Nosso
horóscopo, como nação, tem somente dois signos: Escárnio e Barbárie. Um está
ligado ao outro, um gera o outro, um consome o outro. E ambos renascem, como
paródia da fênix da mitologia, dos próprios excrementos. Colocar o homofóbico
racista à frente de uma comissão que deveria lutar pelos Direitos Humanos...
colocar um condenado por improbidade na comissão de Ética... Governar fazendo
da patuleia uma enorme torcida figurante, pronta apenas para aplaudir inauguração...
Dar adeus às ideologias e abraçar de vez o casuísmo... Ou, como hoje, culpar os
usuários pelo caos no transporte público da maior cidade do país... Tudo isso é
regra de etiqueta no país do Escárnio.
Poderia
ser apenas um filme B de horror, daqueles que passam de madrugada e não nos
afetam. Mas não é. O escárnio oficial é um fermento fedorento, um bolor que rapidamente
toma conta das juntas morais do país. Vaza dos palácios e chega às ruas, às
lojas e bares, aos lares. E quando se mistura a ele o perigoso tempero do
"pra farinha pouca, meu pirão primeiro", a desgraça está feita.
O
território do Escárnio, então, cede espaço à Barbárie. É do escárnio oficial
que nasce a fama de impunidade, a filosofia do jeitinho, o conceito de que, por
aqui, tem lei que não pega - como semente atirada em terreno de pedra. Quando o
deputado esbraveja que não vai obedecer o juiz do Supremo Tribunal - e nem vou
entrar aqui no mérito do que ordenou o juiz, ele também dado a desvarios
absolutistas - , quando o deputado ameaça ignorar a Lei, não há porque esperar
que um adolescente criado a iogurte e maçã fresquinha tenha de se submeter às
regras. Se o deputado pode, eu também posso - eis o resumo.
Se
o deputado pode ignorar a voz das ruas por que eu devo obedecer o aviso de
desligar o celular no cinema, no teatro, no avião? É meu, eu tenho direito de
usar. Se o vice-governador só se manifesta sobre a violência urbana quando o
carro de sua filha é atingido, por que o filho mimado de um aposentado precisa
se preocupar em socorrer o ciclista atropelado na Avenida Paulista? Só por que
sobrou um braço dele no carro? Oras.
Por
que devemos discutir a redução da maioridade penal? Por que mataram algumas
pessoas de classe média? Enquanto morriam somente os jovens da periferia,
ninguém pensou no assunto... Mas reduzir a discussão a esse maniqueísmo social
é indigência cultural. Como cidadão, eu não sei ainda o que pensar. Argumentos
para os dois lados, há. Ouço, pondero e indecido.
Só
noto, horrorizado, que os crimes crescem em violência e desumanidade. O que
fazer com quem ateia fogo a uma vítima? O que fazer com quem atira a sangue
frio no menino que não reagiu?
Colocá-lo na prisão não vai resolver o problema. Mas deixá-lo impune também
não. A não ser que a ideia embutida na discussão seja adotar de vez e
oficialmente a pena de morte.
Foi
isso que me assustou quando começaram a pipocar os bate-bocas sobre a
maioridade penal. Os mais radicais queriam mesmo era "meter uma bala na
cabeça desses animais"- palavras extraídas de um post no facebook. A
barbárie de lá vai ser combatida com a barbárie de cá, é isso mesmo?
Num
país em que o condenado que já cumpriu sua pena mofa na cadeia, porque a
Justiça esquece de tirá-lo de lá, é bastante arriscado adotar uma medida tão
definitiva quanto a pena de morte. Se não confiamos na Justiça para prender,
tratar e reeducar nossos presos, por que haveremos de confiar na que aplica a
pena capital?
Da
guerra de barbáries, de selvagerias de parte a parte, brota novamente o
escárnio. Defende-se a impunidade de um criminoso cruel e ainda jovem com a
mesma energia com que se advoga o direito do jovem em eleger o presidente e até
em escolher o próprio sexo. Por fim, qual será o critério adotado pra reduzir a
maioridade penal? A julgar pelo comportamento cada vez mais infantil de nossos "jovens"
de 30 anos, a maioridade penal deveria ser ampliada, em vez de reduzida.
Será
essa é a filosofia cínica que nos move? Será que o deus que rege nosso signo é Saturno, o que devorava os filhos recém-nascidos para que não lhe tomassem o trono?
Mário, estamos (infelizmente) em sintonia com a barbárie. Acabei de escrever um texto em meu blog sobre a banalização do mal no Brasil e no mundo e escolhi para ilustrar o texto a mesma imagem que você escolheu, o quadro de Goya. Fiquei abismado com essa coincidência. Segue o link: http://paradiseduluoz.blogspot.com.
ResponderExcluirGrande abraço. Mais um belo texto, como de costume.
Paulo, que loucura coincidente!!!! E que bom estarmos afinados na perplexidade. Ela é que nos manterá humanos.
ResponderExcluirMário:
ResponderExcluirque saudades de suas reflexões, desabafos e ironias!
Tenho pouco a acrescentar, vc foi incisivo e perturbador!
Tb me sinto perplexo sobre os caminhos que a sociedade atual está seguindo!!!!
Só para completar, mais uma disparidade. A diocese excomungou um padre (muito querido entre os fiéis) que se posicionou favorável ao amor entre pessoas do mesmo sexo!
Sem comentários!
bjs e não fique muito tempo longe daqui!
Maurício
Mário, você diz tudo. Ainda bem que escreveu. Muitas vezes a indignaçao é tanta que nem escrevo com receio de ser muito emocional. Mas precisamos tpdos escrever e soltar esse grito contido. Beijocas!
ResponderExcluirFe
Lindo texto e triste situação a que vivemos, Mário.
ResponderExcluirAcho que depois que vencemos a Ditadura, cansamos de brigar e acabamos engolindo coisas inacreditáveis.
Agora temos a tentativa de enfraquecer o Poder Judiciário em benefício de condenados.
Cansa, eu sei que cansa, mas se a cidadania não se mobilizar contra o Escárnio e a Barbárie, em breve, estaremos fritos.
Precisamos da juventude inquieta que parece que desapareceu. Todo mundo morando com os pais e exigindo danoninho na cama, parece.
Parabéns pelo texto, de fato nossa sociedade está maluca, os valores são investidos, Marilena Chauí diz algo nesse rumo, a classe média serve para atrapalhar, quando se sente ameaçada, é pior que a direita convicta...
ResponderExcluirsaudações, Eddy