domingo, 10 de maio de 2009

Meninos, eu vi





Procura-se lembranças, cacos de memória, recordações. Estamos buscando nossa história recente, ainda espantados de sermos nossos próprios objetos de estudo. O sucesso dos festivais de documentários poderia ser um indício, mas está longe de ser o único. Em cartaz no auditório do Sesc Pinheiros até 6 de junho, a peça "Mediano", escrita por Otávio Martins e estrelada por Marco Antonio Pâmio, resume em apenas uma hora os últimos 30 anos da política brasileira. A cada etapa vivida por Zé Carlos, o protagonista, o público vai se reconhecendo: nós também passamos por aquilo, nós velamos Tancredo, nós saímos à rua contra Collor, muitos foram fiscais do Sarney e inúmeros duvidariam que Lula um dia virasse presidente.




O que torna a peça um exemplar muito bem acabado de humor negro é que suas melhores piadas são reais. Zé Carlos é aquele sujeito que qualquer madre superiora de um colégio de freiras definiria como "um escroto". Espécie de Zelig tropical, ele soube se adaptar a todas as circunstâncias e nem por isso dá mostras de constrangimento. A vida quis assim, pronto. Nas mãos de um diretor menos experiente e interpretado por um ator menos talentoso, a peça correria o risco até de virar esquemática, pelo menos para os mais velhos, os que passaram por tudo aquilo.




Com a devida licença de Naum Alves de Souza (o diretor) e de Otávio (o autor), é Marco Antonio Pâmio que nos cata na platéia e nos leva pela montanha russa que foi a história recente do Brasil. Dizer que é um ator em estado de graça, além de clichê, seria injusto. "Estado de graça" pressupõe uma bênção, um momento mágico transcendente - e, não, Pâmio não é nada transcendente. No palco, está um ator com total consciência de cada gesto, de cada mínimo movimento, de cada sílaba do texto. Quem aposta só na intuição e descuida da inteligência cênica, precisa correr: Pâmio dá uma aula prática e deliciosa de como seduzir o público com uma atuação magnética. Não é qualquer um que vive 17 personagens sem tirar a gravata ou tendo apenas uma bíblia como adereço.




Devo confessar que entrei no auditório com medo de uma saraivada de críticas conservadoras ao governo de Lula - não seria a primeira vez que Otávio e eu discordaríamos politicamente, sem que isso abale amizade ou admiração. Lula merece, sim, infinitas e severas críticas, mas o autor escapa da armadilha que volta-e-meia encaçapa gente como Juca de Oliveira: Lula parece mais condenável por ser um operário que galgou o poder do que um presidente que governa com métodos tristemente discutíveis. Em "Mediano", sobram farpas para todos - da direita mais furiosa à esquerda mais barbudinha. Algumas críticas chegam a doer, de tão verdadeiras. E não se perde de vista, em nenhum momento, que Zé Carlos é um sujeito como eu e você. Tem família, sofre, chora, se rebela, se conforma, enterra os pais e protege os filhos.




No fundo, há em "Mediano" - um título que pode até afastar, por lembrar algo meia-boca - um fio que o liga a outras atrações recentes, todas tendo a história como trilho condutor. No ano passado, quando Fábio Torres e eu escrevemos o musical "Prepare seu coração" para a Turma 57 da EAD (Escola de Artes Dramáticas da USP), queríamos contar a história da platéia dos festivais de música popular brasileira realizados entre 1966 ("A Banda" e "Disparada") e 1968 ("Sabiá", "Caminhando", "É proibido proibir"). Conforme a escrita avançava e a peça se erguia, dirigida por Iacov Hillel com uma direção musical sublime de Carlos Bauzys, percebemos que havia ali um pedaço importante da história brasileira - era a história de uma juventude, que saiu da Jovem Guarda pras músicas de protesto, acompanhando o país, que mergulhava cada vez mais fundo na ditadura militar. A reação da platéia, durante a temporada, provou que nossa intuição estava certa: o público se emocionava, alguns viam a própria história no palco, e os mais jovens descobriam que seus pais tinham algo interessante pra contar.




A mesma sensação tomou conta de mim quando assisti ao documentário "Titãs, a vida até parece uma festa", dirigido por Branco Mello e Oscar Rodrigues Alves. Contando a história da banda, o filme resumia muito do que tinha vivido o país a partir dos anos 80. Os militares saíam de cena, mas algo fervia entre os jovens que não tinham passado pela repressão e pela luta armada. Era como se a História maior se reproduzisse em escala reduzida nas aventuras de uma banda de rock. Da mesma maneira que se reproduzia nos personagens de "Prepare seu Coração" ou nos vaivéns políticos de Zé Carlos, o personagem de "Mediano". Nossa história está aí, querendo ser contada. E melhor ainda, há um público que quer assisti-la. Cabe aos artistas contar um pedacinho que seja...


5 comentários:

  1. Mário, escrevo de todo o coração: poucas pessoas me atingem tão profundamente com as palavras como você. Nós sabemos o quanto somoa críticos e sinceros, e o preço que pagamos por isso. É o que me faz ser seu admirador e amigo. Muito obrigado.

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  2. Com certeza vou ver a peça. O Otávio é um jovem autor e eu não conheço o texto dele, mas vindo com sua indicação, eu compro de olhos fechados. Mas se for uma merda Mário, você me paga!!!! (brincadeirinha...)

    Uma coisa é certa: Peça do Juca de Oliveira não vou nem que me paguem..... Já sei o que vou ver antes de sair de casa e sei quem vou encontrar no teatro. Cansei desse povo segal-emplumado. Não tenho mais idade pra isso....

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  3. Mário,
    Deu hoje no site da Caros amigos. Tem tudo a ver com o que vc escreveu aí em cima. O texto é longo mas vale a pena ser lido:

    DITADURA MILITAR
    Uma missa para o torturador

    Celebração dos 30 anos da morte do delegado Sérgio Fleury, torturador da ditadura civil-militar, reúne cerca de 70 pessoas em São Paulo

    Uma coroa de flores com o formato e as cores da bandeira nacional enfeita o altar da igreja Nossa Senhora de Fátima, no bairro do Sumaré, capital paulista. Penduradas nela, pequenas faixas com os dizeres, "ordem e progresso" e "herói nacional". Ao centro, a foto do delegado Sérgio Paranhos Fleury, um dos maiores torturadores da ditadura civil-militar (1964-1985), morto há 30 anos.

    Cerca de 70 pessoas, entre parentes, amigos, delegados aposentados, representantes da TFP (Tradição, Família e Propriedade) e agentes do serviço reservado da polícia celebraram na noite de quarta-feira (6), o aniversário de três décadas de falecimento de Fleury. Entre eles, estava o delegado aposentado Carlos Alberto Augusto, conhecido como Carlinhos Metralha.

    Augusto, torturador temido nos porões do regime, integrou a equipe de Fleury e convocou a missa pela internet: "familiares, amigos, ex-policiais do DOPS e informantes contam com sua presença à missa".

    Um dos policiais do serviço reservado trajava calça jeans, jaqueta e boné, lembrava o Lula sindicalista do ABC, com sua barba grande. Não fosse pelos abraços calorosos que distribuía entre os presentes, poderia imaginar tratar-se de um militante da esquerda que sofreu na pele as agruras da ditadura. Ciro Moura, ex-candidato a prefeito, nas últimas eleições, pelo PTC (Partido Trabalhista Cristão), que herdou o número da legenda de Collor, foi o único político a comparecer à cerimônia.

    Antes do início da celebração, do lado de fora da igreja, velhos amigos conversavam animadamente, enquanto era distribuído um panfleto com a foto do homenageado e os seguintes dizeres: "Sua morte deixou em nós uma lacuna impreenchível. Só o tempo poderá atenuar a sua perda irreparável para a sociedade brasileira. Dr. Fleury ficará na memória de todos, a sua inesquecível figura que tanto bem semeou. À sua passagem, sempre cumprindo ordens superiores e defendendo a sociedade". Entre os carros luxuosos que entravam ao estacionamento, havia adesivos colados. Em um se lia referência ao General Heleno, comandante militar da Amazônia. Outros adesivos faziam alusões à defesa do porte de armas.

    Os presentes à missa do “herói nacional”, a maioria homens, vestiam terno e tinham cabelos brancos. Alguns mais novos, de terno e gravata, usavam broches com a bandeira do Brasil. As poucas mulheres, de cabelos tingidos de loiro ou ruivo, maquiagem pesada, salto alto, meia calça, terninho.

    A missa foi celebrada por Frei Yves Terral, que, durante a homília, afirmou que "Fleury teve, há 30 anos, uma feliz ressurreição" e que "estamos reunidos hoje para lembrar sua memória, e não deixar a história morrer". Durante a cerimônia, que teve início às 19 horas e durou 28 minutos e 45 segundos, o religioso disse frases como: "nós amamos Fleury", "Deus ama Fleury" e "Estamos reunidos para lembrar o ideal do jovem Fleury, lembrar que ele tinha um ideal". Na hora do Pai Nosso, Frei Yves pediu aos presentes que orassem "em nome de Jesus e Fleury".

    Yves Terral é um franciscano, da ordem co-irmã a dos freis dominicanos, Tito, Fernando e Ivo barbaramente torturados pelo delegado Fleury.

    O delegado Sérgio Fernando Paranhos Fleury morreu em 1º de maio de 1979, na Ilhabela, litoral norte paulista, de forma misteriosa. Pouco depois de comprar um iate, supostamente caiu no mar e se afogou ao saltar de uma embarcação para a sua.

    As autoridades policiais da época mandaram que seu corpo fosse enterrado sem ser submetido a necropsia. Fleury estava à frente do Dops (Departamento de Ordem Política e Social), um dos mais temidos órgãos da repressão, e era o responsável por assassinatos e torturas que ocorriam no local.

    O delegado ganhou "notoriedade" quando chefiou o Esquadrão da Morte, milícia clandestina formada por policiais que coalhava de corpos de supostos bandidos os terrenos baldios da periferia de São Paulo e do Rio de Janeiro. Fleury liderou, ainda, o fuzilamento do guerrilheiro da Ação Libertadora Nacional (ALN), Carlos Marighella, na Alameda Casa Branca, em São Paulo, em 1969.

    Por Lúcia Rodrigues e Tatiana Merlino

    Da Caros Amigos

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  4. Olha só, que curioso. Será q esse frei Yves sabia de quem se tratava? Outro dia fui ao velório de um sujeito bem inútil, mesmo. O padre veio encomendar o corpo e fez tantos elogios que a audiência, inclusive os filhos do falecido, começaram a rir, pq não combinava...

    No dia que o Fleury morreu eu estava ajudando um grupo de teatro de rua, bem militante, a se apresentar na Vila Sabrina. A notícia chegou no meio da apresentação e foi saudada com muitos gritos de alegria...

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