Nem
tanto ao mar, nem tanto à terra. Longe dos 3 milhões de passantes, mas
igualmente distante dos 220 mil contados pelo UOL, a Parada Gay deste ano em
São Paulo reuniu gente suficiente para um desfile de duas horas ininterruptas.
Foi o tempo que fiquei parado na frente do Conjunto Nacional, vendo passar 16
trios elétricos - quase carros alegóricos, de tão enfeitados no andar de cima.
Com algumas exceções, como o carro da festa Gambiarra, a maioria dos trios era
bancada pelo movimento sindical, numa necessidade quase romântica da
organização dar à Parada um tom mais "sério" e menos
"carnavalesco".
Bobagem.
No Brasil, a Parada é uma festa e é por isso que atrai tanta gente. Já atraiu
mais, é verdade, mas os excessos do passado assustaram. A chuva que despencou
na manhã de domingo (não foi, como disseram alguns jornalistas desconhecedores
da língua pátria, uma chuva 'intermitente') estimulou muita gente a ficar em
casa, no quentinho do cobertor. A violência despoliciada da Virada Cultural
também assustou. No fim, foi uma das paradas mais tranquilas, com apenas meia
dúzia de mijões presos, acusados de atentado ao pudor. Beira o ridículo a
acusação: num desfile em que destaques se cobrem com sungas menores que um
dedal, rebolando lascivamente, acusar um mijão de atentado ao pudor é piada.
Mais honesto seria prendê-los por sujar a cidade.
Não
houve multidões assustadoras, não houve violência e a equipe de garis limpava
as ruas - a Paulista, pelo menos - já durante o desfile geral. O que, então,
teria feito a Parada parecer tão reduzida, especialmente aos olhos dos
formadores de opinião, mesmo daqueles militantes do movimento gay antenado?
Talvez a explicação esteja na "qualidade" de quem veio se divertir na
festa. Era "o povo da perifa, de Itaquera, Campo Limpo, Guaianazes, Vila
Sabrina"... Era o que a classe média bacana e estudada chama de
"gente feia".
Era
mesmo uma população que não se vê nos Jardins - a não ser usando uniformes de
faxina, porteiro ou empregada. Eram pessoas vindas de longe - dois ônibus, metrô,
trem, tudo junto - para exibir-se na avenida símbolo de uma cidade que também é
deles. Quando aqueles meninos e meninas, usando roupas que só muito vagamente lembram as
"de grife", rebolavam os quadris no cruzamento da Paulista com a
Augusta, alguma coisa acontecia em seus corações. A cidade era deles, mesmo que
apenas durante uma parada.
No
primeiro momento, cheguei a pensar que a visibilidade dos adolescentes gays em
bairros distantes da Paulista estava bem avançada. Olhando aqueles rostos
maquiados, com perucas meia-boca e boás da 25 de Março, pensei que devia ser
muito difícil pra eles fingir um comportamento hétero. Ousada, a molecada
dançante. Depois, voltando pra casa, continuei matutando: a barra pra eles
continua tão pesada quanto antes, mas talvez agora tenham mais coragem de se
expor. Será?
Isso
talvez explicasse aquela "invasão" à Paulista. Era ali, na avenida
mais cara de São Paulo, que eles vinham impor a própria cara. Não há espaço
melhor, menos agressivo, mais adequado. Protegidos por batalhões de policiais -
que não vão bater, nem humilhar, nem nada -, os meninos e meninas com visual
pós-andrógino podiam dançar na rua como se não houvesse amanhã. Não haveria
mesmo um amanhã igual ao "hoje" daquele momento. Muitos dançavam tão
inebriados de si mesmos que pareciam nem ouvir a música que vinha dos trios.
Faziam seu próprio ritmo, criavam seus passos, moviam-se no seu mundo interior.
Faziam,
esses meninos e meninas distanciados do "bacana", aquilo que os
estudiosos chamam de carnavalização do mundo oficial. Em suas casas lá longe,
receberam as notícias de um lugar onde os gays podem vestir uma camisa listada
e sair por aí - às vezes, apanhando até a morte, mas isso acontece na rua de
baixo também, mas quando é na Paulista vira notícia. Viam a cantora famosa
exibir sua companheira e dizer "estou casada com ela" de boca cheia
(e nessa hora deu pra sentir que o gesto de Daniela Mercury vai além dela
mesma). Era ali, na Paulista, que eles deviam estar.
Deviam
mesmo. O "mundo gay oficial" já cresceu a ponto de poder ser virado
do avesso e carnavalizado, sem que seja preciso transformá-lo em personagem
caricato de novela. As crianças pintadas e embriagadas nos devolvem - de forma
exagerada, over, pantagruélica - o mundo que vendemos pra eles como o mundo certo,
sem Felicianos, Franciscos e Malafaias condenando ao fogo eterno. Mas atentemos
para o recado que eles trazem: eles não querem ser castigados pelas igrejas, mas
também não engolem a ditadura dos cheirosinhos. Sem jeans de grife, sem
conhecer Nova York ou badalar no Ritz, eles só querem botar seus blocos na rua.
Abram passagem.
Lindo texto, amo sua sensibilidade.
ResponderExcluirAna V.
Bonito por demais.Faço questão de divulgar para todos meus contatos.
ResponderExcluirconcordo, parada é uma festa popular pra se divertir. além da chuva, acho que a diminuição do público se deve tb pq o evento perdeu o interesse, deixou de ser novidade. beijos, pedrita
ResponderExcluirMario,
ResponderExcluirtive a mesma impressão q vc da Parada, a décima sétima!
Estava com um amigo mineiro que já morou aqui, mas está de volta a Congonhas/MG há anos. Dizia a ele que o evento virou uma festa da cidade. E "meninos e meninas", como vc bem diz, são mesmo um retrato da nossa periferia e que aproveitam a Parada para 'mostrar a cara'.
Os discursos no carro oficial foram amenos, com a dona ministra ocupando e não deixando espaço para os demais. Tanto que o prefeito não chegou à Consolação e o aguerrido e combativo Jean Wyllys pouco conseguiu falar.....
Bjs, saudade!
Maurício
Muito bom Mario. Como sempre. bjs
ResponderExcluirGostei do olhar sobre a parada gay, creio que é mesmo por aí...Reich dizia que a classe abaixo da classe média não tinha problemas com a repressão sexual, e seu texto ilustra a passagem.
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