sexta-feira, 22 de maio de 2009

Três meninas do Brasil


Aos 9 anos, Karina Ferrari, a Anusha de “Caminho das Índias”, dança com graça e leveza. Aos 7 anos, a pequena Maísa assusta-se com um monstro de mentira, corre, bate a cabeça e chora em rede nacional. Aos 8 anos, uma bala cortou qualquer possibilidade de Gabriela seguir ou contestar os caminhos que seus pais traçaram para ela. A dor profunda de uns e o silêncio patético de outros são reais, quase palpáveis de tão incômodos. Anusha continua dançando, inocente e sem culpa do que aconteceu às meninas que podiam ser suas colegas de escola, quem sabe vizinhas que, de brincadeira, imitassem seus passos graciosos na novela...
De Gabriela, pouco se sabe, a não ser o trágico. Durante um assalto, um dos ladrões irritou-se com o alarme e disparou, atingindo a menina na cabeça. Até então, nenhum de nós tinha ouvido falar na menina que morava em Rio Claro, tratada como princesa pelos pais: vivia num condomínio fechado, aparentemente distante da violência que ameaça casas e prédios comuns. Alguém facilitou a invasão, as câmeras de segurança não tiveram utilidade – e a menina morreu. Seu assassino, até este momento desconhecido, talvez estivesse drogado, talvez pensasse que um revólver é como o botão de um game, aperta-se e pronto. Não era.
Sobre as crises de choro da pequena Maísa – uma menininha igual a tantas outras, com pose de anã, criadora de gracinhas que fazem vovó dar risada – só uma coisa me impressiona: o silêncio dos pais. O que os impede de vir a público? O contrato draconiano assinado com Silvio Santos, que proíbe a menina de ser vista em qualquer lugar que não seja a tela do SBT? Os 20 mil reais que caem todo mês na conta da família, suficientes para garantir uma boa vida pra todo mundo e abafar qualquer choro da menina? Ver o Brasil inteiro rindo das lágrimas de sua filha não abala o coração dessa mãe, desse pai?
Os pais de Gabriela cercaram a filha de cuidados – mas o que se convencionou chamar de mundo real invadiu o condomínio, como o mau cheiro da carniça que apodrecia além dos muros. Os pais de Maísa preferiram exibir a filha no alto da cerca, como um miquinho amestrado. A patuléia do lado de lá, aquela que habituou-se ao fedor da carniça, ri da menina, dos seus chistes irreverentes – não porque ela seja irreverente, mas porque apenas fala o que vem à telha – e não vê nada demais em continuar rindo, mesmo quando a menina se machuca e chora. Faz parte – não do circo, que é legal – mas do arremedo de picadeiro em que vivem essas pessoas.

Agora, vem o ministério público e chama o SBT às falas. Demorou pra tomar uma atitude. Provavelmente os que deveriam cuidar do bem estar das crianças se divertiam com as gracinhas da menina. Aliavam-se aos pais gananciosos e ao apresentador senil, fazendo de suas risadas o som de realejo que estimulava a menina a ser mais engraçadinha.

Pouco importa que, daqui a algum tempo, a menina cresça, perca a graça e, com isso, o emprego. Pouco importa que ela acredite que o mundo é um auditório, onde qualquer coisa possa ser dita. Quem se importa com os limites que o mundo vai, de surpresa, impor à ex-engraçadinha? “Quando chegar a hora, a gente resolve”. Numa trágica contradição, foi o mundo que quebrou os limites do universo de Gabriela...
Enquanto isso, Karina Ferrari arregala seus lindos olhos de bambi, move as mãos com delicadeza e dança, leve como uma pluma. Não haveria nada de errado com a menina que dança, sob a proteção rica dos pais de ficção, se não se insinuasse ali um ensinamento perigoso: Anusha vai quebrar as tradições indianas e ensinar aos telespectadores que nossos costumes, sim, é que são civilizados. Tão civilizados quanto a morte de Gabriela e o choro que provoca risos de Maísa.

2 comentários:

  1. Não tenho o que comentar, só aplaudir. Adorei o texto.

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  2. Gostei muito do que você escreveu, costurando as três histórias. Eu ando muito indignado com a história da menina Maisa, explorada, como você falou, como um mico de circo, ou de realejo. É uma barbaridade o que fazem com a criança. OLha que muitas vezes penso como um escritor, que não lembro o nome, que dizia que as crianças são anões maus. No caso da Maisa ela é o anãozinho que faz o papel do bobo da corte, se deixando ser humilhado. Claro que ela ainda não tem discernimento para saber disso, mas seus pais têm.

    Mais dia, menos dia, ela sairá da TV e o que será dela? Esse mundo não vai existir para sempre, ela vai crescer e provavelmente perdera a "graça". Tenho medo do que possa ocorrer: lembremo-nos de Pixote e de Shirley Temple...

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