sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

A calcinha da deputada


            Foi mais ou menos assim: a atriz, deputada estadual e missionária Myriam Rios (como está em sua página da internet) apresentou um projeto de lei mirando os bons costumes. O governador Sergio Cabral já assinou e a lei está valendo. Nas reportagens que li, não dava pra entender direito o que eram os tais bons costumes que a parlamentar defendia. Mas na chuva de posts que invadiu as redes sociais deu pra entender uma coisa: preconceito é uma atitude daninha, seja contra ou a favor da gente.
            No caso, o preconceito foi contra a deputada, cujo projeto de lei é mesmo estapafúrdio. As armas usadas para atacá-lo, no entanto, foram as piores possíveis: alguém fuçou na internet e descobriu imagens dos tempos em que a hoje política era somente atriz e tinha um corpinho que não era de se jogar fora. Sucesso em novelas da Globo, jovenzinha com tudo em cima e mais um pouco, Myriam Rios sucumbiu às propostas de fotos sensuais, nua ou seminua - tanto faz. Dizia-se nos posts que uma pessoa que fez aquelas fotos não tem o direito de hoje, enfiar o dedo moralista no nariz da gente mais soltinha e despreocupada.
            Que ela não tem por que se meter nos bons costumes alheios, é ponto pacífico. Certamente o Estado do Rio tem problemas muito mais sérios pra assembleia legislativa cuidar. Se queremos mesmo atacar a lei da Myriam, devemos mirar no que ela tem de tacanha, reducionista, cafona - mas não vamos agir também de maneira tacanha, reducionista e cafona. Recorrer ao passado doidivanas de Myriam Rios não é o melhor meio de anular sua lei do bom comportamento.
            Profissional que era, Myriam deve ter recebido pra posar pras fotos. Assim como são profissionais e recebem o combinado as moças que saem nas capas da Playboy e da Sexy (e os moços da G, da Júnior, etc, também). Se hoje "acusamos" Myriam de ter feito aqueles trabalhos, nada impedirá que amanhã ou depois alguém saque da algibeira as fotos que muitas moças legais fazem por aí. Eu mesmo sou amigo de quatro atrizes que foram capa da Playboy e posso garantir que nenhuma delas tem comportamento moral discutível.
            Myriam Rios já fez muita besteira na vida - inclusive atuar. Casou com Roberto Carlos, virou cristã militante e anunciou com orgulho estar há mais de 10 anos sem sexo. Igualou homossexualismo com pedofilia, causou rebuliço, pediu desculpas. E agora surge com essa lei boko-moko. Se ela tivesse levado uma vida de monja, nunca tivesse blasfemado ou roubado doce de criança, mesmo assim seu projeto de lei seria, no mínimo, risível. Não é o fato de ela ter mostrado as pudendas pra garotada que a desautoriza.
            Como todo mundo, Myriam pode ter mudado de opinião e ponto de vista ao longo dos anos. Quem não muda tem problemas sérios de aprendizado. Até onde eu saiba, conta a favor da deputada ela não ter tentado apagar seu passado de saliências - ao contrário daquela apresentadora loira cinquentona com voz de criança atrasada na escola. Myriam fez o que fez, as fotos comprovam e ela agora tornou-se o símbolo da caretice. O chato nisso é que milhares de pessoas deram seu voto à caretice da moça.
            Meu medo na cruzada moralista anti-Myriam é o que ela esconde: o acanhado limite que cada um que se diz liberado impõe ao outro. Infelizmente, é possível, sim, ser tacanho quando se ataca a caretice.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Enganações


            Somos um povo que se engana. Nosso padroeiro deveria ser o Gepeto e nosso símbolo na Copa do Mundo bem que podia ser o Pinóquio. Mentimos para nós mesmos o tempo inteiro. Criamos leis que, a exemplo de plantas no deserto, podem "não pegar." Espalhamos por todas as empresas um Serviço de Atendimento ao Consumidor que faz pouco dos clientes - e, como diz minha amiga Gabriela Erbetta, o "Fale Conosco" dos sites deveria ter um subtítulo: "mas nós não ouviremos você". Somos campeões mundiais em auto-engodo e isso, estranhamente, não nos afeta. Aliás, até nos deixa orgulhosos e felizes.
            Recentemente, antes de um show no Sesc Pinheiros, uma voz anunciava, de maneira clara e bem articulada, que era proibido tirar fotos e filmar o espetáculo. Aconselhava também a desligar os celulares. Mal as luzes se apagaram e o que se viu foi um mar de celulares e máquinas registrando cada momento do show. Era como se a regra anunciada no alto falante só valesse para marcianos portando armas a laser ou duendes recém-chegados de algum arco-íris distante. Nenhum dos presentes se julgava submetido a uma norma tão esquisita: "Como assim, não fotografar o show? Eu paguei o ingresso, tenho direito!"
            O grande problema de as pessoas ignorarem o aviso de "desliguem seus celulares" vai além da desobediência, da travessura. Ela nasce, na verdade, da falta de punição. Além de avisar que é proibido fotografar o espetáculo, a casa deveria ter seguranças, fiscais, cães perdigueiros - sei lá - para alertar os infratores. "Olha, não pode fazer isso". Alertada uma ou duas vezes, a pessoa que insistisse teria o aparelho confiscado e só devolvido ao fim do evento. Será que isso é ilegal? Ou a norma anunciada é que é? Se for, pra que anunciar?
            Algo parecido ocorre com a bliz da Lei Seca. A tolerância zero foi bem recebida até por aqueles que costumam beber e dirigir sem causar transtornos. Há um ideal de segurança - "eu posso dirigir bem, o problema são os outros motoristas" - que justifica a severidade da lei. Acontece que, se beber e provocar um acidente com vítima fatal, o sujeito vai pagar uma multa menor do que se "apenas" dirigir alcoolizado! É como se beber e dirigir fosse um pecado mortal. E provocar a morte de alguém no trânsito não passasse de uma malcriação. Ah, somos falsos, falsos...
            Em Salvador, uma lei implantada há cerca de dois anos, pôs fim às barracas de praia, onde nativos e turistas podiam beber, petiscar e passar algumas horas à vontade. Notem: Salvador é uma cidade com praias belíssimas e a lei caída do céu queria obrigar todo mundo a carregar um isopor onde guardaria seus beberets, comerets e lixerets. Funcionou? Claro que não.
            Do Porto da Barra a Stella Maris, o que se vê nas praias soteropolitanas é um colorido mar de guarda-sóis. Instalado ali, o turista pode tomar sua cervejinha gelada, comer um acarajé (tem sempre uma baiana ao alcance do "ei, menino!") e até ter os pés molhados por água do mar, gentilmente despejada por um funcionário das barracas. Ué, mas elas não estão mais proibidas? Estão, mas continuam. Elas não existem mais como estrutura física - parede, banheiro, chuveiro, lata de lixo. Você consome o que quer e deixa por ali, na areia. No fim do dia, o mar quebra na praia, bonito, bonito - e recebe de prêmio as garrafas, copos de plástico, palitos e papeis deixados pelos veranistas. É nojento.
            Existem várias explicações históricas e sociológicas para tamanho desapego da verdade. Uns culpam a colonização lusitana, outros a série de ditaduras com que nos criaram e outros, ainda, a indolência tropical. Nada justifica. Num tempo em que todo mundo defende seus direitos com unhas e dentes, mas esquece da lista de deveres a ser cumprida, a hipocrisia transformada em hábito cotidiano ganha contornos doentios, como se fosse uma doença que podia ser tratada com vacina - mas ah, ninguém quer sentir a dor da agulha...

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

A mesma praça...


Fui checar no dicionário. Praça continua sendo definida como espaço público destinado ao lazer e ao descanso. "Geralmente", alerta o Aulete, "tem bancos, coretos e plantas ornamentais." A dúvida sobre uma possível nova conceituação do verbete me bateu desde que as redes sociais e os jornais passaram a exibir a imagem do confronto entre homens da Guarda Civil Metropolitana e skatistas na Praça Roosevelt, agora reformada e devolvida à população.
            Era mais um imbróglio na história desta praça. O antigo terreno de d. Veridiana Prado foi transformado, no final dos anos 60, num monumento ao concreto desconhecido pelo paisagista português Roberto Coelho Cardozo. Foram décadas de convívio com aquela praça de dois pisos - era até bonito, quando bem cuidado: tinha supermercado 24 horas, banheiro público, correio, espaço pra correr e brincar... Acabou virando tudo um "valhacouto de marginais",  como diriam os antigos repórteres policiais.
            A dignidade do espaço começou a ser resgatada com a chegada dos grupos teatrais... Mas é bom lembrar que, nos anos 70, as mesmas calçadas dos Parlapas e dos Satyros recebiam os frequentadores do Cine Bijou, onde só passava "filme antigo e de arte". Nos anos 80, chegou a funcionar uma cantina bem simpática, "Macarrão". Mas aí o tráfico chegou com tudo. Nos anos 2000, a proximidade com políticos no poder - o então governador José Serra era habituê das sessões teatrais dos Satyros - acabou dando início ao processo de restauração da praça.
            Reinaugurada a praça, com tanto concreto quanto antes, e umas árvores mequetrefes representando sem muito entusiasmo a flora urbana, começaram os problemas. Os skatistas se julgam donos do espaço. Os moradores ao redor também. Os ciclistas, os donos de cachorro, todo mundo tem direito a um pedacinho de seu. Tem mesmo. Mas cadê que o povo se entende?
            Com a arrogância típica da juventude - embora alguns já tenham passado pra fase adulta há tempos -, os skatistas ensaiam suas manobras radicais o tempo todo. É bonito, mas faz um ruído diabólico. Especialmente de madrugada. Junta-se a isso, a prepotência dos guardas civis: um dos principais envolvidos estava à paisana e já responde a outros processos por má conduta. A falta de bom senso dá o toque que faltava. O resultado foi o que se viu: agressão física, xingamento, o diabo.
            Até o momento, ninguém conseguiu sequer sugerir que se estabeleçam regras para o uso da praça. "Skate, das 9 às 18 horas", por exemplo. Vai ser obedecido? Dificilmente, a moçada não é muito chegada a cumprir regras (aliás, essa é uma das funções juvenis, testar o elástico das regras até o limite). Mas haveria pelo menos uma baliza pra guiar a discussão. Do jeito que está, fica tudo por conta do freguês. E o que não falta é freguês.
            A cada dia que passa, mais gente se julga com direitos a tudo. Com razão! O complicado é que poucos entendem que, no mesmo pacote dos direitos, vem o dos deveres. De uma vez por todas, convívio social não é "eu pago imposto, faço o que quero e dane-se o resto". O cidadão do andar de baixo e a vizinha do andar de cima também pagam imposto, também têm direito, também querem puxar a brasa pra sua sardinha. Não é fácil. Com isso, o espaço que deveria servir pra convivência se transforma no epicentro das divergências.
            Nas cidades brasileiras, em particular, onde antes famílias passavam a tarde de domingo, jovens se paqueravam e havia, sei lá, um velhinho do realejo, agora o que existe é uma procissão de desvalidos, miseráveis, mendigos, noiados e outros exemplos de degradação humana. Ai de você se precisar parar pra tomar um ar, dar um tempo, esperar alguém... Vai ficar de pé, porque bancos são raros. E os poucos são anti-mendigos, com ferrinhos separando um assento do outro - namorar juntinho, nem pensar.
            Perdemos a mesma praça, o mesmo banco e o mesmo jardim. Nunca teremos uma Place des Vosges, como em Paris (aquela em que morava o escritor Victor Hugo, linda, com seus arcos)... Jamais ergueremos uma praça como a Grand Place de Bruxelas, certamente uma das mais bonitas do mundo...  Só conseguimos mesmo seguir o exemplo pouco salutar do confronto entre estudantes e militares na China, em 1989. Desde então, nem mesmo a Praça da Paz Celestial fez por merecer nome tão poético.
            Surpreendendo quem não via comunismo em nossas polícias, nossa guarda civil exibiu inesperada coloratura maoísta... Mas, enquanto os chineses mantinham o conflito no nível homem-máquina, nossos bravos policiais tropicalizaram e partiram pro contato humano - e o que se viu foi uma gravata aplicada com empenho. Devíamos ter o mesmo entusiasmo pra tentar entender o outro - isso vale pra todo mundo, incluindo a moradora velhinha que reclama de tudo.