terça-feira, 18 de junho de 2013

O Silêncio no Andar de Cima


            O vento sopra nos palácios. Pelos corredores vazios, tufos de grama seca deslizam fantasmagóricos. Aturdida, a primeira dama - de robe cor-de-rosa, rolinhos e pantufas combinando - arregala os olhos em direção ao marido. O homem da casa, a bordo de um pijama de monograma bordado no bolso, fala para a mulher não acender a luz. "Deixa eles pensarem que nós estamos dormindo. Ou que não tem ninguém em casa." Ela, a ingênua, ainda pergunta: "Você não vai falar com eles?". Ele, veloz: "Tá louca? Deixa assim. Eles cansam e vão embora."
            Deve ser mais ou menos essa, com pequenas variações, as cenas nos endereços do poder brasileiro nesses últimos dias. A rua se manifesta em altos brados e o Poder se faz de morto. Finge que não escutou. Ou, pior ainda, olha com desdém esses "arroubos juvenis". Há realmente uma técnica de deixar a turba acalmar e tudo voltar ao de antes no quartel do Abrantes. Quase sempre funciona, mas o diabo é que às vezes, não. É preciso ficar de olho.
            Líderes carismáticos não surgem da noite para o dia. Getúlio, Jânio, Maluf, Covas, FHC, Lula. Gostemos ou não desses homens, eles sabiam e sabem cativar seus seguidores. Têm "o dom". Agora, passemos em revista os atuais chefes da tribo - puxando o foco para São Paulo: Dilma, Alckmin e Haddad são herdeiros de figuras de tanta personalidade que a eles sobrou pouco para apresentar.
            Geraldo ainda tem uma experienciazinha maior, há tantos anos no poder. Mas não é por acaso que ganhou o apelido que colou feito tatuagem: Picolé de Chuchu. Dilma e Haddad parecem seguir à risca os conselhos de Lula. Acontece que os silêncios de Lula, devido à trajetória pessoal dele, sempre tiveram mais eloquência do que os silêncios de Dilma e Haddad.
            Nem a presidente nem o prefeito de São Paulo, muito menos o governador, são líderes natos. A falta de postura, a consciência de quem não sabe o que fazer quando a coisa aperta, aparece nessas horas. No começo do mandato, Dilma ainda tentou mostrar-se a "tia" que dá bronca, que não tolera funcionário esculachado, etc. Foi sua lua-de-mel com eleitores cansados do presidente que sacudia a cabeça a cada travessura de seus meninos.
            Acontece que os meninos agora são outros. Vêm das ruas, saíram dos becos e tomaram conta das praças. Começaram reclamando do aumento das passagens de ônibus e levaram como troco os esperados olhares de desdém do andar de cima. A moçada insistiu e o pessoal lá de riba mandou a polícia sentar o pau. Foi o que faltava para que gente que sorria dos "meninos sonhadores" também decidisse ir às ruas.
            A turma dos coroas que foi à rua levou um susto. "Falta liderança", "não existe uma causa específica"... É, amigos, a revolução está chegando e eu não sei o que vestir (título de uma peça de teatro italiana, dos anos 80) - mas é preciso saber ler as novas passeatas surgidas à luz das redes sociais. Nos anos 80, todos vestimos amarelo e fomos reivindicar diretas-já. Pintamos o rosto e fomos exigir a queda de Collor. Eram outros tempos, outros manifestos.
            A falta de uma causa única, devemos agradecer e colocar na conta da Democracia pela qual tanto brigamos. A juventude que está gritando por aí não é uma, é várias. Ou são várias. Cada passeata não quer apenas a redução da tarifa de ônibus, mas exige também a não aprovação da PEC-37, reivindica mais cota pra concursos públicos, defende o aborto e o casamento gay, quer o fim da poluição e o impeachment de todo mundo que está aí. É assim mesmo, uma variedade grande de objetivos (e pra nós, que estamos chegando agora nessas paradas, é bom ficar atento e não ser fotografado ao lado de uma faixa que defende tudo aquilo que você mais abomina).
            Isolados, cada um desses grupos não tem força para atrair muita gente. Unidos numa só passeata, eles atraem mais gente, se sentem mais protegidos e voltam pra casa crentes que, agora sim, o mundo muda. É por isso que não há liderança única. São vários líderes e, com cada um, a conversa tem um tom.
            Com a turma que vai pra passeata disposta a tacar fogo em tudo, a conversa precisa ser mais séria - eu acho - sem que isso acabe em tiroteio, feridos e mortos. Mas, também esse grupo mais incendiário está mandando seu recado aos poderosos: "O que nos revolta é o descaso do Poder."
             Não foi por outro motivo que os alvos atacados ontem, dia de manifestações pacíficas em sua maioria, foram o Congresso Nacional, o Palácio dos Bandeirantes e a Assembleia Legislativa do Rio. A turbinha não tem líder, mas sabe farejar onde viceja o fungo da corrupção.
            Chega de silêncio, Andar de Cima. Não dá mais pra fazer de conta. A coisa é com vocês, sim.

terça-feira, 4 de junho de 2013

Coloridos pigmeus do bulevar


            Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Longe dos 3 milhões de passantes, mas igualmente distante dos 220 mil contados pelo UOL, a Parada Gay deste ano em São Paulo reuniu gente suficiente para um desfile de duas horas ininterruptas. Foi o tempo que fiquei parado na frente do Conjunto Nacional, vendo passar 16 trios elétricos - quase carros alegóricos, de tão enfeitados no andar de cima. Com algumas exceções, como o carro da festa Gambiarra, a maioria dos trios era bancada pelo movimento sindical, numa necessidade quase romântica da organização dar à Parada um tom mais "sério" e menos "carnavalesco".
            Bobagem. No Brasil, a Parada é uma festa e é por isso que atrai tanta gente. Já atraiu mais, é verdade, mas os excessos do passado assustaram. A chuva que despencou na manhã de domingo (não foi, como disseram alguns jornalistas desconhecedores da língua pátria, uma chuva 'intermitente') estimulou muita gente a ficar em casa, no quentinho do cobertor. A violência despoliciada da Virada Cultural também assustou. No fim, foi uma das paradas mais tranquilas, com apenas meia dúzia de mijões presos, acusados de atentado ao pudor. Beira o ridículo a acusação: num desfile em que destaques se cobrem com sungas menores que um dedal, rebolando lascivamente, acusar um mijão de atentado ao pudor é piada. Mais honesto seria prendê-los por sujar a cidade.
            Não houve multidões assustadoras, não houve violência e a equipe de garis limpava as ruas - a Paulista, pelo menos - já durante o desfile geral. O que, então, teria feito a Parada parecer tão reduzida, especialmente aos olhos dos formadores de opinião, mesmo daqueles militantes do movimento gay antenado? Talvez a explicação esteja na "qualidade" de quem veio se divertir na festa. Era "o povo da perifa, de Itaquera, Campo Limpo, Guaianazes, Vila Sabrina"... Era o que a classe média bacana e estudada chama de "gente feia".
            Era mesmo uma população que não se vê nos Jardins - a não ser usando uniformes de faxina, porteiro ou empregada. Eram pessoas vindas de longe - dois ônibus, metrô, trem, tudo junto - para exibir-se na avenida símbolo de uma cidade que também é deles. Quando aqueles meninos e meninas, usando roupas  que só muito vagamente lembram as "de grife", rebolavam os quadris no cruzamento da Paulista com a Augusta, alguma coisa acontecia em seus corações. A cidade era deles, mesmo que apenas durante uma parada.
            No primeiro momento, cheguei a pensar que a visibilidade dos adolescentes gays em bairros distantes da Paulista estava bem avançada. Olhando aqueles rostos maquiados, com perucas meia-boca e boás da 25 de Março, pensei que devia ser muito difícil pra eles fingir um comportamento hétero. Ousada, a molecada dançante. Depois, voltando pra casa, continuei matutando: a barra pra eles continua tão pesada quanto antes, mas talvez agora tenham mais coragem de se expor. Será?
            Isso talvez explicasse aquela "invasão" à Paulista. Era ali, na avenida mais cara de São Paulo, que eles vinham impor a própria cara. Não há espaço melhor, menos agressivo, mais adequado. Protegidos por batalhões de policiais - que não vão bater, nem humilhar, nem nada -, os meninos e meninas com visual pós-andrógino podiam dançar na rua como se não houvesse amanhã. Não haveria mesmo um amanhã igual ao "hoje" daquele momento. Muitos dançavam tão inebriados de si mesmos que pareciam nem ouvir a música que vinha dos trios. Faziam seu próprio ritmo, criavam seus passos, moviam-se no seu mundo interior.
            Faziam, esses meninos e meninas distanciados do "bacana", aquilo que os estudiosos chamam de carnavalização do mundo oficial. Em suas casas lá longe, receberam as notícias de um lugar onde os gays podem vestir uma camisa listada e sair por aí - às vezes, apanhando até a morte, mas isso acontece na rua de baixo também, mas quando é na Paulista vira notícia. Viam a cantora famosa exibir sua companheira e dizer "estou casada com ela" de boca cheia (e nessa hora deu pra sentir que o gesto de Daniela Mercury vai além dela mesma). Era ali, na Paulista, que eles deviam estar.
            Deviam mesmo. O "mundo gay oficial" já cresceu a ponto de poder ser virado do avesso e carnavalizado, sem que seja preciso transformá-lo em personagem caricato de novela. As crianças pintadas e embriagadas nos devolvem - de forma exagerada, over, pantagruélica - o mundo que vendemos pra eles como o mundo certo, sem Felicianos, Franciscos e Malafaias condenando ao fogo eterno. Mas atentemos para o recado que eles trazem: eles não querem ser castigados pelas igrejas, mas também não engolem a ditadura dos cheirosinhos. Sem jeans de grife, sem conhecer Nova York ou badalar no Ritz, eles só querem botar seus blocos na rua. Abram passagem.