terça-feira, 4 de junho de 2013

Coloridos pigmeus do bulevar


            Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Longe dos 3 milhões de passantes, mas igualmente distante dos 220 mil contados pelo UOL, a Parada Gay deste ano em São Paulo reuniu gente suficiente para um desfile de duas horas ininterruptas. Foi o tempo que fiquei parado na frente do Conjunto Nacional, vendo passar 16 trios elétricos - quase carros alegóricos, de tão enfeitados no andar de cima. Com algumas exceções, como o carro da festa Gambiarra, a maioria dos trios era bancada pelo movimento sindical, numa necessidade quase romântica da organização dar à Parada um tom mais "sério" e menos "carnavalesco".
            Bobagem. No Brasil, a Parada é uma festa e é por isso que atrai tanta gente. Já atraiu mais, é verdade, mas os excessos do passado assustaram. A chuva que despencou na manhã de domingo (não foi, como disseram alguns jornalistas desconhecedores da língua pátria, uma chuva 'intermitente') estimulou muita gente a ficar em casa, no quentinho do cobertor. A violência despoliciada da Virada Cultural também assustou. No fim, foi uma das paradas mais tranquilas, com apenas meia dúzia de mijões presos, acusados de atentado ao pudor. Beira o ridículo a acusação: num desfile em que destaques se cobrem com sungas menores que um dedal, rebolando lascivamente, acusar um mijão de atentado ao pudor é piada. Mais honesto seria prendê-los por sujar a cidade.
            Não houve multidões assustadoras, não houve violência e a equipe de garis limpava as ruas - a Paulista, pelo menos - já durante o desfile geral. O que, então, teria feito a Parada parecer tão reduzida, especialmente aos olhos dos formadores de opinião, mesmo daqueles militantes do movimento gay antenado? Talvez a explicação esteja na "qualidade" de quem veio se divertir na festa. Era "o povo da perifa, de Itaquera, Campo Limpo, Guaianazes, Vila Sabrina"... Era o que a classe média bacana e estudada chama de "gente feia".
            Era mesmo uma população que não se vê nos Jardins - a não ser usando uniformes de faxina, porteiro ou empregada. Eram pessoas vindas de longe - dois ônibus, metrô, trem, tudo junto - para exibir-se na avenida símbolo de uma cidade que também é deles. Quando aqueles meninos e meninas, usando roupas  que só muito vagamente lembram as "de grife", rebolavam os quadris no cruzamento da Paulista com a Augusta, alguma coisa acontecia em seus corações. A cidade era deles, mesmo que apenas durante uma parada.
            No primeiro momento, cheguei a pensar que a visibilidade dos adolescentes gays em bairros distantes da Paulista estava bem avançada. Olhando aqueles rostos maquiados, com perucas meia-boca e boás da 25 de Março, pensei que devia ser muito difícil pra eles fingir um comportamento hétero. Ousada, a molecada dançante. Depois, voltando pra casa, continuei matutando: a barra pra eles continua tão pesada quanto antes, mas talvez agora tenham mais coragem de se expor. Será?
            Isso talvez explicasse aquela "invasão" à Paulista. Era ali, na avenida mais cara de São Paulo, que eles vinham impor a própria cara. Não há espaço melhor, menos agressivo, mais adequado. Protegidos por batalhões de policiais - que não vão bater, nem humilhar, nem nada -, os meninos e meninas com visual pós-andrógino podiam dançar na rua como se não houvesse amanhã. Não haveria mesmo um amanhã igual ao "hoje" daquele momento. Muitos dançavam tão inebriados de si mesmos que pareciam nem ouvir a música que vinha dos trios. Faziam seu próprio ritmo, criavam seus passos, moviam-se no seu mundo interior.
            Faziam, esses meninos e meninas distanciados do "bacana", aquilo que os estudiosos chamam de carnavalização do mundo oficial. Em suas casas lá longe, receberam as notícias de um lugar onde os gays podem vestir uma camisa listada e sair por aí - às vezes, apanhando até a morte, mas isso acontece na rua de baixo também, mas quando é na Paulista vira notícia. Viam a cantora famosa exibir sua companheira e dizer "estou casada com ela" de boca cheia (e nessa hora deu pra sentir que o gesto de Daniela Mercury vai além dela mesma). Era ali, na Paulista, que eles deviam estar.
            Deviam mesmo. O "mundo gay oficial" já cresceu a ponto de poder ser virado do avesso e carnavalizado, sem que seja preciso transformá-lo em personagem caricato de novela. As crianças pintadas e embriagadas nos devolvem - de forma exagerada, over, pantagruélica - o mundo que vendemos pra eles como o mundo certo, sem Felicianos, Franciscos e Malafaias condenando ao fogo eterno. Mas atentemos para o recado que eles trazem: eles não querem ser castigados pelas igrejas, mas também não engolem a ditadura dos cheirosinhos. Sem jeans de grife, sem conhecer Nova York ou badalar no Ritz, eles só querem botar seus blocos na rua. Abram passagem.

6 comentários:

  1. Lindo texto, amo sua sensibilidade.
    Ana V.

    ResponderExcluir
  2. Bonito por demais.Faço questão de divulgar para todos meus contatos.

    ResponderExcluir
  3. concordo, parada é uma festa popular pra se divertir. além da chuva, acho que a diminuição do público se deve tb pq o evento perdeu o interesse, deixou de ser novidade. beijos, pedrita

    ResponderExcluir
  4. Mario,
    tive a mesma impressão q vc da Parada, a décima sétima!
    Estava com um amigo mineiro que já morou aqui, mas está de volta a Congonhas/MG há anos. Dizia a ele que o evento virou uma festa da cidade. E "meninos e meninas", como vc bem diz, são mesmo um retrato da nossa periferia e que aproveitam a Parada para 'mostrar a cara'.
    Os discursos no carro oficial foram amenos, com a dona ministra ocupando e não deixando espaço para os demais. Tanto que o prefeito não chegou à Consolação e o aguerrido e combativo Jean Wyllys pouco conseguiu falar.....
    Bjs, saudade!
    Maurício

    ResponderExcluir
  5. Gostei do olhar sobre a parada gay, creio que é mesmo por aí...Reich dizia que a classe abaixo da classe média não tinha problemas com a repressão sexual, e seu texto ilustra a passagem.

    ResponderExcluir