gincana


Desde o século 16, quando François Rabelais animou o Renascimento com as aventuras de Gargantua e Pantagruel, colocar alimentação farta, sexo e prazer no mesmo balaio tornou-se comum. O cinema não deixou passar - e quantos jantares fantásticos são comparados hoje em dia à "Festa de Babette", numa lembrança do delicioso filme de 1987, com Stephane Audran dirigida por Gabriel Axel... Quem não saiu do cinema com água na boca, depois de ver aqueles áridos escandinavos virando os olhinhos de prazer carnal a cada prato servido pela imigrante francesa?

A ligação entre sexo, gastronomia e prazer sempre foi tão intrínseca que até hoje soa uma ousadia o roteiro de "A Comilança", dirigido por Marco Ferreri, em 1973. Os anos 70 foram tempos em que ainda havia radicalismo de ideias no cinema europeu. Daí, a força do filme, que mostra um grupo de amigos (Marcelo Mastroianni, Michel Picolli, Ugo Tgnazzi, Phillipe Noiret e Andrea Ferreol, entre eles - um timaço) reunidos numa casa de campo para comer até morrer. Era o que faltava para simbolizar o ciclo da vida: a morte. Sexo, comida, prazer e morte. Mais vida que isso...

De certa maneira, eu esperava que "Julie & Julia" me desse um pouco do prazer que Babette causara, ainda no século 20 - obviamente sem o radicalismo suicida da Comilança. A ideia anima: Julie, uma candidata a escritora, em 2002, cria um blog prometendo preparar no prazo de um ano as 500 e tantas receitas de um livro clássico da culinária nos Estados Unidos, escrito nos anos 50 por Julia Child. O filme começa bem, com Meryl Streep se impondo desde a primeira cena, como a caipirona Julia , deslumbrada com Paris e entediada com a vida de dona de casa sem filhos. A mesma atriz que deu um banho de classe e elegância em "O Diabo veste Prada", agora rouba todas as cenas como a expansiva Julia - e mesmo sem contracenar, rouba as cenas da jovem Julie, vivida por Amy Adams (uma impressionante versão jovem de Cinthia Nixon, a Miranda de "Sex and the City").

Julie é simpática e contemporânea, mas sua trajetória como personagem é entediante. Onde ela arruma tempo para trabalhar longe de casa, fazer compras no mercado, cozinhar um prato difícil por dia e, ainda, tentar dar conta do maridão jovem, bonito, atencioso... Ter um piti porque a gelatina desandou, francamente, é pouco eletrizante pra um filme de duas horas. E o chororô da crise... please...

Apesar dos defeitinhos, "Julie & Julia" é um filme delicioso de ver: o grupo dos anos 50 é o mais divertido, até nas pequenas participações (Jane Lynch, a analista de "Two and half men", faz a irmã de Meryl, ótima). No começo, a gente acha que devia ter levado um estoque de barrinhas de cereal pro cinema, porque aquelas receitas vão atiçar o apetite. Bobagem. Tanto Julie quanto Julia acabam se dedicando com afinco à tarefa de aprender aquelas receitas porque se impuseram um desafio - e não há nada mais americano do que vencer um desafio.
Falta o deliciar-se, o lambuzar-se mesmo. Na hora em que servem as refeições, falta aos comensais aquela expressão de verdadeiro prazer que temos diante de um prato delicioso. Em tempo: os atores dizem que sentem prazer, comem fazendo uhms e ahms, mas o prazer carnal, visceral, o olho brilhando de gula e luxúria, ah, isso não tem, não. O grupo dos anos 50 ainda se entusiasma um pouco mais, talvez porque saboreie as receitas em Paris - mas os contemporâneos vivem em Nova York e dão a impressão de que trocariam aquele pato desossado por um hambúrguer com fritas, sem dor na consciência.

Graças ao roteiro - que tem ótimos momentos - há no filme os ecos de um outro sucesso dos anos 1980, "Nunca te vi, sempre te amei": as protagonistas nunca se encontram e a única cena em que aparecem juntas é a da foto acima. Essa reversão de expectativa pode frustrar alguns, mas não deixa de ser curioso.
A vantagem é que você pode ver o filme na sessão das 10, sem correr o risco de sair do cinema desesperado pra entrar no primeiro restaurante francês... fechado a essa hora da noite. É um filme sobre jantares requintados, que não desperta o apetite. Perfeito pra quem tá de dieta. Agora só falta mesmo aparecer a versão brasileira, com Fernanda Montenegro fazendo a Ofélia e Marília Pêra, a Palmirinha.