sábado, 28 de novembro de 2009
Qual é o pente que te penteia?
Nada é por acaso, a não ser o que nos pega de surpresa. Depois de tanto resvalar no tema do racismo que nos rodeia, acabei na plateia da peça "Ensaio sobre Carolina", que encerra carreira na próxima sexta-feira, dia 4/12, no Teatro Imprensa. Ali, junto aos meus sete companheiros de platéia - tão pouca gente pra um espetáculo apresentado por seis pessoas - tive a nítida noção que estava assistindo a uma das melhores peças do ano.
"Ensaio" é um trabalho de pesquisa teatral feito sobre o livro "Quarto de despejo", um dos maiores sucessos editoriais do Brasil nos anos 60. Sua autora era uma catadora de papel, favelada, mãe de alguns filhos e com uma sensibilidade atordoante: Carolina Maria de Jesus. O ingresso custa só 10 reais e dá direito não só a um espetáculo vibrante, mas também a um gole de cachaça e a muita, mas muita reflexão.
Os jovens atores negros, guiados pelo diretor José Fernando Azevedo, mergulharam fundo. Em cena, o que se vê é, ao mesmo tempo, é a vida de uma mulher negra no fim dos anos 50 e o que esses atores, com toda certeza do mundo, já sentiram na própria pele. É um documento e, ao mesmo tempo, é atual. É histórico e é contemporâneo, a tal ponto que em nenhum momento sente-se falta do famigerado didatismo que tantas vezes contamina peças adaptadas de livros. Gal, Sidney, Lucélia e seus colegas tomaram conta do texto, apossaram-se de sua narrativa - e com isso seduzem a platéia.
Não é uma peça sobre racismo, denúncia, nem paira no ar um clima de vingança contra os branquelos da platéia. É um espetáculo sobre a dor que o racismo causa, sobre as feridas fundas que deixa em quem sofre ataques também de seus 'iguais'. Há até ingenuidade no modo como Carolina vivia seus problemas. Sem lei Afonso Arinos nem conceitos politicamente corretos (e hipócritas), ela se valia da própria sensibilidade para enfrentar os ataques. Talvez seja isso que deu à montagem a mesma contundência do livro: os atores também retrabalham as próprias experiências e misturaram às da autora, que morreu em 1977, aos 63 anos, depois de ver seu livro traduzido em 13 idiomas.
Há momentos delicados - quando Carolina sai comprando exemplares da revista O Cruzeiro, a primeira a falar dela e seus diários. E há momentos que travam a garganta - quando a mãe rege a sinfonia dos filhos famintos. Ou quando ela, tratada como estrela por um diretor de jornal, emociona-se ao realizar um antigo sonho: almoça arroz, feijão, bife e salada. E há outros momentos que nos assustam, como quando todos atacam uma atriz, usando todas as piadas infames e gracinhas racistas que se espalha por aí. Sobram ataques para o sistema, que queria transformar Carolina numa celebridade a contragosto, e fica implícito - até pela pouca presença de público - que muita coisa continua igual. À exceção de Sidney Santiago, que viveu o esquizofrênico pobre de "Caminho das Índias" e também arrebentou como o motoboy do filme "Os doze trabalhos", o restante do ótimo elenco não aparece na Caras. Portanto...
Com perucas loiras mal ajambradas na cabeça, números musicais que parodiam os filmes de Hollywood de maneira cortante - uma explicitamente falsa doris day dança pelo palco abraçada a um vestido de primeira comunhão, enquanto canta as agruras de não ter comida pra dar aos filhos... - o elenco inteiro dá um show.
Interessante é que a miséria do tempo de Carolina era dolorida, como a miséria de hoje, mas não tinha a marca da violência. Ainda não se falava de criminalidade como sinônimo de miséria. E isso espanta: a mãe quer comprar sapatos pros filhos para que eles possam ir à escola e ser alguém - e não para que tentem escapar das quadrilhas e das polícias. A peça termina de maneira quase brusca, porque - no fim das contas - aquela história não termina nunca.
Tentem não perder a peça. É um espetáculo de primeira grandeza em meio a tantos falsos brilhos de nossos palcos.
p.s. Confesso que não sabia, mas tá na Vejinha: Gilberto, o Alcaide, tá fechando os albergues de miseráveis do centro. Quer que os mendigos aceitem dormir nos cafundós da periferia. Eles não aceitam e acabaram se espalhando pelos bairros de gente bem. Pelo menos agora são notados. Será que foi a maneira que o Alcaide encontrou de despertar a consciência social dos frequentadores da Oscar Freire? Bem bolado!
segunda-feira, 23 de novembro de 2009
As mortes de Celso Pitta
A segunda morte do ex-prefeito Celso Pitta, noticiada no sábado, pegou muita gente de surpresa. Poucos sabiam que ele estava doente e a maioria já dava o homem por morto desde que ele saiu da prefeitura e só se meteu em confusão - seja com a ex-mulher, seja com a Polícia Federal.
A terceira morte de Celso Pitta ocorreu algumas horas depois do seu falecimento físico. Ao velório e ao enterro, realizados debaixo de uma chuva que os jornais de antigamente classificariam de torrencial, compareceram umas 100 pessoas - no enterro, mesmo, eram umas 30 almas pingadas, contando a mãe de 89 anos e os filhos, que chegaram poucos minutos antes do caixão baixar à sepultura.
No domingo, os jornais publicavam a notícia embaraçosa e forçavam a repercussão junto a outros prefeitos paulistanos. Gilberto, o Alcaide, soltou uma nota padrão, só não totalmente formal porque remetia à morte do próprio pai, ocorrida há algum tempo. Marta Suplicy, convenhamos, deve ter discussões mais acaloradas com seu cabeleireiro sobre cor de tintura do que ditando a sua opinião sobre a morte de Pitta. Maluf, em viagem, mandou um telegrama.
Não houve surpresa nessa melancólica saída de cena. Pitta nunca teve uma tradição política: chegou à prefeitura guindado pelo padrinho Maluf, com quem se desentenderia depois. Não criou vínculos com a cidade. E nem com os mais próximos: contam as comadres que sua relação com os filhos era, no mínimo, muito complicada. Com Nicéia, nem se fala. Pra mim, a surpresa mesmo veio da reação de algumas ONGs de movimentos negros , que atribuíram o baixo ibope do enterro ao preconceito racial.
Eles dizem que Pitta foi vitimado pelo preconceito durante toda sua administração. Eu cochilei e perdi algum pedaço do filme? Até onde minha loirice consegue compreender, Pitta entrou pra história como titular de uma prefeitura corrupta, corroída pela roubalheira de precatórios e verbas desviadas. Não foi o único a ser acusado, é verdade, mas pelo jeito foi um dos que deixou rastro. Havia, sim, piadas racistas em torno de seu nome - mas não creio que este tenha sido o único combustível das críticas: o que pegava mesmo era a corrupção desenfreada.
Não foi só isso. Celso Pitta, até onde eu saiba, não deixou marcas na cidade. Era desprovido de carisma. Até a arrogante Marta Suplicy ("Ela parece uma eterna aluna de vestido rendado do Des Oiseaux", dizia uma colega do Estadão) tem seu fã-clube. Há quem vá com a cara de Gilberto, o Alcaide, e até o governador asperge seu charme sobre alguns corações femininos. Pitta - repito, até onde eu saiba - não deixou muitas lembranças.
Ele foi humilhado ao ser preso de pijama em rede nacional, da mesma forma que Marta foi achincalhada quando um estudante da São Francisco atirou-lhe uma galinha em cima (e só faltou ser ovacionado pela imprensa tucana) e Luísa Erundina era ridicularizada por ser solteira, não ter corpinho de miss e falar com sotaque nordestino.
Confundir isso com racismo, sei não. Será que é mesmo motivo de orgulho saber que um negro chegou ao poder construindo uma imagem de político corrupto? Minimizar essas acusações seria a solução ideal? Um negro corrupto é menos corrupto que um branco? Será que até pra isso vai ter cota?
O que todos esses políticos - sejamos pró ou contra - experimentaram em comum foi a campanha da maioria que se julga branca, rica, hétero e ariana. É contra isso que devemos lutar - mas sem jogar para debaixo do tapete os erros de nossos candidatos. O erro dos 'nossos' não é menos grave que o erro 'dos outros'.
quinta-feira, 19 de novembro de 2009
O número 2
segunda-feira, 16 de novembro de 2009
Pra cima com a viga, moçada!
quarta-feira, 11 de novembro de 2009
É a treva!
Não, não se trata de um post sobre o apagão que deixou mais da metade do país tateando armários e gavetas à procura da vela perdida. Nem - apesar da foto - de algum comentário sobre o bordão de Bianca, um dos personagens mais populares da novela "Caras & Bocas", vivida pela atriz Isabelle Drummond (salvo engano, a primeira menina a interpretar a Emília no "Sítio do Picapau Amarelo). O post é mesmo sobre o tempo que vivemos.
Posso estar enganado - aliás, espero mesmo estar bastante enganado -, mas há algum tempo sinto no ar um certo clima de revanche, de vingança do bastardo, da volta do trogloditismo. O caso da Menina da Minissaia foi exemplar, mas não foi o primeiro, nem único e, infelizmente, não tem pinta de ser o último. As forças conservadoras reconquistam o terreno perdido. E não estou me referindo apenas aos aspectos político-partidários. Penso no conservadorismo de comportamento, de ações, de gestos.
Alguns são até inocentes, como a volta do noivado. Aquele período que separava o namoro do casamento e servia pro futuro casal ter mais liberdades perdeu o sentido nos anos 60-70, quando se ia pra cama antes mesmo de saber com quem... O test-drive sexual funcionou muito bem e, pelo jeito, funciona até hoje. Mas a rapaziada tem organizado almoços de noivado e festas de casamento grandiosas, resgatando uma formalidade que eu acreditava extinta.
Ao avanço das conquistas sexuais de gays e lésbicas, segue-se um recrudescimento de punks e anarquistas, provocando agressões e assassinatos no rastro da última Parada Gay de São Paulo. É como se o clima de democracia e direito à expressão que marcou as conquistas homossexuais também servisse de veículo para os conservadores emitirem a sua opinião. Não haveria nada mais democrático: a convivência de opostos. Mas não é o que temos visto, apesar de um inegável avanço: hoje, não se apanha calado. Vítimas e militantes, quando atingidos, gritam e exigem providências legais - e isso é um avanço fenomenal, apesar de óbvio. Mas o fato é que veados continuam apanhando e morrendo apenas porque são veados.
Mulheres também pagam sua cota. Do ponto de vista capitalista, elas conquistaram muita coisa nos últimos 40 anos (menos igualdade de salário). Conquistaram o direito a ser mães sem a presença do pai-marido e, em nossa sociedade, o direito de ir e vir - a não ser que usem roupas provocantes demais. A única explicação que encontrei até agora para o comportamento dos estudantes da Uniban que cercaram a Menina da Minissaia foi esse xarope de conservadorismo que nos cerca.
Provavelmente, pela idade que têm, muitos desses jovens (a maioria) são filhos de mulheres que trabalham fora. Certamente têm irmãs e primas que estudam para ter uma profissão e que não conseguem, nem podem, separar trabalho e casamento: o salário de um casal é sempre mais garantido que o de um só. Ao mesmo tempo, esses meninos e homens saboreiam as mulheres-fruta, cujos apelidos por si só já indicam o caráter consumista que aplicam às fêmeas. Ninguém respeita uma jaboticaba ou uma melancia.
Da mesma maneira que invadem as ladeiras de Olinda no carnaval, beijando toda menina que passa no caminho, às vezes à força, esses meninos viram na minissaia da colega de faculdade um motivo para chacota. Assoviar, chamar de galinha e passar cantadas grosseiras virou coisa do passado. A onda é responder à altura. Por algum motivo que me escapa, eles se sentiram agredidos pelas coxas da Menina - mas aplaudiram, vejam só, as coxas famosas de Sabrina Sato, que apareceu na Uniban embrulhada num minivestido cor-de-rosa. Foi uma grande sacada do "Pânico" e revelou parte do pensamento desses meninos: as coxas da Sabrina Sato são um tesão (e são), mas a carne das 'nossas' não é pra ser exposta. É a volta triunfal da "mina pra casar".
É uma pena que nada, nem mesmo a entrada de Sabina Sato, ajude a refletir sobre o assunto. A agressão vira piada. A bicha que apanhou dos punks engole o choro. E o fato de alguém se vestir de maneira apenas inadequada rende, no máximo, uma corrida das revistas de mulher nua pelo direito às coxas da estudante. Sai a mulher melancia e entra a mulher judas.