sábado, 28 de novembro de 2009

Qual é o pente que te penteia?



Nada é por acaso, a não ser o que nos pega de surpresa. Depois de tanto resvalar no tema do racismo que nos rodeia, acabei na plateia da peça "Ensaio sobre Carolina", que encerra carreira na próxima sexta-feira, dia 4/12, no Teatro Imprensa. Ali, junto aos meus sete companheiros de platéia - tão pouca gente pra um espetáculo apresentado por seis pessoas - tive a nítida noção que estava assistindo a uma das melhores peças do ano.

"Ensaio" é um trabalho de pesquisa teatral feito sobre o livro "Quarto de despejo", um dos maiores sucessos editoriais do Brasil nos anos 60. Sua autora era uma catadora de papel, favelada, mãe de alguns filhos e com uma sensibilidade atordoante: Carolina Maria de Jesus. O ingresso custa só 10 reais e dá direito não só a um espetáculo vibrante, mas também a um gole de cachaça e a muita, mas muita reflexão.

Os jovens atores negros, guiados pelo diretor José Fernando Azevedo, mergulharam fundo. Em cena, o que se vê é, ao mesmo tempo, é a vida de uma mulher negra no fim dos anos 50 e o que esses atores, com toda certeza do mundo, já sentiram na própria pele. É um documento e, ao mesmo tempo, é atual. É histórico e é contemporâneo, a tal ponto que em nenhum momento sente-se falta do famigerado didatismo que tantas vezes contamina peças adaptadas de livros. Gal, Sidney, Lucélia e seus colegas tomaram conta do texto, apossaram-se de sua narrativa - e com isso seduzem a platéia.

Não é uma peça sobre racismo, denúncia, nem paira no ar um clima de vingança contra os branquelos da platéia. É um espetáculo sobre a dor que o racismo causa, sobre as feridas fundas que deixa em quem sofre ataques também de seus 'iguais'. Há até ingenuidade no modo como Carolina vivia seus problemas. Sem lei Afonso Arinos nem conceitos politicamente corretos (e hipócritas), ela se valia da própria sensibilidade para enfrentar os ataques. Talvez seja isso que deu à montagem a mesma contundência do livro: os atores também retrabalham as próprias experiências e misturaram às da autora, que morreu em 1977, aos 63 anos, depois de ver seu livro traduzido em 13 idiomas.

Há momentos delicados - quando Carolina sai comprando exemplares da revista O Cruzeiro, a primeira a falar dela e seus diários. E há momentos que travam a garganta - quando a mãe rege a sinfonia dos filhos famintos. Ou quando ela, tratada como estrela por um diretor de jornal, emociona-se ao realizar um antigo sonho: almoça arroz, feijão, bife e salada. E há outros momentos que nos assustam, como quando todos atacam uma atriz, usando todas as piadas infames e gracinhas racistas que se espalha por aí. Sobram ataques para o sistema, que queria transformar Carolina numa celebridade a contragosto, e fica implícito - até pela pouca presença de público - que muita coisa continua igual. À exceção de Sidney Santiago, que viveu o esquizofrênico pobre de "Caminho das Índias" e também arrebentou como o motoboy do filme "Os doze trabalhos", o restante do ótimo elenco não aparece na Caras. Portanto...

Com perucas loiras mal ajambradas na cabeça, números musicais que parodiam os filmes de Hollywood de maneira cortante - uma explicitamente falsa doris day dança pelo palco abraçada a um vestido de primeira comunhão, enquanto canta as agruras de não ter comida pra dar aos filhos... - o elenco inteiro dá um show.

Interessante é que a miséria do tempo de Carolina era dolorida, como a miséria de hoje, mas não tinha a marca da violência. Ainda não se falava de criminalidade como sinônimo de miséria. E isso espanta: a mãe quer comprar sapatos pros filhos para que eles possam ir à escola e ser alguém - e não para que tentem escapar das quadrilhas e das polícias. A peça termina de maneira quase brusca, porque - no fim das contas - aquela história não termina nunca.

Tentem não perder a peça. É um espetáculo de primeira grandeza em meio a tantos falsos brilhos de nossos palcos.

p.s. Confesso que não sabia, mas tá na Vejinha: Gilberto, o Alcaide, tá fechando os albergues de miseráveis do centro. Quer que os mendigos aceitem dormir nos cafundós da periferia. Eles não aceitam e acabaram se espalhando pelos bairros de gente bem. Pelo menos agora são notados. Será que foi a maneira que o Alcaide encontrou de despertar a consciência social dos frequentadores da Oscar Freire? Bem bolado!

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

As mortes de Celso Pitta



A segunda morte do ex-prefeito Celso Pitta, noticiada no sábado, pegou muita gente de surpresa. Poucos sabiam que ele estava doente e a maioria já dava o homem por morto desde que ele saiu da prefeitura e só se meteu em confusão - seja com a ex-mulher, seja com a Polícia Federal.
A terceira morte de Celso Pitta ocorreu algumas horas depois do seu falecimento físico. Ao velório e ao enterro, realizados debaixo de uma chuva que os jornais de antigamente classificariam de torrencial, compareceram umas 100 pessoas - no enterro, mesmo, eram umas 30 almas pingadas, contando a mãe de 89 anos e os filhos, que chegaram poucos minutos antes do caixão baixar à sepultura.

No domingo, os jornais publicavam a notícia embaraçosa e forçavam a repercussão junto a outros prefeitos paulistanos. Gilberto, o Alcaide, soltou uma nota padrão, só não totalmente formal porque remetia à morte do próprio pai, ocorrida há algum tempo. Marta Suplicy, convenhamos, deve ter discussões mais acaloradas com seu cabeleireiro sobre cor de tintura do que ditando a sua opinião sobre a morte de Pitta. Maluf, em viagem, mandou um telegrama.

Não houve surpresa nessa melancólica saída de cena. Pitta nunca teve uma tradição política: chegou à prefeitura guindado pelo padrinho Maluf, com quem se desentenderia depois. Não criou vínculos com a cidade. E nem com os mais próximos: contam as comadres que sua relação com os filhos era, no mínimo, muito complicada. Com Nicéia, nem se fala. Pra mim, a surpresa mesmo veio da reação de algumas ONGs de movimentos negros , que atribuíram o baixo ibope do enterro ao preconceito racial.

Eles dizem que Pitta foi vitimado pelo preconceito durante toda sua administração. Eu cochilei e perdi algum pedaço do filme? Até onde minha loirice consegue compreender, Pitta entrou pra história como titular de uma prefeitura corrupta, corroída pela roubalheira de precatórios e verbas desviadas. Não foi o único a ser acusado, é verdade, mas pelo jeito foi um dos que deixou rastro. Havia, sim, piadas racistas em torno de seu nome - mas não creio que este tenha sido o único combustível das críticas: o que pegava mesmo era a corrupção desenfreada.

Não foi só isso. Celso Pitta, até onde eu saiba, não deixou marcas na cidade. Era desprovido de carisma. Até a arrogante Marta Suplicy ("Ela parece uma eterna aluna de vestido rendado do Des Oiseaux", dizia uma colega do Estadão) tem seu fã-clube. Há quem vá com a cara de Gilberto, o Alcaide, e até o governador asperge seu charme sobre alguns corações femininos. Pitta - repito, até onde eu saiba - não deixou muitas lembranças.

Ele foi humilhado ao ser preso de pijama em rede nacional, da mesma forma que Marta foi achincalhada quando um estudante da São Francisco atirou-lhe uma galinha em cima (e só faltou ser ovacionado pela imprensa tucana) e Luísa Erundina era ridicularizada por ser solteira, não ter corpinho de miss e falar com sotaque nordestino.

Confundir isso com racismo, sei não. Será que é mesmo motivo de orgulho saber que um negro chegou ao poder construindo uma imagem de político corrupto? Minimizar essas acusações seria a solução ideal? Um negro corrupto é menos corrupto que um branco? Será que até pra isso vai ter cota?

O que todos esses políticos - sejamos pró ou contra - experimentaram em comum foi a campanha da maioria que se julga branca, rica, hétero e ariana. É contra isso que devemos lutar - mas sem jogar para debaixo do tapete os erros de nossos candidatos. O erro dos 'nossos' não é menos grave que o erro 'dos outros'.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

O número 2


Pode ser alguma barreira minha. Talvez eu precisasse discutir o tema com minha analista. Ou continuar fazendo o que sempre faço: tiro o som da TV quando entram aquelas propagandas chatérrimas de Activia e outros produtos que ajudam a pessoa a fazer o bom e velho cocô. Aquele bando de mulheres reunidas em torno da Patrícia Travassos ou de outra atriz, comentando que agora sim são mulheres realizadas porque conseguem dar vazão ao seu metabolismo... sei lá, eu acho embaraçoso.

Não sou contra falar do assunto - já fiz peça sobre isso, aliás um tremendo sucesso. Mas uma coisa é fazer no teatro, a pessoa vai até lá, leu a sinopse antes, é um outro ritual. Se for um pateta que nem eu, que costuma almoçar ou jantar diante da TV (é errado, eu sei, mas oras bolas), é bem chato ver neguinho discutindo hábitos intestinais em público.

Também acho chato aquela propagada de ração pra cachorro em que uma menininha fofa aparece em close segurando uma pazinha lotada de cocô canino. Pô, não tem limite pro exibicionismo? Nem o cachorro escapa.

Essas coisas a gente fala com quem tem intimidade ou com o médico. Mas, pensando bem, nossos hábitos sexuais também não são da conta de ninguém - e hoje em dia o que mais se vê e lê nas revistas é com quem A dormiu, quem B comeu ou pra quem C deu. Já li entrevistas detalhadas de orgamos, primeiras vezes, práticas sexuais inusitadas e outras banalidades de gente que nem lembro mais quem era. Ou seja, coitada da moça - acho que era uma moça: se abriu feito um para-quedas e sumiu na lata de lixo da história.

O problema dessas propagandas - que atingem muita gente, já que prisão de ventre é praticamente uma epidemia - é que são repetitivas, sexistas e simplistas. Elas sempre têm uma pinta de científicas e se dirigem a mulheres, como se não houvesse homens não padeçam do mesmo mal. São simplistas porque atribuem a um pote de iogurte o dom de abrir os caminhos (num sentido figurado) de qualquer pessoa.
Numa das propagandas, uma executiva passa o dia correndo pro banheiro e saindo com cara de quem não fez nada. Até que a secretária eficiente oferece um remedinho - e a mulher, pelo visto, pinta a porcelana. Imaginem essa atriz saindo por aí. Entrando no banheiro de um restaurante. Ou usando o toalete na casa de um colega de trabalho. Todo mundo vai pensar a mesma coisa, não vai?
Deve ser tão constrangedor quanto a velhinha que fazia propaganda de fraldão pra adulto ou da senhorinha que falava do Corega. Ah, teve também o Orlando Moraes pagando mico de seboso, com a Glória Pires fazendo anúncio de xampu anti-caspa. É tudo natureza, eu sei, eu sei. Mas só queria dividir essa dúvida que sempre me bate quando vejo a Patrícia Travassos falando do Activia. Tanto que nem tenho uma opinião formada. Eu só não gosto dessas propagandas, mais nada.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Pra cima com a viga, moçada!


Não vou entrar em detalhes técnicos, deixo isso pros jornais e revistas. Mas, vamos e venhamos, esse despencar de viadutos na Régis Bittencourt é uma tremenda pouca vergonha - pra dizer o mínimo. Um engenheiro que fajuta os cálculos ou troca o material usado na construção por outros de qualidade inferior - sabendo do risco que pode causar - é o que os antigos chamariam de criminoso.

Espero sinceramente que os profissionais envolvidos na construção dessa obra estejam sem pregar o olho desde sexta-feira. Eles deveriam sofrer de insônia desde que trocaram o cimento bom por um meia boca, mas não se pode esperar demais de quem aceita entrar num jogo desses. É bem capaz de acharem logo o culpado - algum peão de obra, de cabeça chata e sotaque arretado, daqueles que não têm dinheiro nem pra recarregar o bilhete único. Afinal, é ano eleitoral e o peso das vigas pode sobrar pra muito mais gente.

Espero não estar sendo imparcial demais - e é claro que estou - mas vocês não ficam espantados com a péssima qualidade dos empreiteiros contratados pelo Estado para dar cabo de obras tão grandiosas? É notoriamente conhecida a guerra que quase todo mundo trava com pedreiros e empreiteiros quando decide construir ou reformar a casa (sou exceção, o mestre Juraci, que cuidou das melhorias do meu cafofo, é um lorde pontual e caprichoso) - mas o azar que o Governo do Estado tem é chocante.

Lembram da linha amarela do metrô? Até tatuzão desencontrado apareceu - veio um de um lado pra encontrar o outro - e os túneis estavam desalinhados! Sem falar na barbaridade que foi o desabamento em Pinheiros, matando gente que não tinha nada a ver com o pato. Vai ver que o critério de escolha das empreiteiras é o mesmo que o Zé Bonitinho do Mal usou pra escolher o reitor da USP - não pega o mais votado, não. Nem o melhor... Pega, deixa eu ver... ah, pega esse aqui. Isso é típico de quem ficou em segundo lugar...
Pensando bem mesmo... Se o PSDB entendesse de construção, o símbolo deles não seria um tucano. Seria um joão de barro. Aquele passarinho de bico desproporcional explica tudo!

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

É a treva!



Não, não se trata de um post sobre o apagão que deixou mais da metade do país tateando armários e gavetas à procura da vela perdida. Nem - apesar da foto - de algum comentário sobre o bordão de Bianca, um dos personagens mais populares da novela "Caras & Bocas", vivida pela atriz Isabelle Drummond (salvo engano, a primeira menina a interpretar a Emília no "Sítio do Picapau Amarelo). O post é mesmo sobre o tempo que vivemos.


Posso estar enganado - aliás, espero mesmo estar bastante enganado -, mas há algum tempo sinto no ar um certo clima de revanche, de vingança do bastardo, da volta do trogloditismo. O caso da Menina da Minissaia foi exemplar, mas não foi o primeiro, nem único e, infelizmente, não tem pinta de ser o último. As forças conservadoras reconquistam o terreno perdido. E não estou me referindo apenas aos aspectos político-partidários. Penso no conservadorismo de comportamento, de ações, de gestos.


Alguns são até inocentes, como a volta do noivado. Aquele período que separava o namoro do casamento e servia pro futuro casal ter mais liberdades perdeu o sentido nos anos 60-70, quando se ia pra cama antes mesmo de saber com quem... O test-drive sexual funcionou muito bem e, pelo jeito, funciona até hoje. Mas a rapaziada tem organizado almoços de noivado e festas de casamento grandiosas, resgatando uma formalidade que eu acreditava extinta.


Ao avanço das conquistas sexuais de gays e lésbicas, segue-se um recrudescimento de punks e anarquistas, provocando agressões e assassinatos no rastro da última Parada Gay de São Paulo. É como se o clima de democracia e direito à expressão que marcou as conquistas homossexuais também servisse de veículo para os conservadores emitirem a sua opinião. Não haveria nada mais democrático: a convivência de opostos. Mas não é o que temos visto, apesar de um inegável avanço: hoje, não se apanha calado. Vítimas e militantes, quando atingidos, gritam e exigem providências legais - e isso é um avanço fenomenal, apesar de óbvio. Mas o fato é que veados continuam apanhando e morrendo apenas porque são veados.

Mulheres também pagam sua cota. Do ponto de vista capitalista, elas conquistaram muita coisa nos últimos 40 anos (menos igualdade de salário). Conquistaram o direito a ser mães sem a presença do pai-marido e, em nossa sociedade, o direito de ir e vir - a não ser que usem roupas provocantes demais. A única explicação que encontrei até agora para o comportamento dos estudantes da Uniban que cercaram a Menina da Minissaia foi esse xarope de conservadorismo que nos cerca.

Provavelmente, pela idade que têm, muitos desses jovens (a maioria) são filhos de mulheres que trabalham fora. Certamente têm irmãs e primas que estudam para ter uma profissão e que não conseguem, nem podem, separar trabalho e casamento: o salário de um casal é sempre mais garantido que o de um só. Ao mesmo tempo, esses meninos e homens saboreiam as mulheres-fruta, cujos apelidos por si só já indicam o caráter consumista que aplicam às fêmeas. Ninguém respeita uma jaboticaba ou uma melancia.

Da mesma maneira que invadem as ladeiras de Olinda no carnaval, beijando toda menina que passa no caminho, às vezes à força, esses meninos viram na minissaia da colega de faculdade um motivo para chacota. Assoviar, chamar de galinha e passar cantadas grosseiras virou coisa do passado. A onda é responder à altura. Por algum motivo que me escapa, eles se sentiram agredidos pelas coxas da Menina - mas aplaudiram, vejam só, as coxas famosas de Sabrina Sato, que apareceu na Uniban embrulhada num minivestido cor-de-rosa. Foi uma grande sacada do "Pânico" e revelou parte do pensamento desses meninos: as coxas da Sabrina Sato são um tesão (e são), mas a carne das 'nossas' não é pra ser exposta. É a volta triunfal da "mina pra casar".

É uma pena que nada, nem mesmo a entrada de Sabina Sato, ajude a refletir sobre o assunto. A agressão vira piada. A bicha que apanhou dos punks engole o choro. E o fato de alguém se vestir de maneira apenas inadequada rende, no máximo, uma corrida das revistas de mulher nua pelo direito às coxas da estudante. Sai a mulher melancia e entra a mulher judas.

domingo, 8 de novembro de 2009

A butique dela


Demorei pra escrever a respeito do caso da minissaia. Queria ver até que ponto ia a coisa toda. A história da menina que foi avacalhada no campus da Uniban porque estava usando uma roupa "inadequada" rodou jornais, colunas, blogs e programas de TV. A menina virou uma instant-celebrity e deve ter deixado seus agressores ainda mais incomodados: ela denegriu a imagem do instituto de ensino... Sábado, veio o troco: ela foi expulsa da universidade. Vamos combinar: precisa escrever algo a respeito?

Digamos que. Vamos supor que. Vá lá, quem sabe os caras. Mesmo que algumas entrevistadas (sim: mulheres) ao longo da semana tenham razão, que a Menina - vou chamá-la assim, ok? - tenha se exibido com mais despudor do que o 'permitido'... mesmo que ela tenha se recusado a trocar de roupa para evitar um tumulto maior... não dá pra entender o motivo do tumulto em si. Um par de pernas? Ok, o fundamentalismo moralista tá tomando conta da cidade, a Lei Cidade Limpa tirou das paredes dos prédios aqueles outdoors com gente gostosa em trajes íntimos - mas daí a achar que gente bonita ofende é um passo maior do que as pernas (perdão pelo trocadilho). E na direção errada.
A história continua mal explicada, mas uma coisa é certa. Os alunos foram de uma agressividade pré-histórica, a Menina fez muito bem em botar a boca no trombone e a universidade perdeu uma excelente ocasião de injetar um pouco de esperança no futuro da educação no Brasil. Ao expulsar a aluna, a reitoria está punindo a vítima do estupro. Pior, está agindo com uma ética troglodita. A Menina só foi informada da expulsão pelos repórteres. A universidade pensou primeiro no release, antes de comunicar o fato à principal interessada.
Estamos, não é de hoje, numa nação de moralidade hipócrita: os colonizadores portugueses inauguraram a prática do turismo sexual ainda no século 16, atravessando o mar-oceano pra saracotear com negras e índias em terras brasileiras. Até mesmo numa novela (salvo engano, "Água Viva", de Gilberto Braga), uma personagem era quase linchada em Ipanema por fazer top-less, copiando na ficção um fato real acontecido no Rio. Nosso carnaval exibe corpos em detalhes de livro de medicina e uma mulher não pode mostrar os peitos na praia. Nossas praias de nudismo, um convite à liberdade, são um dos territórios mais machistas e escrotos que já vi: homem sozinho não entra, dois amigos não entram - só entra casal hétero ou duas mulheres. Isso é norma! Tentem explicar isso pra um casal gay francês que só queria dourar o pingolan em águas naturalistas du Brésil...
Vivemos uma época em que, abrindo qualquer revista, podemos saber detalhes anatômicos do ator tal, quantas vezes o cantor X goza ou quem frequentou a cama da modelo Y - contado por ela! O que poderia ser a manifestação sadia da sexualidade, em seus mais variados formatos, se transforma num exercício exibicionista totalmente sem graça. Mas há pessoas, como a Menina da Uniban, que acreditam nisso: elas acham que a sensualidade tão elogiada nas revistas é privilégio democrático. Enfia-se numa minissaia, de repente até fica meio vulgar, mas ela gosta assim e pronto. Como dizia o Garrincha, ela só não combinou com os adversários.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Dona Augusta


Lá pelas tantas, no meio da sessão de "Alô Alô Terezinha", entre uma chacrete decadente e um ex-calouro trelelé, eu me lembrei da Dona Augusta. A Dona Augusta era sogra do meu tio (e padrinho) e já era velha quando eu era criança. Foi a primeira pessoa que eu conheci que falava com sotaque carioca. Mas Dona Augusta tinha um algo a mais: ela era prima do Chacrinha. Aos meus olhos, aquilo fazia dela um ser superior, distinguido, uma sacerdotisa do grande templo que era a televisão - e eu achava que eles até se pareciam... Eu imaginava as conversas da dona Augusta com seu primo famoso, a quem nós - os mortais condenados ao anonimato, o resto da família - jamais veríamos pessoalmente. Nunca tive coragem de perguntar a ela como ele era - eu tinha medo da velhice dela. Provavelmente, as informações que dona Augusta me daria sobre o primo seriam mais consistentes do que as fornecidas pelo documentário de Nelson Hoineff.

Falta inteligência a "Alô alô Terezinha", o que é uma pena. Falta um norte, também. Ao fim de 90 minutos de filme, você sai da sala sem saber se assistiu um documentário sobre o Chacrinha ou sobre as chacretes ou sobre o programa ou sobre a deplorável exploração dos mais fracos no circo eletrônico. "Alô alô" flerta com todos esses temas, sem abraçar nenhum com firmeza. A figura de Chacrinha passa pelo filme, sem explicações sobre sua origem pessoal e profissional.


O filme se detém mais sobre as chacretes e os ex-calouros (parabéns à produção, pela descoberta dessas figuras). Mas é nesse ponto que descobrimos o verdadeiro tema do documentário: a decadência. Quanto mais caído for o entrevistado, mais seu depoimento será estendido. Por isso, as chacretes ocupam a maior parte da projeção. Símbolos sexuais em seus tempos de glória, todas tiveram seu auge no começo dos anos 80, quando a TV podia mostrar bundas e peitos sem que a censura caísse matando. Numa cena do programa feito ainda na TV Tupi, nos anos 70, o figurino das chacretes é de uma inocência quase angelical: blusas sem manga, saias compridas. Nos anos 80, os maiôs entravam pela bunda e os closes beiravam o ginecológico.

Mas 30 anos se passaram e atire a primeira pedra quem não sofreu no corpo as influências do tempo. As gostosas envelheceram e a sensação é que o filme as culpa por isso, pelas celulites e estrias, pelas barrigas avançadas e pelos peitos caídos. Condenadas pela falta de glamour, elas aparecem fazendo sermões religiosos, fritando coxinha de galinha ou vendendo hot dog em quermesse. Uma chora por que é desprezada por um médico gay, a quem ama de paixão. A outra reencarna a índia sensual e mergulha sem roupa na fonte da cidade. É como se o cineasta tratasse seus entrevistados com o mesmo "desrespeito" que Chacrinha devotava aos calouros: são pessoas desvalidas, com a auto-estima no porão, mas ainda nostálgicas do sucesso que um dia tiveram e do desejo que um dia despertaram. A única que está melhorzinha - inclusive fisicamente, estrelando filmes pornôs hardcore - é Rita Cadillac, que aparece pouco.

Os calouros, parece, têm tratamento melhor pouquinha coisa. A produção foi atrás dos gongados, dos que levaram o troféu abacaxi (a exceção é uma garota, que ganhou, mas cuja carreira não decolou, restando a ela cantar em karaokês - olha a decadência de novo). Os números musicais são extensos, desnecessariamente longos e parecem querer dar ao ex-calouro a chance de provar seu talento, um talento que eles não têm. A crueldade é tirar deles justamente o que deu sentido às suas vidas: eles foram gongados. A razão do seu 'sucesso' é um fracasso. Tentar 'minimizar' seu fracasso acaba por reduzir a biografia deles, acho eu.
Contraditoriamente, o filme merece ser visto. Uma série de depoimentos e trechos restaurados mostram que o Velho Guerreiro era um anarquista à toda prova. Seus figurinos irreverentes e absurdos combinavam direitinho com o time que se apresentava no programa. Simplesmente, todo mundo passou pelo Cassino do Chacrinha: de Roberto Carlos a Cazuza, de Alcione a Baby Consuelo, de Jerry Adriani a Ney Matogrosso. O filme faz de conta que Chacrinha não cobrava por essas apresentações - ele é tido como o criador do jabaculê, o 'extra' que gravadoras pagavam pra divulgar seu elenco. Falta expor as contradições do apresentador e até mesmo seus casos extra-conjugais passam batido, deixando no ar uma 'acusação' contra Clara Nunes.
Chacrinha misturava tudo, exibia o brega e o sofisticado de nossa música. Azucrinava os calouros desdentados, elegia o homem mais feio do Brasil (e os finalistas sorriam orgulhosos para as câmeras!) e bagunçava o coreto de qualquer artista. Num artigo para a Ilustrada, Hugo Possolo lembrou que o Chacrinha de ontem é o Faustão de hoje e definiu genialmente a diferença: Chacrinha era feira livre, Faustão é shopping center. A cirurgia plástica dos corpos chegou às idéias e a gente tem vergonha de mostrar as mil faces do Brasil - só vale a baiana gostosa e a pujança paulista... Por mais defeitos que o documentário de Nelson Hoineff tenha, merece ser visto - até porque desperta justamente essas discussões. Ou seja, perda de tempo não é.
Pra quem se interessou em ver "Dzi Croquettes", a Mostra vai reapresentá-lo esta semana. Consulte o site www.mostra.org.br.

domingo, 1 de novembro de 2009

Dia de todas as santas


Ninguém combinou nada. O documentário "Dzi Croquettes"nem tinha terminado e a platéia inteira começou a aplaudir com intensidade, com emoção. Eram aplausos sinceros, que certamente pareceram música aos ouvidos dos diretores Raphael Alvarez e Tatiana Issa. Eu estava na platéia do Cinesesc e só não aplaudi mais porque precisava enxugar as lágrimas, de vez em quando (no fundo, eu sou um sentimental, como canta Chico Buarque). Mas "Dzi Croquettes", o filme, merece os elogios e prêmios que conquistou no Festival do Rio. Na Mostra de São Paulo, ainda haverá uma sessão, nessa terça, 14 horas. Pena que poucos poderão assistir e entender um pouco mais do Brasil que temos ao nosso redor.

"Dzi Croquettes", o nome já diz, é um documentário sobre o grupo de atores-cantores-bailarinos que tomaram conta dos palcos brasileiros no começo dos anos 70. Estávamos no auge da ditadura militar e, sem que ninguém soubesse explicar como, aquele bando de homens vestidos de mulher, com peitos cabeludos e uma irreverência à toda prova, saíram de uma boatezinha na Zona Sul carioca para teatros do Brasil todo - até chegar em Paris e arrebanhar uma platéia que incluía Mick Jagger, Catherine Deneuve, Omar Shariff e a madrinha-mor do grupo, Liza Minneli (foi ela que conseguiu furar o bloqueio da imprensa francesa, levando uma platéia de celebridades ao show do grupo e dando o estopim da vitoriosa temporada européia).

Do grupo, faziam parte 13 homens - 8 deles já mortos, como o coreógrafo Lennie Dale. Mas Ciro Barcellos e Claudio Tovar continuam na ativa e dão lindos depoimentos. Aliás, os depoimentos são um show à parte no filme. Miele, Marilia e Sandra Pêra, Pedro Cardoso, Jorge Fernando, Ney Matogrsso, Cesar Camargo Mariano, Claudia Raia, um bando de franceses e até Liza Minneli falam de sua relação com o grupo e de como foram influenciados por eles.

Mas o segredo do filme não é enfileirar os depoimentos. É, desde o começo, localizar o surgimento do grupo na história do Brasil. Havia um regime militar, havia os atos institucionais e havia uma censura braba - ainda não havia nem Secos & Molhados, quando as Dzi Croquettes começaram a rebolar suas maquiagens malucas. Essa localização, aparentemente tão óbvia, é uma das pedras de toque do filme. Quem não viveu a época ou não conheceu o grupo - eu só conheci de ouvir falar, por exemplo - entende e se espanta com a ousadia deles.

O outro truque que eleva o filme é a maneira com que a co-diretora Tatiana Issa se coloca na história. Seu pai foi cenógrafo dos Dzi e ela cresceu acompanhando os ensaios dos "palhacinhos", pois era assim que a menina os via. É lindo. Ao partir do geral - a ditadura militar - para o particular - a relação de seu pai com o grupo, Tatiana ajuda o filme a se firmar na nossa mente e na nossa emoção.

A gente sai do cinema espantado com o grupo que não gravou disco, nem deixou DVDs - mas que influenciou toda uma geração que veio depois. E eu, particularmente, ficava espantado ao ver trechos de filmes em que Lennie Dale se apresentava com Elis Regina, sua grande amiga - foi ele, recém-importado de Nova York para as boates do Rio, que ensinou a gaúcha a cantar girando os braços; Lennie deu a Elis uma noção de corpo e de ocupação do palco que poucos artistas tinham. Elis, Ney, as Frenéticas, o besteirol - tudo está interligado, por mais estranho que possa parecer de vez em quando. Entender esse naco da nossa história recente é verdadeiramente emocionante.

E assistir ao filme num domingo de feriadão, dia de todos os santos, não deixou de ser uma homenagem às loucas do grupo, que deram à sexualidade outra pegada. Ô, como faz bem ver filme bom.