segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Famílias do Obama


Pouco tempo depois da queda do World Trade Center, já no ano de 2002, apareceram na TV americana seriados que davam explicação pra tudo. Bones, por exemplo, reconstituía crimes a partir de ossos. Cold Case curava velhas feridas, reabrindo casos antigos e solucionando assassinatos graças à memória espantosa das testemunhas. Without a Trace reencontrava desaparecidos. E, o melhor de todos, Monk era protagonizado por um portador de transtorno compulsivo que colocava ordem no caos de São Francisco. Mesmo quando não eram histórias policiais, o efeito Torres Gêmeas aparecia: em Brothers & Sisters, a família Walker resistia a todos os abalos possíveis. Era uma maneira de a ficção dizer ao público que havia, sim, e sempre, a esperança do mundo voltar ao seu eixo. Era só manter a cabeça fria e a irmandade, unida.
Na atual safra de cinema americano - com o país administrado por Barak Obama e submetido a uma série de decepções econômicas e políticas -, a realidade novamente dá as caras. E, como sempre, a família ocupa um posto importante nos filmes. A família unida, mãos dadas contra todas as ameaças externas, é sempre um grande apoio pra quem vive de ficção. Não há tema mais universal do que as complexas relações entre pais e filhos, irmãos, primos, etc. É tiro e queda.
Em pelo menos três dos filmes candidatos ao Oscar, a Família surge de forma impositiva. Em Inverno da Alma, a protagonista precisa reencontrar o pai para salvar a casa em que vive com os irmãos menores e a mãe doente. É uma jornada clássica do herói, desta vez em versão mulher. Tudo é feminino, no filme - dirigido por uma mulher: as personagens mais fortes e que decidem as coisas, pro bem e pro mal, são mulheres. Elas espancam, elas ameaçam, elas fazem a segurança, elas cortam cadáveres. O homem acompanha, meio de longe, mas sempre presente. É um filme que avança nas velhas discussões do feminismo e coloca machos e fêmeas em situação de igualdade. Os homens do filme podem não decidir, mas não são frouxos como numa novela do Manoel Carlos. Tempos de Obama: é preciso unir forças, esquecer as diferenças (ou, pelo menos, não torná-las impeditivos) e sobreviver no mais áspero inverno.

Em Cisne Negro, uma mãe possessiva infantiliza o quanto pode a filha talentosa, até torná-la perfeita para o balé mas incapaz para a vida e suas contradições. Talvez não seja à toa que o único personagem masculino forte - que poderia ser visto como um paizão da bailarina - seja também o elemento sedutor. Aqui a família é uma ameaça, que não se restringe ao lar. Quem se dedica com afinco ao emprego, faz dele sua razão de viver e tal, transforma o ambiente de trabalho em sua casa: espalha as coisas diante do espelho, como se a mesa do escritório fosse a penteadeira do quarto. É o lar, a caverna onde se busca refúgio e sobrevivência (financeira).

O melhor retrato de um tipo de família, na temporada atual de filmes, está mesmo em O Vencedor. Ao redor do lutador Micky (Mark Wahlberg) giram figuras famintas como carcarás do sertão - o irmão viciado em crack (o estupendo Christian Bale), a mãe leonina e protetora do mais fraco (a também avassaladora Melissa Leo), várias irmãs feias e inúteis e um pai que tenta, mas não fura o bloqueio matriarcal. São figuras que desmentem o chavão da família unida e tornam boa parte do filme a incômoda imagem de um clã auto-devorador. Não há como justificar a ânsia esfomeada de mãe, irmãs e irmão; eles são desse jeito, aprenderam a sobreviver desse modo e a única maneira de escapar de sua energia sugante é cortar o laço de vez. Não é todo mundo que consegue. Pior ainda: o cinema americano acredita que um personagem ideal jamais tomaria atitude tão radical. Uma pena.

Mesmo assim, são retratos que ficam gravados na memória de quem vai ao cinema e tenta entender o mundo ao redor. Uma sociedade que precisa urgentemente sinalizar a importância da união familiar é a mesma que produz figuras capazes de invadir escolas armadas e matar meio mundo. Quando coloca a mãe da bailarina na arrepiante sequência final de Cisne Negro ou quando promove uma forçada paz entre os povos nos personagens que cercam o mocinho de O Vencedor, o cinema da era Obama está querendo nos convencer que, mesmo tendo caráter duvidoso, nossos familiares merecem crédito. Pode ser muito bonitinho como lição de moral, mas é péssimo como dramaturgia.

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