Publicações em blog têm curta validade e este, em especial, vence na sexta-feira, quando a última cena de "Insensato Coração" for ao ar. Eu sei que há coisas mais importantes em que pensar - a indignação do governo federal com a publicação das fotos dos presos no escândalo do Amapá, por exemplo, dá muito pano pra manga. Mas vou falar da novela.
Sim, eu poderia sugerir ao ministro da Justiça e à presidente Dilma que preferiria vê-los esbravejando contra o descaso das explosões impunes de bueiros no Rio ou contra o fato de um parque de divesões caindo aos pedaços ter alvará de funcionamento e, por isso, ter provocado a morte de dois adolescentes... São muitos os motivos que deveriam deixar um dirigente político indignado (embora a exibição pública de suspeitos seja proibido por lei, claro - mas há alguma brecha na lei, que libera a imagem quando o suspeito é pobre e preto)... Tudo isso é assunto, mas preferi a novela.
Eunice, a candidata a perua interpretada com estridência por Deborah Evelyn, vai ser punida exemplarmente hoje à noite. Defensora da moral da família, a dona de casa pagará o pato de ter cedido ao tesão e se refestelado com o descamisado gostosão Ismael (Juliano Cazarré). O capítulo de "Insensato Coração" poderia estar morno que só, mas bastava Ismael dar uns cheiros no cangote de Eunice pra ela suspirar, devota, um "ai, meu Deus" - e tudo estava dito. (Tá, a Tia Neném, da Ana Lúcia Torre, também foi um dos maiores achados desta novela).
Casada com um tipo bem comportado e até submisso, Eunice é a mulher que não se conforma com a sina interiorana - na geografia do Projac, qualquer cidade fora do Rio é subúrbio puro e, no caso, era Florianópolis, de onde não importaram nem o sotaque - todo o núcleo manezinho falava como carioca. Eunice quer ser da alta sociedade e chega a leiloar a virgindade da filha em nome da causa. No começo da novela, ela prometia também ser um anjo vingador, que buscaria a punição ao assassino da irmã, custasse o que custasse. De vez em quando, esse lado da personagem ainda vinha à tona - mas o caso com o gostosão passou à frente. Eunice abriu mão da vingança e da moral familiar em nome do próprio desejo. Será castigada por isso.
As lições de moral burguesa das novelas chegam a assustar, quando paramos de ver aquelas cenas como mera distração. O menino bom caráter, que assume a criação do filho que um estuprador deixou em sua namorada, bem, esse menino está saudavelmente livre do compromisso, pois a menina abortou depois de apanhar do estuprador violento. A periguete, que sempre foi divertida em sua sede desmedida de fama e celebridade, está se transformando, na reta final, numa vilãzinha rastaquera. A ambição é um dos mais graves pecados, segundo o catecismo das novelas brasileiras.
De todos os personagens, entretanto, é a Eunice que mais me chama a atenção, por representar - queiramos ou não, nós, os "modernos & antenados" - o chamado pensamento da maioria. Espremida entre as contas a pagar e as revistas de celebridades, as eunices da classe média, nova ou velha, adorariam circular na alta roda, chamar banqueiro de você e madame de querida. Elas são até mais bem informadas do que a personagem da novela, sabem dos museus e shows, mesmo quando não comparecem aos eventos. Acham, sim, que as filhas precisam casar bem e tentam fazer uma boa limonada financeira de todos os limões que a vida lhes oferece. Só não podem, em momento algum, lembrar que sentem tesão.
Sexo liberado, só para a doidivana Bibi, que precisou conformar seu furor lascivo ao casamento com o marombado tapado, porém de bom coração e, acima de tudo, legalista, fã da cerimônia formal. Também exemplares são a diarista Haidê (Rosi Campos), que começa e acaba a novela apenas como a mãe pobre, porém honesta, íntegra e trabalhadora, sem um companheiro pra chamar de seu. Ou a chatonilda Carol (Camila Pitanga), que exige do companheiro uma fidelidade que nem ela consegue sustentar. Ou, pior, a irmã bonitinha, que fica dando lição de moral em festa alheia, azedando o ambiente. Nem mesmo o "polêmico" casal gay vai escapar do bom-mocismo: ontem mesmo a mãe bacana estava organizando a festa da união civil do filhote com o namorado boa-praça. Gay bom é gay casado-com-festinha.
É tudo gente que vai sumir da nossa memória assim que a novela acabar - e é bom que seja assim. Odete Reuttman deve ser um fantasma que atormenta os piores pesadelos da Beatriz Segall. É tudo história de mentirinha, que muitas vezes são tratadas até nos noticiários com a seriedade de um atentado na Síria ou um escândalo em Brasília. Lembro de uma empresária canadense espantada por me ouvir contar que a morte de Odete Reuttman tinha sido notícia de primeira página nos maiores jornais do país. No Brasil, acostumamos a viver a ficção e, talvez por isso, assistamos com passividade ao desfile interminável de absurdos políticos. Estamos sempre à espera do próximo capítulo - mas, pelo menos, os capítulos de nossos novelistas acabam com final feliz, vilões mais ou menos castigados, beijos em profusão e paz universal.
Entendo o escape, mas insisto: deixem a nossa Bovary suspirar sossegada nos braços do gostosão. Sem tesão não há solução, já dizia Roberto Freire.
Ótima análise! Parabéns!
ResponderExcluirAdorei!
Muito bom!
ResponderExcluirA Eunice foi um dos pontos altos da novela!
A melhor coisa da novela ontem foi a derrocada dela!
Fábio Dias R.
www.ocabidefala.com
é disso que o Brasil precisa !
ResponderExcluirnão sei, eu coloquei no meu blog as postagens mais populares segundo o sistema do blogger e apareceram em destaque posts de 2007. e pelo jeito na busca muita gente acha post do passado, volte e meia eu recebo um comentário em algum filme q falei faz muito tempo. ou em livro. eu amo novelas e falar delas, acabamos indiretamente falando de várias questões políticas brasileiras, como falar do cortez. e pelo menos não somos jurados de morte já q o cortez só existe na novela, mesmo q tenha sido inspirado em alguém bem próximo de nós. igualmente adoro a eunice e a tia neném. adorei inclusive q não mataram a tia neném como o previsto pra ela continuar a nos divertir com suas pérolas. inclusive os diálogos dela com a eunice eram geniais. a tia neném era uma das poucas q tinha a coragem de falar o q pensava sobre a hipócrita eunice. algo q amo na eunice é o desejo dela de ascender socialmente. tão atual! e essas que tentam ascender podem como a eunice forçar um casamento com alguém já da alta, mas como acontece muito atualmente, namorar alguém "famoso" ou da alta. adorei gay bom é casado com festinha. mulher boa (deixo aqui a dubiedade da palavra) tb. eu gostei da eunice pagar por todo o mal q fez e divertido q seja com um vira-lata, roubando o tema da novela do walcyr. mesmo moralista, é mais divertido ela ser pega na cama de um hotelzinho de quinta de sutiã. confesso q tenho achado algumas novelas da record menos moralistas e mais realistas. mas q é divertido o óbvio pra fugir da vida nada óbvia, há é. afe, escrevi muito. sorry.
ResponderExcluirPedrita, não sou conta o castigo da Eunice, pq ela aprontou poucas e boas (ou muitas e péssimas). Só acho estranho ela rodar por estar trepando com o gostosão. Essa foi a única coisa certa que ela fez a novela inteira.
ResponderExcluirah, não discordei. só achei divertido, mesmo q moralista.
ResponderExcluir"Gay bom é gay casado-com-festinha." foi o melhor... [1 sonho: escrever uma novela com Mário Viana]. ;))
ResponderExcluirDescamisado gostosão é modéstia, modéstia...
ResponderExcluirMário, não me ufano em dizer,mas não vi um único segundo desta novela. Não é nem preconceito, é falta de vontade mesmo com o gênero. Não me animo. Sei que alguém matou alguém. Mas em toda novela agora tem um morto, uma biscate, um gay. E aí se discute o beijo gay que não ocorreeu. Aí um diretor de novelas gay desanda a falar que não precisa ter lei anti-homofobia. Ando meio sem saco pra tudo isso. Onde tá o botão curtir?
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