quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

30 anos e 2 dias


Se é verdade que todo homem é um universo particular, no planeta Mário Viana a cantora Elis Regina ganhou dois dias de sobrevida. Em janeiro de 1982, eu acabava de chegar a Paris no mais perfeito estilo mochileiro: dinheiro não havia, o francês falado era xexelento e o jeito era se virar no subemprego. Fomos morar, Wanderley e eu, no quarto de um amigo pernambucano, no Hotel du Roussillon, Place d`Italie. Era uma verdadeira pensão - por onde haviam passado Alceu Valença, Florestan Fernandes Jr., Geneton Moraes, Ciro Cozzolino e muitos outros -, sem banheiro privativo, nem TV. Telefone, um só, na portaria - para recados.
No dia 21 de janeiro, consegui meu primeiro trabalho - pintar o apartamento de um colombiano que acabara de terminar o casamento com uma brasileira. Munido de um dicionário de bolso, eu li as instruções para aprender a abrir a lata de tinta... Por aí, pode-se imaginar o resultado da pintura: a conterrânea abandonada adorou, o colombiano reclamou que eu tinha deixado o carpete parecendo uma onça (eu li que a tinta era lavável e nem me preocupei em cobrir o chão...). "Vou te pagar só para não ter de ver nunca mais na vida", resmungou o colombiano. Deus ouviu suas preces.
Na hora do almoço, enfrentei a neve e fui encontrar o Wanderley num restaurante universitário próximo à Rue du Moufftard, na parte mais velha de Paris. Eu estava assustado com a primeira manhã de trabalho e ele, meio atônito. "Me falaram uma coisa, eu acho que é mentira", ele começou - havia um toque de carinho no cuidado pra dar a notícia a um fã. "Disseram que a Elis Regina morreu". Eu levei um susto, peguei minha bandeja, sentei. "Mentira". E começamos a almoçar. Eu parava. "Só se foi acidente de carro. Foi acidente?" Ele não sabia, ninguém sabia. Voltamos juntos pro apartamento do colombiano. Entre um e outro golpe de tinta na parede - não vejo outro modo de definir nosso trabalho - descobrimos o telefone do consulado brasileiro e eu liguei. Dois dias haviam se passado desde a morte e o rapaz que me atendeu só sabia confirmar a notícia. A causa, nada.
Em uma semana, começaram a chegar as cartas. No Roussillon, a brasileirada trocava recortes de jornais, revistas, tinha um que ia à loja da Varig roubar jornal antigo, um tinha o Globo, o outro a Folha... Ninguém podia gastar dinheiro em um telefonema ao Brasil e saber o que estava acontecendo... Eram outros tempos, definitivamente. Hoje, saberíamos da morte de Elis antes mesmo do corpo chegar ao IML. Teríamos todos os detalhes, os mais sórdidos, os mais chorosos. Não que isso aliviasse a dor de perder um artista querido. Claro que não. Mas era como um período pra curtir a dor, deixá-la encontrar espaço.
A rapidez das notícias acelerou também a velocidade do esquecimento. Recebemos tudo em grande quantidade e a comoção histérica vem no embalo. Louvações e linchamentos nivelam-se nas redes sociais, com a mesma intensidade. Paixões e ódios também são abandonados no acostamento, sem maiores explicações. E sem que esperemos, chega um artista e ocupa algum território ainda inexplorado de nosso sentimento. As gerações seguintes custam a compreender por que seus antecessores choraram tanto esse ou aquele. O enterro de Carmem Miranda parou o Rio? Chico Alves deixou o Brasil em lágrimas? Por que tantos choraram e choram até hoje por Elis Regina? Da mesma maneira que os seguintes lamentariam Renato Russo, Raul Seixas e Cássia Eller. Da mesma maneira que, talvez, alguém chore no futuro a morte súbita de Amy Winehouse.
Há artistas que completam lacunas. Em suas ausências, nos fazem refletir e crescer. Avançar, um tiquinho que seja. Devolvem-nos a condição de homens perplexos diante do incompreensível.