sábado, 24 de julho de 2010

O Crime Perfeito


De nada adiantou ter sido um leitor voraz de Agatha Christie, Conan Doyle ou P. D. James. Nenhum autor de romance policial chegaria ao esmero do crime no Brasil. Aqui, Hercule Poirot, Miss Marple, Sherlock Holmes e o inspetor Adam Dalgliesh teriam de passar suas tardes jogando biriba ou tomando chá com torradas. O Brasil, reconheçamos, atingiu a perfeição no mundo do crime. Aqui, pode-se matar uma pessoa, um outro ser humano, e nem é preciso manter o crime em segredo. Todos saberão quem fez o que com quem, e ficará tudo por isso mesmo. Basta atropelar alguém. Simples assim.

Foi o que aconteceu há algumas semanas na Rodovia dos Imigrantes, quando um motorista com os reflexos alterados pelo álcool perdeu o controle da kombi e atingiu três pessoas no acostamento, matando-as na hora. Foi preso, confessou que tinha bebido, pagou uma fiança de 1.200 reais e saiu, pra responder o processo em liberdade. Gente, 1.200 reais dá 400 reais por vida tirada. Nem o Imposto de Renda cobra tão pouco por um dependente.

Na semana passada, foi a triste vez de a atriz Cissa Guimarães ser atingida pela tragédia. Seu filho Rafael, de 18 anos, foi atropelado e morto dentro de um túnel no Rio de Janeiro, quando andava de skate com dois amigos. Era madrugada, o túnel estava fechado para o trânsito de veículos e, teoricamente, não haveria perigo para os skatistas a não ser um assalto inocente. Dois carros, pelo jeito disputando um racha, ignoraram os avisos de interdição e entraram no túnel. "O menino não saiu da frente do carro e manobrou pro nosso lado", explicou o passageiro do carro que atingiu Rafael. Sobre o fato de estar num local proibido para carros, nenhuma palavra.
Depois, ficamos todos sabendo que os dois policiais que interceptaram o carro assassino não perceberam o vidro estilhaçado, o capô amassado, o farol pendurado - e talvez uma ou outra mancha de sangue. Os PMs teriam pedido 10 mil reais pra sofrerem de amnésia. Teria dado tudo certo, caso Rafael não fosse filho de um músico respeitado e de uma atriz conhecida, que até dias atrás anunciava o torpedão da copa do mundo nos intervalos dos jogos. Se Rafael fosse filho da tiazinha que vende coco na praia de Copacabana, talvez o golpe da amnésia tivesse funcionado.
Cá entre nós, a participação dos PMs corruptos é quase que só um detalhe numa história por si escabrosa. O que me impressiona sempre que leio sobre acidentes de trânsito envolvendo mortes é justamente o sucateamento que se faz no Brasil dos seres humanos. Acidentes acontecem. Máquinas podem perder o controle. Todo mundo tem sua hora e dela ninguém escapa. A fartura de lugares comuns deixa claro que nem tudo é crime.
Quando uma pessoa bebe além da conta, sai em alta disparada, ignora um aviso de "proibido entrar" ou a placa de contra-mão... bem, se provocar um acidente, essa pessoa não pode ser tratada como alguém que, coitada, deu sopa pro azar. É crime doloso, sim. Você, deliberadamente, toma uma atitude que pode ter consequências fatais, isso é crime. Pode ter atenuantes? De repente, sim. Mas não se pode dizer que foi sem querer.
Ou pior ainda, não se pode acusar a vítima de ter entrado na frente do carro, impossibilitando uma manobra. Rafael, o filho da Cissa Guimarães, estava em um local onde não devia passar carro, ponto. E tem mais: o sujeito que estava ao volante tinha sob o pé direito o comando do freio. E nas mãos, o volante. Era só frear ou desviar. Bateria o carro, mas não mataria ninguém.
A situação beira o Cinismo Absoluto quando sabemos que há regras muito rígidas dominando o código de trânsito brasileiro. Se eu não fizer a tal da avaliação de poluentes do meu carro novo pagarei multa. Se eu falar ao celular enquanto dirijo, pagarei multa. Se eu tomar três e não um copo de chope, pagarei uma multa altíssima. São regras absurdas? De jeito nenhum. O absurdo é eu perceber que se atropelar e matar alguém, pagarei uma fiança e ficarei em casa. Poderei até dirigir! Quem morreu, afinal, foi o outro. Foi maus.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Gilberto, o Interminável


Até quando mesmo vai durar a - por assim dizer - gestão de Gilberto, o Alcaide? Eu sei, você pensou que eu tinha esquecido dele. Tinha mesmo. A vida oferece tantas coisas mais interessantes pra se pensar, algumas boas, outras nem tanto, sobrava pouco tempo pra analisar as estripulias do burgomestre. Verdade seja dita, ele também apareceu pouco, tanto que até deu uma passeadinha pela África do Sul, durante a Copa. E também a campanha à presidência de José Serra não deve fazer muita questão de ver o alcaide nas páginas de jornal. É melhor silenciar ou ignorar o por-si-só confuso prefeito.

Mas vai ser difícil fingir que não estamos vendo a - de novo, por assim dizer - gestão gilbertiana. Por mais que a imprensa simpatizante às aves silvestres de bico comprido tente minimizar, é impossível não enxergar a mão do Alcaide nas questões sociais. Ele decidiu acabar com a cracolândia e com a mendicância. Dito e feito: interditou os prédios velhos do bairro da Luz, onde a noiada comprava e consumia suas pedrinhas. E, depois, mandou fechar os albergues que serviam de pouso pra mendigos, sem tetos e desvalidos em geral. A ideia beira o genial de tão simples: sem ter onde pernoitar ou se drogar, a pobraiada ia se mandar pros bairros da periferia, deixando a região central mais limpa, linda e 'novaiórquica'.

Pena que Gilberto, o Alcaide, não seja Rudolph Giuliani, o prefeito que limpou (ou maquiou) Nova York. Pena também que não tenha havido - como houve lá em NY - uma campanha pras pessoas não darem mais esmolas, comidas ou qualquer tipo de ajuda que estimulasse os mendigos a ficarem nos bairros ricos. Aqui, a cultura do assistencialismo faz parte do DNA e se há um resquício de culpa na classe média por ter, a suadas penas, seu carrinho e seu apezinho, ele é compensado com pequenos donativos às crianças obrigadas a vender doces, panos de prato e outros troços nos cruzamentos. Pasmem, há dessas criaturas até mesmo na Rua Oscar Freire, o território dos chiques e endinheirados paulistas e sobre elas ainda não há Estatuto do Menor que proíba palmadinhas...

A - meu deus, eu não acho outra palavra - gestão de Gilberto, o Alcaide, falhou no trato com a classe social abaixo de qualquer linha de pobreza e humanidade. Os noias da cracolândia espalharam-se pelas ruas do centro, chegaram até os Jardins, e agora estão de volta ao reduto. Os mendigos e desvalidos não viram motivo pra ir dormir no fim do mundo, sendo que o dinheirinho ganho com papel catado, os restos de comida dos restaurantes e, vá lá, as esmolas, estão mesmo no centro expandido. Só não se trocou o seis por meia dúzia, porque agora eles - os pobres - não têm mais onde pernoitar e acabam ocupando ruas, calçadas, marquises e caixas eletrônicos das áreas bacanas. Trocou-se o seis por três e meio, e olhe lá.

Gilberto, o Alcaide, também pisou feio na questão do transporte público. Se quer tanto despachar os sem-nada pra longe, que crie pelo menos um meio de eles chegarem lá. Não. Circula hoje nos jornais a informação que a prefeitura adiou para 2013 a reforma do transporte público da cidade, uma reforma que jamais virá, como até Tom Cruise sabe (no filme "Encontro Explosivo", ele diz pra Cameron Diaz que não gosta da expressão 'um dia' porque ela é sinônimo de 'nunca'). Espertinho, apesar da expressão de quem soltou pum no batizado, Gilberto quer que o próximo prefeito descasque o abacaxi. Certamente, já tá contando com a derrota nas urnas.

Faz sentido tanto descaso com a classe baixa. Porque só mesmo em terra de novo rico o transporte público é tratado como problema de pobre. Não é preciso ter vivido no exterior, qualquer seriado enlatado ou filme mostra personagens pegando trem, metrô e ônibus pra resolver seus problemas. Claro que, nas grandes cidades, eles dispõem de transporte público, o que não acontece aqui. Mas enquanto postergar os investimentos nessa área, o governo-seja-qual-for vai afastar mesmo a classe média do ônibus. E todo mundo que vive em terra de novo rico sabe que só quando a classe média toma contato com certos serviços é que eles melhoram. Enquanto os problemas urbanos de São Paulo forem só 'coisa de pobre', as tentativas de solução serão adiadas até o dia de São Nunca.



quinta-feira, 8 de julho de 2010

Imitação da Arte



É de arrepiar a sinopse do filme "O medo do goleiro diante do pênalti", que Win Wenders dirigiu em 1971: "Baseado em obra de Peter Handke, o filme é centrado na figura do goleiro Joseph Bloch. Após ser substituído em uma partida, ele deixa o campo e passa a noite com uma atendente de cinema. Sem motivos, ele estrangula a moça na manhã seguinte".





Win Wenders, obviamente, não sabia nem poderia prever a existência do Goleiro Bruno do Flamengo - o rapaz perdeu sobrenome e ganhou essa marca registrada ao protagonizar uma das mais macabras tramas registradas pela imprensa nacional. Uma trama que ganha detalhes cada vez mais sórdidos a cada anoitecer e que requenta, de quebra, os preconceitos nossos de cada dia. Win Wenders deve ter feito um filme denso, como é em geral sua obra (eu não lembro de ter visto, só guardei o título, lindo). Mas nada que ele pusesse no roteiro no começo dos anos 70 chegaria aos pés da assustadora realidade que se revela.

Ao contrário de Wenders, que usou sua obra para discutir a coexistência nem sempre pacífica entre homem e sociedade, o goleiro Bruno devia acreditar que a vida era outro tipo de cinema - aquele dos filmes de violência gratuita, em que se degolam pessoas como se passa manteiga no pãozinho. Bruno e seus amigos - Macarrão, Coxinha, Paulista e outros de apelidos semelhantes - enxergaram a paranaense Eliza como uma figurante qualquer num filme do Steven Seagall ou do Jean-Claude Van Damme.


A figurante que, no começo, era apenas uma moça gostosa, disposta a se divertir e levar diversão aos jogadores - uma maria-chuteira, como dizem no futebol - resolveu ter fala no filme projetado na cabeça de Bruno e sua turma. Já não bastava ter engravidado? Eliza e Bruno tiveram suas noites de farra e da folia nasceu um garoto, cuja paternidade ela buscava reconhecer. Não devem ter sido conversas muito amenas, essas de Bruno e da possível mãe de seu filho. Eliza devia jogar pesado, como em geral jogam as meninas que se envolvem com esses caras.


Tudo poderia ter acabado em relativa paz. Ele pagaria a pensão do moleque, a mulher faria caras e bocas, mas o aceitaria de volta, e Eliza continuaria sua saga de colecionadora de fotos com jogadores. Aqui e ali surgem comentários sobre a vida assanhada da moça, que teria feito filme pornô e tudo. É como se cada cena de sexo reduzisse a culpa de seus assassinos e explicasse, por si só, o crime.

O erro trágico de Bruno e Eliza foi ter seus caminhos misturados aos de figuras ensandecidas e sem a menor noção de limite entre vida e ficção. A figurante deu problema? Nós a matamos e atiramos seu corpo aos cães. Literalmente. O que passa na cabeça de alguém que faz isso? Eu tento imaginar o processo mental - sim, há um - que leva alguém a considerar as cenas de um filme de ação suficientemente plausíveis para ser colocadas em prática. Matar alguém já está além. Matar friamente, então. E o que veio a seguir, nem se fala. O que espanta é que não foi um cara sozinho que fez. Havia um grupo de homens em torno de uma moça. E será que nenhum deles por um instante que fosse pensou que aquilo poderia dar algum problema? Ou será que ele viu a cena como mais um filme de ação, em que o prédio explode e ninguém quer saber quem morreu ou quem matou.


Para completar o quadro de horror, o pai da vítima agora foi apontado como possível estuprador de menores no passado. E a mãe da moça morta, a mãe que sumira, voltou das brumas de avalon para reivindicar a posse do menino, agora um órfão que certamente terá direito à pensão do goleiro. Há sempre um interesse esquivo fazendo pulsar certos corações.

E como se nada disso bastasse, o mundo do twitter se divide entre quem considere Bruno perseguido por que é preto e ex-favelado ou entre quem veja no caso inspiração para as mais insólitas piadas. No começo, algumas até que foram engraçadas - mas os detalhes surgidos dia a dia mostram que a turma de Bruno não estava pra brincadeira. E o riso, que já era amarelo, virou esgar.



Sem querer, quem melhor resumiu a trama de horror foi o menor que entregou o crime todo. Quando saiu do bagageiro e surpreendeu a moça, na van do goleiro, o menor teria olhado pra ela e dito: "Perdeu, Eliza". Tantas outras Elizas, que empataram ou ganharam o jogo de virada, estão por aí, levando suas vidas, apresentando seus programas, esquiando em suas estações de esqui preferidas. Eliza acabou despedaçada num canil. Pois é. Eliza perdeu e perdeu feio. Foi seu erro. Até pra morrer é preciso não cometer certos pecados.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

A pátria descalça


Acabou nosso carnaval fora de época, nossa micareta uniformizada perdeu o fôlego. As camisetas cor de canário voltam para o fundo das gavetas e as bandeirinhas, penduradas como se vivêssemos numa festa junina ufanista, continuarão balançando até que o sol consuma suas cores e intenções. E do último jogo do Brasil nesta copa sul-africana vai me ficar na memória a expressão agoniada de Daniel Alves segundos antes de cobrar a falta que poderia dar a chance de um empate ao Brasil. Foi o mais lindo e triste olhar de toda a partida. Nos ombros daquele moço escoravam-se as esperanças de toda uma torcida. Não deu.

Curioso país este, que apoia suas alegrias em 11 pares de pés. Toda Copa eu sempre me pego pensando no quanto há de irreverente e infantil em paralizar tudo por causa de um jogo. Não sou contra, não. Pelo contrário. Acho divertido, mais que isso, acho subversivo fechar banco, escola, shopping, tudo aquilo que move a máquina capitalista, apenas para assistir a uma partida de futebol. Trocamos o que se convencionou chamar de sério pelo prazer de poder gritar gol como se aquilo fosse nos salvar a vida, pela alegria de abraçar quem estiver do lado, igualmente feliz por mais um ponto no placar.

Pena que nossa macunaimice seja nosso calcanhar de aquiles. Por essa disposição de trocar tudo por uma tarde de 0lho no jogo ou por três dias de absoluta folia carnavalesca, enfim, por nosso olhar sobranceiro às coisas sem graça da vida, por tudo isso é que nossos colonizadores - de ontem e de hoje - nos convenceram sobre nossa inferioridade nacional. Aos olhos dos países sérios, somos uma imensa taba em constante quarup. Nada mais equivocado do que aceitar passivamente essa opinião eurocentrada.

Nossos problemas não vêm de nossa disposição para a alegria e a exuberância. Nossos problemas vêm justamente dos que nos enxergam como meros espíritos infantis - como se ser infantil fosse defeito e não qualidade. Embora os explorados históricos fôssemos nós, aceitamos a crítica como quem tem uma eterna culpa no cartório. Duvidamos mesmo da sinceridade de nossa tristeza, no momento em que o juiz japonês apitou o fim da partida contra a Holanda.

Assumamos, senhores, que a tristeza foi autêntica. Um pouco histérica, reconheço. Exagerada, sem dúvida. Mas o que faz a infância mais divertida não é justamente a tendência ao exagero? Meio termo e juízo são vícios que adquirimos com o passar do tempo. E dos quais só nos livramos, dizem, quando a velhice chega. Hoje, na Avenida Paulista, as expressões eram de real desamparo. O Brasil tinha perdido um jogo, estava fora da Copa e a vida teria de voltar aos trilhos. De repente, o que seria um quase feriadão transformou-se novamente numa enfadonha tarde de sexta-feira.

O mais irônico é perceber que a tristeza não será dividida com quem perdeu o jogo. Boa parte da seleção do Dunga fica lá pelas Europas mesmo. Da mesma maneira que não despertaram toda nossa empatia, os jogadores parecem lamentar ter perdid o prêmio em dinheiro e não o orgulho de ter bordado mais uma estrela no uniforme. Permanecem distantes de nossa cara de cachorro que caiu da mudança, alheios à nossa fossa. Que logo passará, é verdade, porque crianças não guardam mágoa por muito tempo.