quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Gastronomia & Gincana


Desde o século 16, quando François Rabelais animou o Renascimento com as aventuras de Gargantua e Pantagruel, colocar alimentação farta, sexo e prazer no mesmo balaio tornou-se comum. O cinema não deixou passar - e quantos jantares fantásticos são comparados hoje em dia à "Festa de Babette", numa lembrança do delicioso filme de 1987, com Stephane Audran dirigida por Gabriel Axel... Quem não saiu do cinema com água na boca, depois de ver aqueles áridos escandinavos virando os olhinhos de prazer carnal a cada prato servido pela imigrante francesa?

A ligação entre sexo, gastronomia e prazer sempre foi tão intrínseca que até hoje soa uma ousadia o roteiro de "A Comilança", dirigido por Marco Ferreri, em 1973. Os anos 70 foram tempos em que ainda havia radicalismo de ideias no cinema europeu. Daí, a força do filme, que mostra um grupo de amigos (Marcelo Mastroianni, Michel Picolli, Ugo Tgnazzi, Phillipe Noiret e Andrea Ferreol, entre eles - um timaço) reunidos numa casa de campo para comer até morrer. Era o que faltava para simbolizar o ciclo da vida: a morte. Sexo, comida, prazer e morte. Mais vida que isso...

De certa maneira, eu esperava que "Julie & Julia" me desse um pouco do prazer que Babette causara, ainda no século 20 - obviamente sem o radicalismo suicida da Comilança. A ideia anima: Julie, uma candidata a escritora, em 2002, cria um blog prometendo preparar no prazo de um ano as 500 e tantas receitas de um livro clássico da culinária nos Estados Unidos, escrito nos anos 50 por Julia Child. O filme começa bem, com Meryl Streep se impondo desde a primeira cena, como a caipirona Julia , deslumbrada com Paris e entediada com a vida de dona de casa sem filhos. A mesma atriz que deu um banho de classe e elegância em "O Diabo veste Prada", agora rouba todas as cenas como a expansiva Julia - e mesmo sem contracenar, rouba as cenas da jovem Julie, vivida por Amy Adams (uma impressionante versão jovem de Cinthia Nixon, a Miranda de "Sex and the City").

Julie é simpática e contemporânea, mas sua trajetória como personagem é entediante. Onde ela arruma tempo para trabalhar longe de casa, fazer compras no mercado, cozinhar um prato difícil por dia e, ainda, tentar dar conta do maridão jovem, bonito, atencioso... Ter um piti porque a gelatina desandou, francamente, é pouco eletrizante pra um filme de duas horas. E o chororô da crise... please...

Apesar dos defeitinhos, "Julie & Julia" é um filme delicioso de ver: o grupo dos anos 50 é o mais divertido, até nas pequenas participações (Jane Lynch, a analista de "Two and half men", faz a irmã de Meryl, ótima). No começo, a gente acha que devia ter levado um estoque de barrinhas de cereal pro cinema, porque aquelas receitas vão atiçar o apetite. Bobagem. Tanto Julie quanto Julia acabam se dedicando com afinco à tarefa de aprender aquelas receitas porque se impuseram um desafio - e não há nada mais americano do que vencer um desafio.
Falta o deliciar-se, o lambuzar-se mesmo. Na hora em que servem as refeições, falta aos comensais aquela expressão de verdadeiro prazer que temos diante de um prato delicioso. Em tempo: os atores dizem que sentem prazer, comem fazendo uhms e ahms, mas o prazer carnal, visceral, o olho brilhando de gula e luxúria, ah, isso não tem, não. O grupo dos anos 50 ainda se entusiasma um pouco mais, talvez porque saboreie as receitas em Paris - mas os contemporâneos vivem em Nova York e dão a impressão de que trocariam aquele pato desossado por um hambúrguer com fritas, sem dor na consciência.

Graças ao roteiro - que tem ótimos momentos - há no filme os ecos de um outro sucesso dos anos 1980, "Nunca te vi, sempre te amei": as protagonistas nunca se encontram e a única cena em que aparecem juntas é a da foto acima. Essa reversão de expectativa pode frustrar alguns, mas não deixa de ser curioso.
A vantagem é que você pode ver o filme na sessão das 10, sem correr o risco de sair do cinema desesperado pra entrar no primeiro restaurante francês... fechado a essa hora da noite. É um filme sobre jantares requintados, que não desperta o apetite. Perfeito pra quem tá de dieta. Agora só falta mesmo aparecer a versão brasileira, com Fernanda Montenegro fazendo a Ofélia e Marília Pêra, a Palmirinha.

8 comentários:

  1. Mário, tô adorando seu blog. Articulado, bem escrito, divertido e sério ao mesmo tempo. Trabalho de profissional. Receba os meus parabéns e o meu abraço, querido.

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  2. Mas o filme não é sobre uma dona de casa que, perdida sem ter o que fazer vai para a cozinha. É sobre as dificuldades que a gente encontra quando se propõe a fazer algo, é sobre garra, sobre vondade, sobre desafios, por banais que estes possam parecer. O livro da D Julia foi um marco na história gastronômica americana, antes dele havia apenas "how to make pancakes", levou 8 anos para ser escrito e publicado, então não é apenas o fruto do trabalho de uma "dona de casa que não tinha o que fazer" Quando ela se desidiu a fazê-lo o fez com profunda dedicação. É preciso lembrar também, que D. Julia Child fez um enorme sucesso na televisão, com seu jeitão de caipira, deliciosamente caracterizado por Meryl Streep, levou ao "lares americanos uma nova maneira de cozinhar. O filme então é sobre desafios, sobre as dificuldades que enfrentamos para chegarmos onde queremos.
    Filó

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  3. Filó, nós não discordamos. Mas vc tem mais bondade no coração que eu... rs. A personagem, no começo, é uma dona de casa entediada, sim. Isso fica claro. Ela é dedicada, empenhada, tudo de bom - e por isso (mais o ímpeto da Meryl) nos conquista.
    Por ter vencido um desafio auto-imposto, por ter dado uma volta por cima e, principalmente, por ter feito muito sucesso durante décadas, Julia Child se torna um personagem perfeito pra filme americano. Nos atuais filmes made in USA, a derrota do personagem acontece a partir dos 20 minutos de história, mas se resolve (com emoção, de preferência) nos 20 minutos finais da película. É uma marca, eu já entro na sala sabendo que vou ver essa receita de bolo. Como toda receita, algumas resultam ótimas, outras apenas competentes. Não ruins, de maneira alguma, mas sem aquele algo mais. Abçs

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  4. Você tem um humor muito peculiar, gosto muito de seus textos mas, quando escreve sobre assuntos mais densos você realmente se supera.
    Filó.

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  5. oi Mário:
    eu também fiquei com esse gosto meia-boca ao ver o filme...
    Que conflito tem, me diz??
    Vc já sabe que dona Julia (deliciosa encarnação de Meryl, sem trocadilho) vai dar conta do recado - quem não daria, sendo casada com diplomata, inteligente e morando em Paris?
    E a Julie, que é fofa, mas meio chatinha - ô marido paciente, aquele... - eu fiquei frustrada porque as duas nunca se encontram. Faltou isso, a meu ver.
    Um bocado mais de molho e um pouco de pimenta. Acho que o meu gosto culinário e cinematográfico é mais caliente - como o seu!
    E fiquei curiosa de assistir a algum dvd da verdadeira Julia Child dando aulas de culinária na TV, deve ser muito engraçado!
    bj

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  6. Eu gostei do filme, apesar de não ser o melhor da diretora. A Maryl está muito bem, como sempre. Acho até que ela poderia fazer o papel da mãe do Lula, quando o filme ganhar um remake hollywoodiano.

    E a Julie é muito fofinha!!! É de quem eu mais gosto no filme.

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  7. Vita, seu tarado desinformado! Chamar uma mulher de fofinha equivale, conforme o humor, a chamá-la de gorda, obesa, hipopótama... rs

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