domingo, 14 de junho de 2009

Ver Fernanda


Uma cadeira aproxima Fernanda-mãe da Fernanda-filha. Há quatro ou cinco anos, Fernandinha Torres implodiu os palcos com uma interpretação vigorosa da sexagenária desbocada de “A Casa dos Budas Ditosos”. Passava quase duas horas sentada atrás de uma mesa, pretensamente dando uma palestra, na qual relatava escandalosas memórias sexuais. Era um momento de puro teatro – aquela mulher ainda jovem passar a experiência de uma velha, sem recorrer a próteses, peruca de fios brancos e voz trêmula.
Atualmente, é a Fernanda-mãe, também conhecida como Fernandona, que recorre à cadeira. Durante 60 minutos, a escritora francesa Simone de Beauvoir reencarna no corpo de Fernanda Montenegro, na peça “Viver sem tempos mortos”, baseada nas cartas que Simone de Beauvoir deixou. Às vésperas de completar 80 anos, Fernandona transmite a uma platéia que, muito provavelmente, nunca leu “La” Beauvoir, o que pensava e sentia a mulher que mudou a imagem que o mundo – e a própria mulher – tinha do sexo feminino. Faz uma Simone com os olhos brilhando ao contar como conheceu Sartre. Segura os seios com uma sensualidade que nenhuma siliconada consegue atingir. Simone de Beauvoir existe ali.
A francesa ainda entraria pra enciclopédia como “a mulher” do filósofo Jean-Paul Sartre – embora nunca tenham sido oficialmente casados e tenham mantido uma relação aberta. Abertíssima. E até hoje provocadora de risadas nervosas na platéia, que parece espantada por aquela senhora no palco contar de seus casos com rapazes e meninas, movida unicamente pelo direito ao prazer.
Se Fernandinha provou de vez que era ótima atriz sentada numa cadeira, sua mãe parece estar se despedindo do palco sentada numa outra cadeira. Pode não ser intenção de Fernandona aposentar-se de vez, mas a platéia age como se assim fosse. Aplaude emocionada um espetáculo que nem é pra tanto. Fernanda comove, claro. Domina cada sílaba, entende cada pausa, controla o público com invisíveis cordões de marionetista – mas não atinge as notas sublimes de “Dona Doida”, “As Lágrimas Amargas de Petra von Kant” ou “É”.
Mesmo assim, tem a ousadia de fazer uma peça sem pirotecnia – é ela, vestida de camisa branca e calça escura, sentada num palco cinza, mais nada. E fala de Sartre, de Merleau-Ponty e outros escritores que a gente nem sempre ouviu falar. Num tempo em que as pessoas famosas sublinham o fútil, falar de valores intelectuais soa como um atentado terrorista.
Um ou dois dias antes de eu assistir a “Viver sem tempos mortos”, o jornalista Robinson Borges comentou, entusiasmado: “Tem um momento do espetáculo em que você não sabe se quem está ali é a Simone ou a Fernanda”. É verdade. Simone e Fernanda tiveram em comum a união com um homem forte. Simone com Sartre, Fernanda com Fernando Torres, falecido no ano passado.
Enquanto os franceses levavam uma existência de “fiestas” sexuais, Fernanda e Fernando – pelo menos no que chega a nós – tiveram uma vida dedicada um ao outro. Não se sabe de escapadas ou farrinhas de nenhum deles. No entanto, quando Simone/Fernanda narra o período em que seu homem agonizava doente numa cama, você fica em dúvida: quem está falando? A atriz ou a personagem?
Eu esperava me emocionar mais com Fernanda. Ao mesmo tempo, saí contente do teatro por vê-la em cena, dedicando cada um daqueles minutos a mim – ok, a nós – e fazendo brilhar um texto que, nas mãos de outra atriz, soaria piegas. Depois de Cleide Yáconis, que vivia uma sensacional Simone de Beauvoir na peça “A Cerimônia do Adeus”, de Mauro Rasi, Fernanda Montenegro faz uma Beauvoir provavelmente muito mais interessante do que a original.
É a arte e seu poder recriador. O gesto certo, a luz adequada e a entonação correta – e nossa imaginação concorda que a Rua Doutor Vila Nova é a margem esquerda do Rio Sena e que aquela birosca de café expresso é o Café de Flore, no bairro de Saint-Germain. Pouco importa se, na saída, a discussão será em qual pizzaria terminar a noite. Por uma hora, estivemos respirando o mesmo ar que Fernanda Montengro, Simone de Beauvoir e outras figuras lendárias. Tornamo-nos, nós também, parte da lenda.

5 comentários:

  1. que maravilha, deve ter sido um sonho, que inveja boa. eu até hoje só li um livro da beauvoir infelizmente. beijos, pedrita

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  2. Vi "Lágrima amargas..." de um lugar péssimo,hoje mesmo correndo risco de ser massaacarada, admito que não me empolgou. Mas há uns dez anos vi Fernanda apresentado a entrega de um premio da Fundação Airton Senna, viajei no texto, no ritmo sublime da voz dela,saí do chão, então descobri porque é tão importante.
    Acho muito inteligente ela ser fora de moda, falar de feminismo quando todos dão o tema como desgastado, demonstra compromisso político, engajamento. Chique toda a vida.

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  3. Mário nunca tinha visto Fernandona no palco então para mim foi sublime.Assisti duas vezes sem piscar!Incrivel!!

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  4. Marião,fui ao tetaro por tres motivos:
    -consegui um convite na faixa em meio a desgarça do esgotado
    -apesar dos meus 38 anos de idade e sete de carreira ,nunca havia visti a Fernadona no palco
    -fui conferir se ela era mesmo a maior atriz brasileira viva
    conclusão:Tenho a certeza que ela é uma das maiores atrizes do MUNDO vivas.Beijo

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