terça-feira, 12 de maio de 2009

O negro que não era de Xangai




Sou fã do historiador Boris Fausto. Nunca o entrevistei, não lembro nem mesmo de ter ouvido alguma entrevista sua. Mas li três livros dele, três excelentes livros: “Negócios e Ócios”, sobre as atividades comerciais de sua família, de origem judia, na São Paulo dos anos 30; “História Concisa do Brasil”, que dá uma panorâmica muito legal em temas que ficaram perdidos nas aulas de história do colégio; e o mais recente, “O Crime do Restaurante Chinês”.
Parece título de aventura do Charlie Chan e o conteúdo é quase como se fosse. Mas é um livro de historiador. No carnaval de 1938, um casal chinês e seus dois empregados foram encontrados mortos no interior de um restaurante localizado entre a Praça da Sé e o bairro da Liberdade. O restaurante era do casal, Ho Fung e Maria Akiau. E dos empregados mortos, um era lituano. O suspeito do crime: Arias, um negro vindo de Franca, sem instrução formal sólida, especializado em serviços gerais e doido por bailes de carnaval.
Arias tinha trabalhado no restaurante, daí sua possível ligação com o crime. Sem pistas, envolvida com a comunidade chinesa – então, cerca de 200 pessoas – normalmente fechado aos de fora, a polícia recebeu uma saraivada de críticas da imprensa. Por isso, a entrada em cena do negro Arias foi quase recebida com aplausos entusiasmados. A própria imprensa mudou de opinião: passou a elogiar os policiais e, sem hesitar muito, cuidou de pintar o rapaz de Franca como um assassino bestial.
Acontece que as provas eram frágeis e a confissão só foi obtida depois de um massacre psicológico. Arias não chegou a ser torturado. Para sua sorte, a última moda era aplicar conceitos de antropopsicologia para descobrir criminosos. Testes para relacionar manchas com objetos conhecidos e outras do gênero foram aplicadas a Arias – e disso tirou-se a conclusão: ele era o culpado. Alegava inocência, mas oras...
Arias teve duas fadas em seu caminho: um advogado em início de carreira, cheio de gás e ambição; e o jogador de futebol Leônidas, um negro que brilhava na então novata seleção brasileira, que disputava uma Copa do Mundo na França. Leônidas nunca botou os olhos em Arias e vice-versa. Mas o fato de ser um negro dando orgulho ao país ajudou a tornar a imagem de Arias menos diabólica.
Foi mesmo uma mistura maluca de racismo com orelhadas científicas, temperada por uma imprensa tão farta em elogios quanto preguiçosa em apurar a verdade. Julgado duas vezes e inocentado nas duas, por falta de provas, Arias passou quatro anos preso – e ainda teve de recorrer ao advogado para conseguir sua carteira de motorista de volta e poder trabalhar. É a última notícia que se tem dele. O monstro de 1938 desapareceu na neblina da história e só foi ressuscitado pelo trabalho primoroso de Boris Fausto.
Nascido em 1930, Boris explica no último capítulo o que o levou a contar essa história. É uma linda explicação, aqui mantida em sigilo. O livro é uma belíssima aula de micro-história, aquela corrente de pesquisa que busca em fatos específicos uma explicação para algumas épocas. Ao terminar o livro, você fica com uma imagem muito clara de como “funcionavam” as teorias raciais da virada do século – cinqüenta anos antes ainda havia escravos e certamente não foi uma canetada da Princesa Isabel que varreu o racismo para debaixo do tapete.
Mais que ajudar a entender uma época, na qual nem nossos pais eram nascidos, o livro de Boris Fausto nos faz pensar na época em que vivemos. Em que o racismo travestido de normas politicamente corretas continua imperando. Em que ‘amarelos’ podem ser mortos entre eles, sem que ninguém tome conhecimento. Em que pobres, mesmo inocentes, criem mofo nas prisões, ocupando (contra a vontade) as vagas que seriam de jovens endinheirados, geralmente de pele alva e roupa da moda. Em que alguém acha que negros só conseguem entrar numa faculdade se tiverem o caminho ‘facilitado’ por cotas raciais. Em que qualquer povo de costumes diferentes é retratado como débil mental nas novelas.
Livro de história bom é assim: explica o presente.

4 comentários:

  1. Eu quero muito ler esse livro. Pelo que li até agora, e com sua abalizada opinião, vou comprar.

    Só gostaria de lembrar que tem um brancão assassino ainda à solta por aí...... Quem será? tchan tchan tchan...

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  2. Vou parar de ler esse seu blog! O que vou gastar de dinheiro não está no gibi! Vou à peça do Otávio, agora preciso comprar o livro do Bóris Fausto!
    Mário seu texto é primoroso. Ainda bem que resolveu lançar esse pequeno diário. A cada dia sou + sua fã.
    Beijo carinhoso

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  3. Gostei muito do seu post (já adicionei aos favoritos).
    Parabéns aguçou minha curiosidade.

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  4. Puxa, gente, esses elogios me fizeram pensar... Tô fazendo propaganda grátis pra Cia das Letras? Bom, pelo menos o próximo post não vai estimular ninguém a comprar nada. No máximo, um trezoitão...

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