segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Azelite


Hoje cedo, ouvindo a Band News FM, escutei a entrevista de uma moradora do Morumbi, um bairro que a gente da minha safra cresceu sabendo que era "dos ricos". De uns bons tempos pra cá, o Morumbi ganhou favelas, conjuntos residenciais e, pasmem, chegou a ser definido - pelo locutor, esta manhã - como bairro de classe média. Alta, mas média. A notícia hoje era que moradores do Morumbi organizaram uma manifestação, um protesto, pela falta de segurança no bairro.
Ao contrário do que acontece nos aglomerados populares, os revoltosos não precisaram atear fogo em pneus para chamar a atenção da mídia - e colabora muito o fato de a Band estar fincada no alto do bairro nobre. A polícia apareceu, o comandante reconheceu a farra dos assaltantes e prometeu estudar melhoria no policiamento, e a tal moradora que deu entrevista falou bem e bonito, avisando que até a população de baixa renda - antigamente conhecida como pobres e/ou favelados - seria beneficiada com as melhorias. O Morumbi, pra quem não conhece a área, abriga uma das maiores favelas urbanas de São Paulo.
Enquanto isso, na imprensa e nas redes sociais, o bafafá ficou por conta de um artigo da ombudsman da Folha, Suzana Singer, publicado no dia 21 de agosto. No artigo, Suzana cutucava a chamada crítica especializada de teatro, que esbanja seus conhecimentos teóricos em frases empoladas e sem muito sentido. Não demorou muito para um grupo de profissionais do teatro se levantarem contra esse artigo, acusando a ombudsman de querer "vulgarizar" o texto dos jornais.
De modo geral, concordei com o artigo de Suzana. Há mesmo - e não é só na área de teatro, mas em cinema e literatura também - um certo esnobismo nos textos.
É como aqueles textos gravados nas paredes das exposições de artes plásticas: por que essas pessoas fazem questão de não escrever claro? Elas querem mostrar que são cultas e, por dominar um vocabulário no qual sobressaem palavras com mais de quatro sílabas, julgam-se afora e acima da manada.
Pode parecer que estou tratando de dois assuntos, mas não. O tema é a elite, o bacana, o que se tem em alta conta. No caso do Morumbi, foi preciso que a horda criminosa começasse a atacar as ruas, carros e casas da parte nobre para que a polícia fosse chamada às falas. Enquanto atingia as vielas das favelas... eles que se entendessem.
No caso da polêmica cultural, fiquei pensando em como parte da classe artística gosta de se ver à parte do mundo real. A língua que eu, você e mais um bando de gente usamos para comunicar ideias por escrito ou falando... essa língua não lhes parece rica o suficiente para exibir cultura. É preciso ser barroco, rebuscado, porque quanto menos a patuleia entender, melhor. Se ela, a patuleia, achar que entendeu é capaz de não achar o outro tão intelectual assim. Complica ainda mais porque a própria patuleia também acha isso, de vez em quando. No fundo, o fantasma de Odorico Paraguaçu e sua linguagem particular assombra a nossa rotina.

Há um falso conceito de que as coisas simples são rasas. Raso é quem se apega à boia do rococó pra disfarçar o oco das ideias. Mas é sempre bom deixar claro que textos com análises profundas de qualquer manifestação artística são bem-vindíssimos. O que, acredito, a ombudsman afirmou é que reflexões profundas não precisam ser labirínticas. Eu não tenho vergonha de buscar sempre ser claro e compreendido. Não creio que isso me diminua como escritor e dramaturgo. Mas, é claro, é apenas uma opinião de quem não gosta de labirinto nem mora no Morumbi. Acho que uma coisa tem a ver com a outra. Vai saber...


quarta-feira, 17 de agosto de 2011

A Bovary do Horto


Publicações em blog têm curta validade e este, em especial, vence na sexta-feira, quando a última cena de "Insensato Coração" for ao ar. Eu sei que há coisas mais importantes em que pensar - a indignação do governo federal com a publicação das fotos dos presos no escândalo do Amapá, por exemplo, dá muito pano pra manga. Mas vou falar da novela.
Sim, eu poderia sugerir ao ministro da Justiça e à presidente Dilma que preferiria vê-los esbravejando contra o descaso das explosões impunes de bueiros no Rio ou contra o fato de um parque de divesões caindo aos pedaços ter alvará de funcionamento e, por isso, ter provocado a morte de dois adolescentes... São muitos os motivos que deveriam deixar um dirigente político indignado (embora a exibição pública de suspeitos seja proibido por lei, claro - mas há alguma brecha na lei, que libera a imagem quando o suspeito é pobre e preto)... Tudo isso é assunto, mas preferi a novela.
Eunice, a candidata a perua interpretada com estridência por Deborah Evelyn, vai ser punida exemplarmente hoje à noite. Defensora da moral da família, a dona de casa pagará o pato de ter cedido ao tesão e se refestelado com o descamisado gostosão Ismael (Juliano Cazarré). O capítulo de "Insensato Coração" poderia estar morno que só, mas bastava Ismael dar uns cheiros no cangote de Eunice pra ela suspirar, devota, um "ai, meu Deus" - e tudo estava dito. (Tá, a Tia Neném, da Ana Lúcia Torre, também foi um dos maiores achados desta novela).

Casada com um tipo bem comportado e até submisso, Eunice é a mulher que não se conforma com a sina interiorana - na geografia do Projac, qualquer cidade fora do Rio é subúrbio puro e, no caso, era Florianópolis, de onde não importaram nem o sotaque - todo o núcleo manezinho falava como carioca. Eunice quer ser da alta sociedade e chega a leiloar a virgindade da filha em nome da causa. No começo da novela, ela prometia também ser um anjo vingador, que buscaria a punição ao assassino da irmã, custasse o que custasse. De vez em quando, esse lado da personagem ainda vinha à tona - mas o caso com o gostosão passou à frente. Eunice abriu mão da vingança e da moral familiar em nome do próprio desejo. Será castigada por isso.

As lições de moral burguesa das novelas chegam a assustar, quando paramos de ver aquelas cenas como mera distração. O menino bom caráter, que assume a criação do filho que um estuprador deixou em sua namorada, bem, esse menino está saudavelmente livre do compromisso, pois a menina abortou depois de apanhar do estuprador violento. A periguete, que sempre foi divertida em sua sede desmedida de fama e celebridade, está se transformando, na reta final, numa vilãzinha rastaquera. A ambição é um dos mais graves pecados, segundo o catecismo das novelas brasileiras.

De todos os personagens, entretanto, é a Eunice que mais me chama a atenção, por representar - queiramos ou não, nós, os "modernos & antenados" - o chamado pensamento da maioria. Espremida entre as contas a pagar e as revistas de celebridades, as eunices da classe média, nova ou velha, adorariam circular na alta roda, chamar banqueiro de você e madame de querida. Elas são até mais bem informadas do que a personagem da novela, sabem dos museus e shows, mesmo quando não comparecem aos eventos. Acham, sim, que as filhas precisam casar bem e tentam fazer uma boa limonada financeira de todos os limões que a vida lhes oferece. Só não podem, em momento algum, lembrar que sentem tesão.

Sexo liberado, só para a doidivana Bibi, que precisou conformar seu furor lascivo ao casamento com o marombado tapado, porém de bom coração e, acima de tudo, legalista, fã da cerimônia formal. Também exemplares são a diarista Haidê (Rosi Campos), que começa e acaba a novela apenas como a mãe pobre, porém honesta, íntegra e trabalhadora, sem um companheiro pra chamar de seu. Ou a chatonilda Carol (Camila Pitanga), que exige do companheiro uma fidelidade que nem ela consegue sustentar. Ou, pior, a irmã bonitinha, que fica dando lição de moral em festa alheia, azedando o ambiente. Nem mesmo o "polêmico" casal gay vai escapar do bom-mocismo: ontem mesmo a mãe bacana estava organizando a festa da união civil do filhote com o namorado boa-praça. Gay bom é gay casado-com-festinha.

É tudo gente que vai sumir da nossa memória assim que a novela acabar - e é bom que seja assim. Odete Reuttman deve ser um fantasma que atormenta os piores pesadelos da Beatriz Segall. É tudo história de mentirinha, que muitas vezes são tratadas até nos noticiários com a seriedade de um atentado na Síria ou um escândalo em Brasília. Lembro de uma empresária canadense espantada por me ouvir contar que a morte de Odete Reuttman tinha sido notícia de primeira página nos maiores jornais do país. No Brasil, acostumamos a viver a ficção e, talvez por isso, assistamos com passividade ao desfile interminável de absurdos políticos. Estamos sempre à espera do próximo capítulo - mas, pelo menos, os capítulos de nossos novelistas acabam com final feliz, vilões mais ou menos castigados, beijos em profusão e paz universal.

Entendo o escape, mas insisto: deixem a nossa Bovary suspirar sossegada nos braços do gostosão. Sem tesão não há solução, já dizia Roberto Freire.




segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Carta aberta ao vereador Carlos Apolinario

Prezado vereador Carlos Apolinário (DEM)

Venho por meio desta solicitar a atenção do nobre edil, eleito por milhares de moradores desta cidade, para uma situação de extremo preconceito que acontece anualmente em nosso município.

Como sei do empenho que o prezado vereador dispensa às minorias oprimidas – veja-se o caso do seu esforço na criação do Dia do Orgulho Hétero, que levou e ainda levará nossa amada cidade ao noticiário mundial, especialmente por criar a categoria até hoje pouco estudada da maioria oprimida - venho reivindicar a mesma gana legislativa para a criação do Dia do Órfão Paulistano.

A implantação desta data comemorativa é tema urgente e de capital importância para o respeito a todas as categorias sociais que convivem em São Paulo. Assim como a Câmera dos Vereadores ousou desafiar o seu tempo e criou o Dia do Orgulho Hétero, esta tarefa é de fundamental providência por parte dos dedicados edis de nosso município, eleitos e mantidos com os votos de milhões de paulistanos.

Não acho que seja o caso de se chamar Dia do Orgulho Órfão, já que nem mesmo a mocinha que mandou o namorado dar cabo dos pais tem orgulho em exibir a orfandade, acredito eu. O Dia do Órfão justifica-se a cada temporada de Dia das Mães e Dia dos Pais. São datas criadas pelo comércio, é claro, mas a Parada Gay de São Paulo também se tornou a menina dos olhos do turismo paulistano e só a entrada de dinheiro nos cofres municipais já justifica a manutenção do evento na principal avenida da cidade – os evangélicos e os sindicalistas, em sua maioria, são daqui mesmo e não animam hoteis, restaurantes, lojas e outros templos consumistas que fazem a alegria da comunidade gay.

É necessário que os vereadores se sensibilizem com a causa dos que sofrem a falta de seus entes queridos a cada campanha publicitária. “Temos o presente para qualquer tipo de pai” ou “Dê a sua mãe tudo o que ela quis” são slogans que, antes mesmo de estimular o consumo, constrangem os cidadãos privados de seus genitores. É de uma violência abissal, desumana, impensável. É a orfanofobia em marcha, aproveitando um termo criado por Vossa Excelência na revista Veja desta semana.

Como cidadão paulistano, profissional que vive do seu trabalho e por ele paga todas as taxas e impostos cabíveis (e incabíveis, também), eleitor com a situação em dia, e – acima de tudo – órfão de pai e mãe, julgo-me pleno de direitos em reivindicar ao vereador que abrace a nossa causa.

Superaremos diferenças políticas em nome de um bem maior, lembrando que nossa luta em nada depõe contra a figura humana dos que têm pai ou mãe vivos – alguns têm ambos! É preciso combater o excesso de privilégios dados a esses cidadãos já aquinhoados com os pais em plena atividade.

O órfão paulistano cansou-se de ser humilhado em shopping centers, lojas e anúncios de TV. Chega! Nossa luta está apenas no começo!

Atenciosamente,

Mário Viana.