terça-feira, 19 de maio de 2009

Corpos Ardentes


A vida da delicada Wong Chia Chi não é bolinho, na China dos anos 30, ocupada pelo Japão. Atriz amadora de um grupo de teatro transmutado em célula revolucionária, a moça rifa a própria virgindade em nome de uma causa maior: o assassinato do traidor dos chineses, o tenebroso Senhor Yee. Começa mais ou menos assim a história de “Desejo e Perigo”, o filme de Ang Lee que acaba de estrear por aqui. Poderia ser uma história de espionagem, um conto de guerra, uma saga revolucionária – mas, como é um filme de Ang Lee, é uma história em que o sexo dá novo rumo à coisa.
Chia Chi e Yee tornam-se amantes. Mais que isso, tornam-se cúmplices e parceiros de jogos sexuais ousados, quentes, arrepiantes. Nutrem um desejo incontrolável pelo corpo do outro, exploram todas as possibilidades eróticas – e em nenhum momento, pronunciam a palavra ‘amor’. A única vez em que o sentimento parece tomar conta do olhar da chinesinha é quando ela vê, pela última vez, o homem que ela realmente amou. É assim mesmo, num tom melodramático, porque o filme – apesar das batalhas sexuais filmadas com requintes realistas – é um grande filme de amor.
“Desejo e Perigo” veio na sequência de “O Segredo de Brokeback Mountain” e, talvez por isso, tenha tamanha semelhança: o desejo sexual como impulsionador de mudanças. No caso dos caubóis, a vontade sexual desdobrou-se até atingir um amor aparentemente não realizado – do ponto de vista físico, ele se realizou, sim. O que os caubóis não conseguiram foi viver juntos, criar um lar, uma estrutura mais burguesa.
No caso dos chineses, é a mesma coisa – mas, desta vez, Chia Chi quase chega lá. Ela tem pelo homem com quem atinge níveis absurdos de prazer uma relação de carinho, quase dependência. Mas não deixa nunca de ter em mente que seu objetivo é eliminar aquele traidor. Quando o filme toma o rumo que toma, a platéia pode até pensar: “Ah, ela se apaixonou!”. Mas o famoso olhar pro jovem ator... um olhar doído de paixão frustrada, porque ele nunca teve coragem de se manifestar... esse olhar derruba a imagem da menina que se apaixonou a partir do sexo.
Ang Lee, de uma certa maneira, coloca as coisas em seus devidos lugares. Dá pra ter muito prazer sexual com alguém que não seja o seu grande amor? Ele acha que dá. Mas isso não é tão simples quanto parece: o desejo, manifestado e levado à prática, é subversivo. Mais que sentir tesão por um homem que despreza, Chia Chi permite que aquele homem explore e faça-a descobrir um arrepio que nenhum dos seus jovens amigos idealistas conseguiu.
Quando se permitem sentir na prática o que efetivamente sentem na teoria, os personagens de Ang Lee – heróis românticos, no fundo – crescem diante dos nossos olhos. Quando derrubam a cerca que demarca as fronteiras sexuais – homo ou hétero, casado ou adúltero, violento ou delicado – eles mostram que há uma orquestra em nós, espalhada entre a raiz dos cabelos e a planta dos pés. Prontinha pra tocar.
Nós, que muitas vezes nem ousamos dar o nome certo ao que sentimos, temos inveja daqueles que se atiram de cabeça no que a vida lhes oferece. Nos filmes de Ang Lee, o sexo é uma metáfora até meio óbvia para os caldos que fervem dentre de nós. Mas é também sexo bem filmado. Duvido que não passe pela cabeça de alguém a lembrança de uma tarde tão “quente” ou, pelo menos a vontade de que tenha havido uma... Se há algo que esses personagens nos ensinam é que, na cama, adiar é perder.
O mais engraçado é que, ao longo de quase três horas de filme, pontuado aqui e ali por vigorosos embates sexuais, o suspiro mais profundo que se escuta é quando o joalheiro exibe o belo anel que Chia Chi ganhou de presente. Aquilo deve ter dado uma inveja braba em muita gente...

3 comentários:

  1. Legal, Mario, vou ver.
    Só voltando ao seu comentário sobre Brokeback, filme que adoro, acho injusto chamar de "estrutura mais burguesa" a proposta prática e amorosa do Jack Twist ao amado, de morarem juntos, se protegerem, trabalharem no sitio dos pais dele, que o respeitavam e amavam incondicionalmente.
    O amor deles não se realizou, nem fisicamente, tenha dó, trepar uma vez por ano, escondido na montanha, fingindo que está pescando truta, deve ser terrivelmente frustrante, como registra Jack Twist, em uma cena da maior sinceridade, quase no final do filme.
    Acima de qualquer coisa, para um camarada do tipo do Jack Gyllenhaal não ne nega uma proposta dessas. Só o burrão pós traumático do Ennis Del Mar...
    Será que morar junto, casar é necessariamente aspirar a uma estrutura mais burguesa? Eu não sei ao certo, acho uma questão antiga, mas interessante a se debater.

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  2. Acho morar junto, casar, uma estrutura mais gurguesa, sim!!

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  3. Desde que o casamento foi inventado, ele e o amor nem sempre andaram de mãos dadas. Partindo da premissa de que a burguesia, na Idade Média, viu no casamento um meio de agregar poder e dinheiro, é curioso perceber que até hoje - em tempos pós-românticos, com sexo no atacado e varejo, e egolatria - ainda vemos resquícios desse casamento "conveniente". A questão é: queremos casar ou amar?

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