Pouco tempo depois da queda do World Trade Center, já no ano de 2002, apareceram na TV americana seriados que davam explicação pra tudo. Bones, por exemplo, reconstituía crimes a partir de ossos. Cold Case curava velhas feridas, reabrindo casos antigos e solucionando assassinatos graças à memória espantosa das testemunhas. Without a Trace reencontrava desaparecidos. E, o melhor de todos, Monk era protagonizado por um portador de transtorno compulsivo que colocava ordem no caos de São Francisco. Mesmo quando não eram histórias policiais, o efeito Torres Gêmeas aparecia: em Brothers & Sisters, a família Walker resistia a todos os abalos possíveis. Era uma maneira de a ficção dizer ao público que havia, sim, e sempre, a esperança do mundo voltar ao seu eixo. Era só manter a cabeça fria e a irmandade, unida.
Na atual safra de cinema americano - com o país administrado por Barak Obama e submetido a uma série de decepções econômicas e políticas -, a realidade novamente dá as caras. E, como sempre, a família ocupa um posto importante nos filmes. A família unida, mãos dadas contra todas as ameaças externas, é sempre um grande apoio pra quem vive de ficção. Não há tema mais universal do que as complexas relações entre pais e filhos, irmãos, primos, etc. É tiro e queda.
Em pelo menos três dos filmes candidatos ao Oscar, a Família surge de forma impositiva. Em Inverno da Alma, a protagonista precisa reencontrar o pai para salvar a casa em que vive com os irmãos menores e a mãe doente. É uma jornada clássica do herói, desta vez em versão mulher. Tudo é feminino, no filme - dirigido por uma mulher: as personagens mais fortes e que decidem as coisas, pro bem e pro mal, são mulheres. Elas espancam, elas ameaçam, elas fazem a segurança, elas cortam cadáveres. O homem acompanha, meio de longe, mas sempre presente. É um filme que avança nas velhas discussões do feminismo e coloca machos e fêmeas em situação de igualdade. Os homens do filme podem não decidir, mas não são frouxos como numa novela do Manoel Carlos. Tempos de Obama: é preciso unir forças, esquecer as diferenças (ou, pelo menos, não torná-las impeditivos) e sobreviver no mais áspero inverno.
Em Cisne Negro, uma mãe possessiva infantiliza o quanto pode a filha talentosa, até torná-la perfeita para o balé mas incapaz para a vida e suas contradições. Talvez não seja à toa que o único personagem masculino forte - que poderia ser visto como um paizão da bailarina - seja também o elemento sedutor. Aqui a família é uma ameaça, que não se restringe ao lar. Quem se dedica com afinco ao emprego, faz dele sua razão de viver e tal, transforma o ambiente de trabalho em sua casa: espalha as coisas diante do espelho, como se a mesa do escritório fosse a penteadeira do quarto. É o lar, a caverna onde se busca refúgio e sobrevivência (financeira).
O melhor retrato de um tipo de família, na temporada atual de filmes, está mesmo em O Vencedor. Ao redor do lutador Micky (Mark Wahlberg) giram figuras famintas como carcarás do sertão - o irmão viciado em crack (o estupendo Christian Bale), a mãe leonina e protetora do mais fraco (a também avassaladora Melissa Leo), várias irmãs feias e inúteis e um pai que tenta, mas não fura o bloqueio matriarcal. São figuras que desmentem o chavão da família unida e tornam boa parte do filme a incômoda imagem de um clã auto-devorador. Não há como justificar a ânsia esfomeada de mãe, irmãs e irmão; eles são desse jeito, aprenderam a sobreviver desse modo e a única maneira de escapar de sua energia sugante é cortar o laço de vez. Não é todo mundo que consegue. Pior ainda: o cinema americano acredita que um personagem ideal jamais tomaria atitude tão radical. Uma pena.
Mesmo assim, são retratos que ficam gravados na memória de quem vai ao cinema e tenta entender o mundo ao redor. Uma sociedade que precisa urgentemente sinalizar a importância da união familiar é a mesma que produz figuras capazes de invadir escolas armadas e matar meio mundo. Quando coloca a mãe da bailarina na arrepiante sequência final de Cisne Negro ou quando promove uma forçada paz entre os povos nos personagens que cercam o mocinho de O Vencedor, o cinema da era Obama está querendo nos convencer que, mesmo tendo caráter duvidoso, nossos familiares merecem crédito. Pode ser muito bonitinho como lição de moral, mas é péssimo como dramaturgia.
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