segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Complexo de Orfeu


Num hipotético dicionário do comportamento urbano, o verbete que me define estaria entre o A de 'ajuizado' e o C de 'cagão'. Jamais chegaria ao R de 'resistente a assaltos'. Mas quem teve algum contato com a obra e a figura do dramaturgo Mário Bortolotto sabe muito bem que ele jamais se intimidaria por um assaltante noiado. Especialmente, se esse noiado estivesse agredindo alguém indefeso. Bortolotto é do tipo que parte pra porrada, no teatro e na vida.

O assalto na madrugada de sábado, na Praça Roosevelt, que deixou Mário Bortolotto ferido por quatro disparos - e mais outros dois feridos com menor gravidade-, acabou expondo também a fragilidade de nossa classe artística. No ato público realizado na noite de domingo, lotando o bar do Espaço dos Parlapatões e a calçada em frente, muita gente ainda carregava uma expressão de choque: "Atingiram um dos nossos! Isso não pode continuar!"

É como se, no fundo, nos acreditássemos protegidos por um escudo invisível. Não. Nem nós, nem ninguém. A rigor, os tiros que feriram Bortolotto são os mesmos que atingem dezenas de pessoas diariamente em São Paulo. A falta de segurança que agora aperreia os frequentadores da Praça Roosevelt é a mesma que incomoda quem caminha tarde da noite pela Avenida Paulista ou desce do ônibus lotado em alguma rua deserta do Jardim Ângela.

Bortolotto foi ferido não por ser artista talentoso, mas por ser um cidadão - dos que pagam imposto e conta em dia - colocado em mais uma cena de violência urbana . A ingenuidade da classe artística revela-se na crença de que vamos trocar o pipoco das balas pelos aplausos a nossas performances, usando apenas o sorriso cativante e a riqueza de rimas. Fazemos nosso trabalho, atraímos nosso público, cientes de nosso papel social como artistas e, por isso, acreditamos que as feras vão se acalmar.

Somos Orfeus gagos e de lira quebrada. Infelizmente, nosso canto, sozinho, tem pouco alcance. Mas não é por isso que vamos deixar de cantar e remendar as cordas da lira, pra tentar seduzir alguma fera perdida. Não podemos esquecer que sempre dependemos "da bondade de estranhos", como já disse Blanche Dubois em "Um bonde chamado desejo".
Sem o poder público que forneça segurança, ilumine as ruas e termine o que começou (a demolição dos escombros da praça, por exemplo), pouco poderemos avançar. Mesmo que não sejamos seres dotados de imunidade especial, apesar de nosso talento, temos algo que a grande maioria da população nem sonha em ter: acesso aos meios de comunicação. Em alguns casos, temos acesso direto a quem manda na polícia militar e na guarda civil metropolitana.
Não devemos reduzir a reivindicação por mais segurança a uma campanha destinada a proteger uma casta de divinos. É a cidade que precisa de segurança, é o cidadão que precisa de proteção. Ou seja, nós todos.

O ato público ontem, capitaneado por um emocionado Hugo Possolo, teve uma santa missão: dissemos a quem quisesse ouvir que não vamos recuar, não vamos abaixar as portas e tomar nossas cervejas em silêncio, aplaudindo com estalar de dedos pra não atrair a bandidagem. Dizer"não" ao medo é fundamental pra que nossa vida e nossa arte tenham algum sentido.

No melhor dos mundos, essa onda de coragem avançaria e tomaria conta da cidade - passaria pelos bairros centrais, avançaria pelos arredores da cidade e chegaria aos rincões distantes, sempre conseguindo afastar o perigo e a maldade. Não custa sonhar e é disso que vivemos, nós que escrevemos, atuamos e caímos no meio do picadeiro pra divertir a galera. Vivemos do sonho de construir um mundo melhor.


12 comentários:

  1. Mário,
    Lúcido - e muito bem escrito, como sempre.
    abraço,
    Aimar

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  2. Vianinha vc foi direto ao que interessa,a questão não é ser um autor conhecido e respeitado,e sim um atentado contra um cidadão.A violencia urbana a cada dia faz suas vítimas e isso tem que ser visto pelas autoridades a quem compete.Quem sabe agora o projeto de revitalizaçao da praça não sai do papel.

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  3. oi Mario:
    fiquei passada com o que aconteceu ao Bortolotto!
    Não por querer, como vc diz, privilégio para nenhum artista. Mas nenhum ser humano pode levar 3 ou 4 tiros no peito assim... Sem contar os tiros no Carcarah e as coronhadas na minha amiga Guta Ruiz.
    O espaço dos Parlapatões é um lugar de amizade e de arte, de resistência, portanto, contra a bestialidade cotidiana. É um lugar de quem acredita que a arte pode alguma coisa - e pode. Não é invulnerável, infelizmente.
    Mais uma vez vamos abrir a boca pra reclamar do governo municipal incompetente, lerdo, insensível; dos policiais lerdos; e de todo mundo que acha que não tem nada ver com isso.
    A Praça Roosevelt é parte do coração sensível desta cidade, um espaço de arte que não pode ser sitiado pela violência. Muito menos o espetáculo pode parar!
    Vamos em frente, que a batalha não acaba nunca.
    bj

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  4. Concordo, mestre.
    (estava esperando seu parecer sobre o caso aqui no blog)

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  5. Belo texto, Mário. Fiz minha reflexão também: www.leolama.blogspot.com

    Abraço

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  6. De tempos em tempos a gente se sente enjoada com tudo que le, tudo nos parece tão banal, tão superficial, é tudo tão ruim.Então fechamos os jornais e revistas e apertamos o botãozinho do of supondo que nada do que possamos ler possa nos dar aquele sentimento de:"nossa esse cara (ou essa cara) escreveu examente aquilo que estou sentindo ou que gostaria de ter escrito". Foram dois textos que li que me devolveram o sentimento de revolta e a vontade de continuar fazendo "algo" para que as coisas mudem, porque um dia tem que mudar afinal, vida não tem preço, vida precisa ser preservada. Os textos que li foram este seu e o de Janio de Freitas, sobre as crianças soterradas por causa das chuvas.
    Filó

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  7. Aimar, Tetê, Neusinha, gran Cauê... vcs me deixam até tímido...
    Leo Lama, grande surpresa! Vou ler, sim, véio!

    Filó, desse jeito eu vou 'se achar'... ao lado do Janio de Freitas!

    E o Mario B. melhora!

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  8. Mário, pois eu confesso que vivia no mundo da fantasia até o Botolotto ser baleado no bar dos Parlapatões. Pra mim, foi mesmo um choque duplo: o dramaturgo ferido num assalto e um assalto num lugar inatingível. Desde que falei com a amiga Teca - acho que é Jô para você (ela tem várias personalidades!)- comecei a me tocar disso sobre o que seu belo texto discorre: todos somos parte de uma cidade que é linda e selvagem, cheia de gente doce e bacana e violenta e criminosa. São Paulo, como acho que atualmente qualquer grande cidade do mundo - umas menos, outras mais - tem esse viés, fascinante e assustador, de ter de tudo um pouco. Até a madrugada de sábado, pra mim, tinha até mesmo um lugar utópico, juro. Enfim, foi duro sair desse lugar, como é duro sair de qualquer lugar perfeito, mas foi bem bacana também. O mundo ficou mais real e democrático, na minha cabecinha, para o bem e para o mal: os bardos românticos também podem morrer bestamente.

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  9. Mayra, beleza? Teca, é? Ah, ela não perde por esperar... Bota a maior banca como Jô... rs rs...
    Muito legal seu coment, com uma única ressalva: o Bortolotto vai sobreviver. Já tá bem melhor. Ainda bem, né?

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  10. Mário,
    SP tá assim: ou você leva bala ou corre o risco de se afogar. E não existe nenhum culpado, não é mesmo?

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  11. Luiz, a culpa ainda deve ser da Marta. Se bobear, da Erundina. Elas passam as noites enchendo os bueiros de sujeira... e dando ideias lascivas aos assaltantes...

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  12. Mario, desta vez, o cotidiano violento chegou do "nosso" lado da Praça Roosevelt. Porque, do outro lado, é rotina. Revitalizamos só uma calçada, amigo. A calçada do "povo" do teatro. Há mais três lados da Praça no mais absoluto abandono. O entorno continua (ou ficou) violento. Até onde sei, no último ano, houve duas mortes (Por ferimento de bala) na Praça. Como sempre, falou com propriedade, Belo. Grande abraço, Jarbas.

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