quinta-feira, 28 de maio de 2009

Garfo em dia de sopa


Nos últimos anos de vida, Wilson Simonal (1938-2000) assistia aos shows dos filhos escondido atrás de uma pilastra. Não queria prejudicar a carreira dos meninos. No documentário “Wilson Simonal, Ninguém Sabe o Duro que Dei”, os ‘meninos’ fazem o caminho inverso: aparecem de cara limpa, em close, contando detalhadamente a história do pai. Uma história da qual muitos teriam vergonha, mas que eles enfrentam, sem se esconder atrás das pilastras. Deve ter sido um processo doloroso, esse acerto de contas, principalmente porque não hesita em colocar o dedo nas feridas.
Em tempos de revisionismo politicamente correto, é muito delicado analisar a história de Wilson Simonal sem entender como era o mundo nos anos 70. Mesmo os amigos entrevistados no filme – um documentário excelente, com pegada moderna, atraente – sabem que Simonal pisou na bola. Mais que apoiar o regime militar que dominou o país a partir dos anos 60, Simonal quis usar o sistema a seu favor: fez com que torturassem seu contador, suspeito de desfalque, numa sala do Dops, o órgão mais assustador da repressão.
Ele pode não ter sido o dedo-duro que diziam que era. Pateticamente, exibia em programas de categoria duvidosa os documentos que provavam sua inocência deste crime. Do outro, o de ter autorizado e aprovado a tortura de um homem, ele não se isentou. Para seu espanto, foi condenado.
O filme enquadra-se perfeitamente na tendência de tentarmos entender nossa história recente. Filmes, peças, livros e até novelas juntam cacos do passado, pequenos pedaços de mil histórias, na tentativa de dar às novas gerações (e até a nós, que vivemos o período) uma noção mais completa do que aconteceu neste país. Usam a música como trilho por onde viaja nosso passado e por onde chega nosso presente (tanto que, nos trailers, anuncia-se pelo menos dois documentários curiosos, um sobre Arnaldo Batista e outro sobre Paulo Vanzolini).
Wilson Simonal deve ter morrido sem entender onde errou – ele, que acreditava ser capaz de jogar na Seleção de 70! Ele, que fazia um Maracanã lotado cantar como um jogral ensaiadinho! Ele, que assinava contratos comerciais milionários e sentia prazer em falar de sua negritude em canções de um engajamento quase ingênuo! O menino que comia marmita escondido dos patrões da mãe, que chegou a ter três Mercedes na garagem e que era imitado por Pelé... Ele pisou em falso e despencou no abismo do silêncio.
Virou um fantasma incômodo, um anti-gasparzinho, sem ninguém que quisesse acender uma vela por sua alma. Numa época em que tudo era branco ou preto, pró ou contra, dentro ou fora, ele acreditou que poderia se safar à moda pilantra, como sempre. Dançou. Naqueles anos duros, não havia esquerda, havia oposição. Havia os a favor do regime e os contra.
Mas havia regras em cada um desses mundos. As da oposição poderiam se resumir a uma só: não ao regime, não a tudo que apóie o governo. E as do governo... essas eram mais nebulosas, mas uma coisa é certa: o regime não admitia ser usado por um artista que quisesse esclarecer um caso de roubo. Simonal deu um passo maior que as próprias pernas e aqueles que ele dizia apoiar deixaram-no solto no ar.
A esquerda, que o boicotou nos programas de TV e shows, até reabilita o cantor, mas recusa-se a deixar o crime prescrever. Não faz o mea-culpa de praxe. Da mesma maneira que Chico Anysio pergunta no filme sobre quem teria sido denunciado por Simonal, poderíamos perguntar: quem foram os artistas que boicotaram Simonal? Dos que o condenaram publicamente, só mesmo Jaguar e Ziraldo, que eram do jornal Pasquim, aparecem. Num momento especialmente emocionante, o clarinetista Paulo Moura reconhece que não teve coragem de furar o bloqueio. E o contador torturado, estopim de toda a tragédia, aparece pela primeira vez e aproveita a chance para dizer que nunca perdoou o cantor. Nem ele, nem os outros.
E os outros? Quem foram? Será que se arrependeram ou ainda mantêm o ‘veto’? Elegantemente, Max de Castro e Simoninha deixam o veredito à consciência de cada um. A trajetória de Simonal deu um nó, não apenas em sua carreira vitoriosa, mas no posicionamento de quem viveu a época. Poderia servir de lição pros que acreditam no poder divino dos artistas. Da mesma maneira que a foto de um gordo na porta da geladeira serve de incentivo ao regime, a imagem de Simonal no espelho das celebridades poderia servir de aviso: cuidado com o próximo passo, os degraus da fama são irregulares.
P.S. De onde será aquela cena de Simonal com uma Marília Pêra jovem e loira? Da novela "O cafona" (1971)?

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Os tios e as tias do Caetano


É muito complicado escutar o último CD de Caetano Veloso quando se está dirigindo. A vontade de pular faixas é irrefreável e pode se tornar tão perigosa quanto tomar uns chopes antes de ligar o carro. Mas “Zii e Zie” – esse é o nome do disco – tem momentos bem legais. Talvez valha a pena copiar e fazer um outro CD, eliminando as besteiras e colando com as coisas legais de “Cê”, o disco anterior (que também tem bobagem, mas menos).
A primeira faixa, “Perdeu”, é legal. A segunda, “Sem cais”, é bem ok, aí a coisa começa a degringolar. Chega em “Lobão tem razão” – e você precisa se controlar para não encostar o carro e pular aquela faixa para sempre. Se queria fazer média com um de seus mais contundentes críticos, Caetano poderia usar o próprio blog, enviar um e-mail, um twitter, talvez até dar um telefonema. Não precisava dividir com o público esse momento constrangedor. “Mais vale um lobão / do que um leão”... Tem dó da gente, Caetano.
“A cor amarela” é bem legal e minha memória combalida pelo tempo não me deixa lembrar de que programa ela era trilha sonora. Seria de “Ó pai ó”? A música tem a maior cara de Lázaro Ramos, apesar de falar de “uma menina preta, de biquíni amarelo, que onda, que onda que dá, que bunda...” Lázaro é preto, mas não é menina e sobre sua bunda... bom, o Caetano mesmo preferiu elogiar a bunda do Tony Garrido numa entrevista recente à Playboy. Mas a música tem uma levada baiana gostosa, uma coisa meio Barraca do Loro, na Praia do Flamengo... ô beleza.
“A Base de Guantánamo” é outro momento chato pra caramba. Caetano quer mostrar que lê jornal e tem opinião formada sobre a situação mundial. Ok. Acho bacana, mas ele já fez isso em discos anteriores e de forma mais criativa. “Ele me deu um beijo na boca”, do começo dos anos 80, ainda é um libelo forte. “Guantánamo” só não é a música mais chata do disco, porque Caetano compôs “Tarado ni Você” – essa é imbatível. As três palavras – vá lá, duas e meia – do título resumem praticamente a letra toda.
Os melhores momentos de “Zii e Zie” não foram escritos por Caetano. São os sambas “Incompatibilidade de Gênios”, da dupla João Bosco e Aldir Blanc, e “Ingenuidade”, de Serafim Adriano. Ambas foram gravadas nos anos 80 por Clementina de Jesus, mas as versões de Caetano não fazem feio. Ele continua um ótimo cantor, de voz agradável e trabalhada. E a maneira seca com que canta o samba de Bosco/Blanc traduz e moderniza a música.
Desde “Cê”, Caetano Veloso vem se cercando de músicos jovens – alguns, parceiros de seu filho Moreno – no que fez muito bem. A sonoridade desses discos aproximou o sexagenário Caetano de uma turma mais habituada a bandas de garagem... Mas não era preciso ‘rejuvenescer’ as letras. Se a coisa funcionou melhor em “Cê” – “Rocks” nasceu de um papo com um dos filhos mais novos e é uma delícia – a fórmula dá umas rateadas em “Zii e Zie”. Talvez seja porque, desta vez, Caetano quis adaptar o som da banda ao seu jeito recôncavo de ser. Não colou.
De todo modo, é bom escutar o trabalho de um dos nomes que ajudaram a construir a música brasileira. Egocêntrico, pavão, barraqueiro – mas acima de tudo, um letrista refinado e cantor impecável, Caetano não deixa a peteca cair e forma ao lado daqueles artistas para quem o tempo que passa não significa desistência ou conformismo. Às vezes, ele até exagera em mostrar energia – como na insistência atual em falar de sexo. É como se o velho baiano quisesse provar pra moçada que ele ainda dá no couro. Mas como o homem escreve bem, sempre rende umas imagens legais – “Veio a maior cornucópia de mulheres / todas mucosas pra mim”, da canção “Odeio”, é muito legal. Mas é do cd anterior...

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Três meninas do Brasil


Aos 9 anos, Karina Ferrari, a Anusha de “Caminho das Índias”, dança com graça e leveza. Aos 7 anos, a pequena Maísa assusta-se com um monstro de mentira, corre, bate a cabeça e chora em rede nacional. Aos 8 anos, uma bala cortou qualquer possibilidade de Gabriela seguir ou contestar os caminhos que seus pais traçaram para ela. A dor profunda de uns e o silêncio patético de outros são reais, quase palpáveis de tão incômodos. Anusha continua dançando, inocente e sem culpa do que aconteceu às meninas que podiam ser suas colegas de escola, quem sabe vizinhas que, de brincadeira, imitassem seus passos graciosos na novela...
De Gabriela, pouco se sabe, a não ser o trágico. Durante um assalto, um dos ladrões irritou-se com o alarme e disparou, atingindo a menina na cabeça. Até então, nenhum de nós tinha ouvido falar na menina que morava em Rio Claro, tratada como princesa pelos pais: vivia num condomínio fechado, aparentemente distante da violência que ameaça casas e prédios comuns. Alguém facilitou a invasão, as câmeras de segurança não tiveram utilidade – e a menina morreu. Seu assassino, até este momento desconhecido, talvez estivesse drogado, talvez pensasse que um revólver é como o botão de um game, aperta-se e pronto. Não era.
Sobre as crises de choro da pequena Maísa – uma menininha igual a tantas outras, com pose de anã, criadora de gracinhas que fazem vovó dar risada – só uma coisa me impressiona: o silêncio dos pais. O que os impede de vir a público? O contrato draconiano assinado com Silvio Santos, que proíbe a menina de ser vista em qualquer lugar que não seja a tela do SBT? Os 20 mil reais que caem todo mês na conta da família, suficientes para garantir uma boa vida pra todo mundo e abafar qualquer choro da menina? Ver o Brasil inteiro rindo das lágrimas de sua filha não abala o coração dessa mãe, desse pai?
Os pais de Gabriela cercaram a filha de cuidados – mas o que se convencionou chamar de mundo real invadiu o condomínio, como o mau cheiro da carniça que apodrecia além dos muros. Os pais de Maísa preferiram exibir a filha no alto da cerca, como um miquinho amestrado. A patuléia do lado de lá, aquela que habituou-se ao fedor da carniça, ri da menina, dos seus chistes irreverentes – não porque ela seja irreverente, mas porque apenas fala o que vem à telha – e não vê nada demais em continuar rindo, mesmo quando a menina se machuca e chora. Faz parte – não do circo, que é legal – mas do arremedo de picadeiro em que vivem essas pessoas.

Agora, vem o ministério público e chama o SBT às falas. Demorou pra tomar uma atitude. Provavelmente os que deveriam cuidar do bem estar das crianças se divertiam com as gracinhas da menina. Aliavam-se aos pais gananciosos e ao apresentador senil, fazendo de suas risadas o som de realejo que estimulava a menina a ser mais engraçadinha.

Pouco importa que, daqui a algum tempo, a menina cresça, perca a graça e, com isso, o emprego. Pouco importa que ela acredite que o mundo é um auditório, onde qualquer coisa possa ser dita. Quem se importa com os limites que o mundo vai, de surpresa, impor à ex-engraçadinha? “Quando chegar a hora, a gente resolve”. Numa trágica contradição, foi o mundo que quebrou os limites do universo de Gabriela...
Enquanto isso, Karina Ferrari arregala seus lindos olhos de bambi, move as mãos com delicadeza e dança, leve como uma pluma. Não haveria nada de errado com a menina que dança, sob a proteção rica dos pais de ficção, se não se insinuasse ali um ensinamento perigoso: Anusha vai quebrar as tradições indianas e ensinar aos telespectadores que nossos costumes, sim, é que são civilizados. Tão civilizados quanto a morte de Gabriela e o choro que provoca risos de Maísa.

terça-feira, 19 de maio de 2009

Corpos Ardentes


A vida da delicada Wong Chia Chi não é bolinho, na China dos anos 30, ocupada pelo Japão. Atriz amadora de um grupo de teatro transmutado em célula revolucionária, a moça rifa a própria virgindade em nome de uma causa maior: o assassinato do traidor dos chineses, o tenebroso Senhor Yee. Começa mais ou menos assim a história de “Desejo e Perigo”, o filme de Ang Lee que acaba de estrear por aqui. Poderia ser uma história de espionagem, um conto de guerra, uma saga revolucionária – mas, como é um filme de Ang Lee, é uma história em que o sexo dá novo rumo à coisa.
Chia Chi e Yee tornam-se amantes. Mais que isso, tornam-se cúmplices e parceiros de jogos sexuais ousados, quentes, arrepiantes. Nutrem um desejo incontrolável pelo corpo do outro, exploram todas as possibilidades eróticas – e em nenhum momento, pronunciam a palavra ‘amor’. A única vez em que o sentimento parece tomar conta do olhar da chinesinha é quando ela vê, pela última vez, o homem que ela realmente amou. É assim mesmo, num tom melodramático, porque o filme – apesar das batalhas sexuais filmadas com requintes realistas – é um grande filme de amor.
“Desejo e Perigo” veio na sequência de “O Segredo de Brokeback Mountain” e, talvez por isso, tenha tamanha semelhança: o desejo sexual como impulsionador de mudanças. No caso dos caubóis, a vontade sexual desdobrou-se até atingir um amor aparentemente não realizado – do ponto de vista físico, ele se realizou, sim. O que os caubóis não conseguiram foi viver juntos, criar um lar, uma estrutura mais burguesa.
No caso dos chineses, é a mesma coisa – mas, desta vez, Chia Chi quase chega lá. Ela tem pelo homem com quem atinge níveis absurdos de prazer uma relação de carinho, quase dependência. Mas não deixa nunca de ter em mente que seu objetivo é eliminar aquele traidor. Quando o filme toma o rumo que toma, a platéia pode até pensar: “Ah, ela se apaixonou!”. Mas o famoso olhar pro jovem ator... um olhar doído de paixão frustrada, porque ele nunca teve coragem de se manifestar... esse olhar derruba a imagem da menina que se apaixonou a partir do sexo.
Ang Lee, de uma certa maneira, coloca as coisas em seus devidos lugares. Dá pra ter muito prazer sexual com alguém que não seja o seu grande amor? Ele acha que dá. Mas isso não é tão simples quanto parece: o desejo, manifestado e levado à prática, é subversivo. Mais que sentir tesão por um homem que despreza, Chia Chi permite que aquele homem explore e faça-a descobrir um arrepio que nenhum dos seus jovens amigos idealistas conseguiu.
Quando se permitem sentir na prática o que efetivamente sentem na teoria, os personagens de Ang Lee – heróis românticos, no fundo – crescem diante dos nossos olhos. Quando derrubam a cerca que demarca as fronteiras sexuais – homo ou hétero, casado ou adúltero, violento ou delicado – eles mostram que há uma orquestra em nós, espalhada entre a raiz dos cabelos e a planta dos pés. Prontinha pra tocar.
Nós, que muitas vezes nem ousamos dar o nome certo ao que sentimos, temos inveja daqueles que se atiram de cabeça no que a vida lhes oferece. Nos filmes de Ang Lee, o sexo é uma metáfora até meio óbvia para os caldos que fervem dentre de nós. Mas é também sexo bem filmado. Duvido que não passe pela cabeça de alguém a lembrança de uma tarde tão “quente” ou, pelo menos a vontade de que tenha havido uma... Se há algo que esses personagens nos ensinam é que, na cama, adiar é perder.
O mais engraçado é que, ao longo de quase três horas de filme, pontuado aqui e ali por vigorosos embates sexuais, o suspiro mais profundo que se escuta é quando o joalheiro exibe o belo anel que Chia Chi ganhou de presente. Aquilo deve ter dado uma inveja braba em muita gente...

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Quem lê tanta notícia?

A gente ainda agradece a Deus por não ser cego e poder ler certas coisas. Foi julgado nesta quinta-feira o rapaz que esquartejou a inglesinha em Goiânia. Uma das primeiras testemunhas de defesa foi a namorada dele – uma prejudicada cerebralmente de 19 anos, mãe de um filho do sujeito. Diz ela que o rapaz usava crack, cocaína e ainda cheirava gás. E às vezes fazia coisas que ela não entendia. Às vezes. O sujeito cheira gás e esquarteja talvez a única inglesa que pisou em Goiânia nos últimos tempos... e a namorada acha que ele é quase sempre ok.
Mohamed d'Ali dos Santos (esse é o nome dele) foi condenado a 21 anos de prisão. Estavam no tribunal a namorada, o filho (concebido durante uma visita íntima...) e o irmão do assassino, que se chama Bruce Lee dos Santos. Quem batizou os filhos de Mohammed d'Ali e Bruce Lee não sonhava formar uma versão goiana da Noviça Rebelde.
Voltando a Helen, a namorada. O espanto maior é saber que Mohammed conquistou uma namorada. Não que seja novidade: Pimenta Neves, o jornalista que matou a ex-namorada, também encontrou uma companheira depois de baixada a poeira. O que me causa quase um susto é saber que há muitas mulheres dispostas a... A “regenerar” uma alma corrompida pelo crime... Será que essa máxima cristã realmente passa pela cabeça dessas mulheres? Ou será apenas um gesto de desespero de quem já penou muito em busca de um amor e acaba se abrigando debaixo de um telhado, mesmo que muito frágil?
Será que acontece isso com os homens? Alguém imagina um sujeito querendo levar a Lorena Bobbit pra cama? Aliás, alguém lembra da Lorena Bobbit? Era uma equatoriana, que morava em Virgínia (EUA), e que em 1993 decidiu acabar com as puladas de cerca do marido, cortando justamente a varinha que ele usava pra saltar. Ela não só cortou, como jogou num terreno baldio – o que mostrava o pouco apreço que nutria pela parte seccionada. O marido, que se chamava John Wayne Bobbit, teve uma sorte do cão: encontraram o pênis e ele foi reimplantado.
A partir daí, Bobbit-pai casou-se duas vezes (e foi preso por agredir as mulheres), trabalhou como ator de filme pornô, foi garçom de puteiro em Las Vegas e motorista de caminhão. Lorena, para minha surpresa, casou-se um ano depois. Mas atenção para o detalhe: ela e o marido só tiveram a primeira filha há 3 anos – 12 depois do casório. Será que o cara hesitou antes de consumar o casamento? Vai saber.
A outra personagem da semana é a auto-transformada em órfã Suzane Richtoffen. Espertamente, seus advogados deixaram passar o dia das Mães e entraram com pedido de redução da pena. Pra quem não lembra, Suzane foi condenada a 39 anos de prisão por participar do assassinato de seus pais. Ela, que já brigou pela herança deixada por suas vítimas, agora recorre à lei para sair da cadeia. Está no seu direito e é bem capaz de conseguir.
Mas eu fiquei pensando: para essa menina, a lei só lhe serve agora. Por que não serviu antes de bolar o crime com o namorado? Imagino que uma menina bem criada e formada em colégios bacanas tivesse alguma noção básica de vida em sociedade – tipo “é muito feio matar papai e mamãe”. Pelo jeito, ela estava distraída no dia dessa aula, mas agora, que interessa, ela soube apelar para a lei.
Ao mesmo tempo que me espantam essas coisas, me admiro ainda mais de chegar a pensar que certas pessoas não têm certos direitos. É como se a lei que reduz a pena servisse para a moça da cela ao lado, mas não para Suzane. Ou que a alegação de problema mental, mesmo que aplicável ao esquartejador de Goiânia, não deveria eximi-lo da culpa.
Escrevo enquanto penso, portanto, sem lógica cartesiana a me guiar. Certos casos notórios despertam em nós uma espécie de vingança genérica, uma lei do olho por olho particular. Isso deve funcionar bem enquanto somos nós os indignados, sem envolvimento pessoal. Mas e se eu sou o irmão da Suzane? Se eu sou mãe da namorada anencéfala do goiano? Pior, e se eu sou um deles mesmos?
Sei não, tem horas que eu acho que minha visão de mundo seria menos complicada se eu não fosse tão polifônico. Se deixasse de lado a mania de dramaturgo, de pensar por todos os personagens da trama e dar argumentos sólidos a cada um, por menos que eu me identifique com ele...
Ao mesmo tempo (olha aí a polifonia de novo!), que graça tem um mundo em branco e preto? Só no cinema e, ainda assim, se for bem fotografado...

terça-feira, 12 de maio de 2009

O negro que não era de Xangai




Sou fã do historiador Boris Fausto. Nunca o entrevistei, não lembro nem mesmo de ter ouvido alguma entrevista sua. Mas li três livros dele, três excelentes livros: “Negócios e Ócios”, sobre as atividades comerciais de sua família, de origem judia, na São Paulo dos anos 30; “História Concisa do Brasil”, que dá uma panorâmica muito legal em temas que ficaram perdidos nas aulas de história do colégio; e o mais recente, “O Crime do Restaurante Chinês”.
Parece título de aventura do Charlie Chan e o conteúdo é quase como se fosse. Mas é um livro de historiador. No carnaval de 1938, um casal chinês e seus dois empregados foram encontrados mortos no interior de um restaurante localizado entre a Praça da Sé e o bairro da Liberdade. O restaurante era do casal, Ho Fung e Maria Akiau. E dos empregados mortos, um era lituano. O suspeito do crime: Arias, um negro vindo de Franca, sem instrução formal sólida, especializado em serviços gerais e doido por bailes de carnaval.
Arias tinha trabalhado no restaurante, daí sua possível ligação com o crime. Sem pistas, envolvida com a comunidade chinesa – então, cerca de 200 pessoas – normalmente fechado aos de fora, a polícia recebeu uma saraivada de críticas da imprensa. Por isso, a entrada em cena do negro Arias foi quase recebida com aplausos entusiasmados. A própria imprensa mudou de opinião: passou a elogiar os policiais e, sem hesitar muito, cuidou de pintar o rapaz de Franca como um assassino bestial.
Acontece que as provas eram frágeis e a confissão só foi obtida depois de um massacre psicológico. Arias não chegou a ser torturado. Para sua sorte, a última moda era aplicar conceitos de antropopsicologia para descobrir criminosos. Testes para relacionar manchas com objetos conhecidos e outras do gênero foram aplicadas a Arias – e disso tirou-se a conclusão: ele era o culpado. Alegava inocência, mas oras...
Arias teve duas fadas em seu caminho: um advogado em início de carreira, cheio de gás e ambição; e o jogador de futebol Leônidas, um negro que brilhava na então novata seleção brasileira, que disputava uma Copa do Mundo na França. Leônidas nunca botou os olhos em Arias e vice-versa. Mas o fato de ser um negro dando orgulho ao país ajudou a tornar a imagem de Arias menos diabólica.
Foi mesmo uma mistura maluca de racismo com orelhadas científicas, temperada por uma imprensa tão farta em elogios quanto preguiçosa em apurar a verdade. Julgado duas vezes e inocentado nas duas, por falta de provas, Arias passou quatro anos preso – e ainda teve de recorrer ao advogado para conseguir sua carteira de motorista de volta e poder trabalhar. É a última notícia que se tem dele. O monstro de 1938 desapareceu na neblina da história e só foi ressuscitado pelo trabalho primoroso de Boris Fausto.
Nascido em 1930, Boris explica no último capítulo o que o levou a contar essa história. É uma linda explicação, aqui mantida em sigilo. O livro é uma belíssima aula de micro-história, aquela corrente de pesquisa que busca em fatos específicos uma explicação para algumas épocas. Ao terminar o livro, você fica com uma imagem muito clara de como “funcionavam” as teorias raciais da virada do século – cinqüenta anos antes ainda havia escravos e certamente não foi uma canetada da Princesa Isabel que varreu o racismo para debaixo do tapete.
Mais que ajudar a entender uma época, na qual nem nossos pais eram nascidos, o livro de Boris Fausto nos faz pensar na época em que vivemos. Em que o racismo travestido de normas politicamente corretas continua imperando. Em que ‘amarelos’ podem ser mortos entre eles, sem que ninguém tome conhecimento. Em que pobres, mesmo inocentes, criem mofo nas prisões, ocupando (contra a vontade) as vagas que seriam de jovens endinheirados, geralmente de pele alva e roupa da moda. Em que alguém acha que negros só conseguem entrar numa faculdade se tiverem o caminho ‘facilitado’ por cotas raciais. Em que qualquer povo de costumes diferentes é retratado como débil mental nas novelas.
Livro de história bom é assim: explica o presente.

domingo, 10 de maio de 2009

Meninos, eu vi





Procura-se lembranças, cacos de memória, recordações. Estamos buscando nossa história recente, ainda espantados de sermos nossos próprios objetos de estudo. O sucesso dos festivais de documentários poderia ser um indício, mas está longe de ser o único. Em cartaz no auditório do Sesc Pinheiros até 6 de junho, a peça "Mediano", escrita por Otávio Martins e estrelada por Marco Antonio Pâmio, resume em apenas uma hora os últimos 30 anos da política brasileira. A cada etapa vivida por Zé Carlos, o protagonista, o público vai se reconhecendo: nós também passamos por aquilo, nós velamos Tancredo, nós saímos à rua contra Collor, muitos foram fiscais do Sarney e inúmeros duvidariam que Lula um dia virasse presidente.




O que torna a peça um exemplar muito bem acabado de humor negro é que suas melhores piadas são reais. Zé Carlos é aquele sujeito que qualquer madre superiora de um colégio de freiras definiria como "um escroto". Espécie de Zelig tropical, ele soube se adaptar a todas as circunstâncias e nem por isso dá mostras de constrangimento. A vida quis assim, pronto. Nas mãos de um diretor menos experiente e interpretado por um ator menos talentoso, a peça correria o risco até de virar esquemática, pelo menos para os mais velhos, os que passaram por tudo aquilo.




Com a devida licença de Naum Alves de Souza (o diretor) e de Otávio (o autor), é Marco Antonio Pâmio que nos cata na platéia e nos leva pela montanha russa que foi a história recente do Brasil. Dizer que é um ator em estado de graça, além de clichê, seria injusto. "Estado de graça" pressupõe uma bênção, um momento mágico transcendente - e, não, Pâmio não é nada transcendente. No palco, está um ator com total consciência de cada gesto, de cada mínimo movimento, de cada sílaba do texto. Quem aposta só na intuição e descuida da inteligência cênica, precisa correr: Pâmio dá uma aula prática e deliciosa de como seduzir o público com uma atuação magnética. Não é qualquer um que vive 17 personagens sem tirar a gravata ou tendo apenas uma bíblia como adereço.




Devo confessar que entrei no auditório com medo de uma saraivada de críticas conservadoras ao governo de Lula - não seria a primeira vez que Otávio e eu discordaríamos politicamente, sem que isso abale amizade ou admiração. Lula merece, sim, infinitas e severas críticas, mas o autor escapa da armadilha que volta-e-meia encaçapa gente como Juca de Oliveira: Lula parece mais condenável por ser um operário que galgou o poder do que um presidente que governa com métodos tristemente discutíveis. Em "Mediano", sobram farpas para todos - da direita mais furiosa à esquerda mais barbudinha. Algumas críticas chegam a doer, de tão verdadeiras. E não se perde de vista, em nenhum momento, que Zé Carlos é um sujeito como eu e você. Tem família, sofre, chora, se rebela, se conforma, enterra os pais e protege os filhos.




No fundo, há em "Mediano" - um título que pode até afastar, por lembrar algo meia-boca - um fio que o liga a outras atrações recentes, todas tendo a história como trilho condutor. No ano passado, quando Fábio Torres e eu escrevemos o musical "Prepare seu coração" para a Turma 57 da EAD (Escola de Artes Dramáticas da USP), queríamos contar a história da platéia dos festivais de música popular brasileira realizados entre 1966 ("A Banda" e "Disparada") e 1968 ("Sabiá", "Caminhando", "É proibido proibir"). Conforme a escrita avançava e a peça se erguia, dirigida por Iacov Hillel com uma direção musical sublime de Carlos Bauzys, percebemos que havia ali um pedaço importante da história brasileira - era a história de uma juventude, que saiu da Jovem Guarda pras músicas de protesto, acompanhando o país, que mergulhava cada vez mais fundo na ditadura militar. A reação da platéia, durante a temporada, provou que nossa intuição estava certa: o público se emocionava, alguns viam a própria história no palco, e os mais jovens descobriam que seus pais tinham algo interessante pra contar.




A mesma sensação tomou conta de mim quando assisti ao documentário "Titãs, a vida até parece uma festa", dirigido por Branco Mello e Oscar Rodrigues Alves. Contando a história da banda, o filme resumia muito do que tinha vivido o país a partir dos anos 80. Os militares saíam de cena, mas algo fervia entre os jovens que não tinham passado pela repressão e pela luta armada. Era como se a História maior se reproduzisse em escala reduzida nas aventuras de uma banda de rock. Da mesma maneira que se reproduzia nos personagens de "Prepare seu Coração" ou nos vaivéns políticos de Zé Carlos, o personagem de "Mediano". Nossa história está aí, querendo ser contada. E melhor ainda, há um público que quer assisti-la. Cabe aos artistas contar um pedacinho que seja...


quinta-feira, 7 de maio de 2009

Antes que proíbam as letras...



Ex-fumante há 12 anos, mas eterna e radicalmente tentando colocar na prática meus ideais democráticos, acordei hoje com uma música de Maria Bethânia na cabeça. É um bolerão de 1952, que a baiana regravou pelo menos duas vezes. A letra, que poderia ser definida como a revanche da dor de corno, deveria ser regravada hoje, em tempos tucanos.


É bom entrar num ambiente livre de fumaça de cigarro? É. Mas é detestável pensar que isso não se deu por consciência dos fumantes, mas por uma imposição tão absurda que até atores em cena estão proibidos de fumar! Daqui a pouco, o Serra vai proibir veiculação dos filmes de Bette Davis e Humphrey Bogart, que fumavam com charme e simpatia, sem ninguém pra torrar a paciência.


Proibir personagens de fumar em cena é de um stalinismo assustador. Os militares que baixaram o AI-5 e sumiram com meio mundo na época da ditadura também diziam pensar no bem geral... Mas do (já eleito pela imprensa) "futuro presidente do Brasil" ninguém fala nada.


A lei atinge petistas e tucanos, malufistas e anarquistas... mas a letra de Aylce Chaves e Paulo Marques é dedicada com especial carinho aos meus amigos tucanos fumantes. Com vocês, na voz quente de Maria Bethânia (vai pro youtube!)... "Lama".





Se eu quiser fumar, eu fumo;


se eu quiser beber, eu bebo;


não interessa a ninguém.


Se o meu passado foi lama,


hoje quem me difama


viveu na lama também.





Comendo a mesma comida,


bebendo a minha bebida,


respirando o mesmo ar.


E hoje, por ciúme ou por despeito,


acha-se com o direito


de querer me humilhar.





Quem foste tu, quem és tu,


não és nada.


Se na vida fui errada,


tu foste errado também.


Se eu errei, se pequei, não importa.


Se a esta hora estou morta


pra mim morreste também.






Desnecessário dizer que os dois últimos versos resumem minha opinião sobre o Serra.

p.s. Mas o governo do Lula também tá uma beleza. Agora cismaram que autor não é digno de receber pela lei Rouanet. Tem uma reportagem do Jotabê Medeiros no Caderno 2 de hoje. Em breve, retornarei ao tema.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

De cultural virado pra lua

Gilberto, o Alcaide, deve ter acordado radiante nesta segunda-feira. Nem mesmo o mau cheiro que tomou conta do centro de São Paulo - caso tenha chegado ao seu gabinete ou mesmo ao seu carro - tiraria de Gilberto a sensação de vingança bem realizada... A Virada Cultural deu certo.

Mais uma vez, a longe noite de shows e performances tomou conta das ruas paulistanas e atraiu uma multidão muito alegre e nada ordeira, como são todas as multidões. O noticiário, normalmente mais simpático às canetadas serristas, chegou a reclamar da redução de verbas e, por extensão, de atrações. Realmente, fez falta um palco como o que havia perto do Copan, em 2008, ocupado pelas novas cantoras em shows quase intimistas, se é que o termo é possível.

2009 teve menos atrações, havia um intervalo muito grande entre uma e outra - e o número de banheiros foi pequeno para tanta gente descarregando cerveja, vinho e até água. Tava difícil, realmente, mas vamos e venhamos. Nem na Dinamarca você consegue reunir 4 milhões de almas, boa parte delas aditivada a álcool, e as ruas permanecerem com cheiro de perfume francês. Podia haver um esquema mais ágil de limpeza, quem sabe, nem sei se é viável.

Reina um silêncio sobre algumas atrações - Marcelo Camala, digo, Camelo, fez seu show? Parece que não, pelo vácuo da imprensa - mas eu tentei me aproximar da Avenida São João pela Rua Vitória e a multidão não deixou... Reginaldo Rossi fez um megashow. Falou mais que a pretinha do leite, mas quando cantava, arrasava. Reginaldo transformou o centro de São Paulo num terreirão nordestino, daqueles onde se chora dor de corno, se dança agarradinho e se ri da cara do artista. Fez o mesmo show que roda o Brasil inteiro, antes mesmo de a Globo reconhecer sua popularidade e levá-lo para dançar no Faustão. Colocou Frank Sinatra, Beatles e Waldik Soriano na mesma bacia e ainda homenageou a tradição gay do Arouche, cantando uma versão de "I will survive" que deixou muita drag no chinelo.

Havia gente de todas as tribos, idades e origens espalhadas pelo centro. Turistas daqui mesmo, garotos em sua primeira incursão madrugada adentro, meninas habituadas aos corredores de shoppings ou, no máximo, às escadas rolantes da Galeria do Rock, desdobravam o mapa e tentavam localizar-se. "Onde fica essa parada da Rua 15 de novembro?" Fãs de Odair José cruzavam-se com os roqueiros mais radicais, paqueravam a tribo eletrônica e cantarolavam preta preta pretinha nas esquinas.

As turmas que nunca saem do centro - os gays sessentões do Caneco de Prata, na Vieira de Carvalho; os autores, atores e groupies da Praça Roosevelt; os garçons e cumins que lotam o Terraço's na Praça 14 Bis - continuavam por lá. O movimento tinha aumentado, mas era como um dia normal pra eles... Exceto os crakeiros e os michês da Rua do Arouche, acho que pouca gente precisou se deslocar. Apenas foram mais pro ladinho e receberam os visitantes.

De novo, a Virada mostrou que São Paulo é viável. A Parada Gay já provou e comprovou que conseguimos reunir multidões sem causar maiores danos - a não ser ao trânsito. A São Silvestre e a Marcha dos Evangélicos também acontecem e só tornam as ruas mais agradáveis, com as pessoas ocupando seus espaços. Na Virada, talvez por que role à noite, o risco parece maior. Também por ser quase que confinada ao centro, onde reina um clima permanente de caos e insegurança, a Virada poderia descambar pro vandalismo.

Poderia - e esse risco parece que paira sobre as cabeças de todos. Ao mesmo tempo, cada um que sai de casa, toma o metrô, o ônibus ou vai a pé até seu palco preferido, quer que tudo dê certo. Quer que a cerveja esteja gelada, que a menina ou menino corresponda à paquera, que o som esteja impecável e que o artista esteja inspirado. E que se volte para casa, com o corpo moído e a alma lavada.

Para tornar tudo mais chique e até justificar a ida à região dos menos favorecidos, uma certa parcela da imprensa e a prefeitura buscam nas Noites Brancas parisienses o modelo inspirador da Virada Cultural. Tem a ver, claro. Mas Recife também realiza algo parecido durante o carnaval: em seu bairro histórico e restaurado, o Recife Antigo, a cidade espalha diversos palcos durante a folia. À noite toda, pode-se ouvir frevo tradicional ou pular ao som do mangue beat mais arretado, tudo na mesma caminhada.

É a convivência colocada em prática, ao ritmo de todas as músicas. Quando aceitamos o som do outro e vemos a alegria com que ele/a deixa a música tomar conta de seu corpo, entendemos que é possível, sim, viver em meio a tantos milhões de pessoas. Quando isso acontece em São Paulo, tão grandona e tão feinha, eu acordo no dia seguinte com a esperança renovada.

p.s. E quando o Corinthians solta o grito de "É campeão", a coisa fica melhor ainda! É nóis na fita, mano!