segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Mortos sem Sepultura


Pego emprestado o título de uma antiga peça de Jean-Paul Sartre (tudo do Sartre é antigo, eu sei, ele anda meio fora de moda) para falar do que tenho visto ultimamente nos cinemas. No futuro, quem se debruçar sobre este período do cinema vai achar que tínhamos todos virado místicos, paranormais ou alguma coisa do gênero. Certamente a culpa não é dos espíritas e do sucesso espantoso de "Chico Xavier" - ao que consta nem Clint Eastwood nem aquele diretor tailandês, cujo nome é o encontro mundial das consoantes sem vogal, tiveram o privilégio de ver os bons desempenhos de Nelson Xavier, Antonio Angelo, Cássia Kiss e Cristiane Torloni. Mas tanto o americano quanto o thai apelaram pro além em seus filmes mais recentes.

Não vou aqui discutir os filmes - quem me conhece sabe que não saí nada comovido de "Além da Vida" - mas dividir com os seguidores do blog essa perplexidade: que deu na gente de, cada vez mais, recorrer aos falecidos pra explicar o que acontece? Só esta semana em São Paulo, são uns 3 ou 4 filmes de gente procurando contato com quem se foi, como se o conselho dos mortos servisse para dar alguma luz.

Em geral, o contato dos personagens vivos com os que abotoaram o paletó de madeira tem fundo emocional capaz de fazer uma pedra chorar. Eu choro, não nego, mesmo quando não gosto do filme. É aquele choro que, quando passa, dá raiva. Por que aquele personagem - o vivo - não segue sua vida, diabos? Por que não toca o barco? Uma das coisas mais definitivas até o momento é que não há retorno quando se ultrapassa a última fronteira (gostaram?). Quem fica sabe que o jogo agora tem novas regras e um jogador desfalca o time.

Incomoda-me essa dependência dos que partiram. Essa consciência culpada - "eu nunca disse a ele/a que o adorava/admirava/amava etc etc" - é o que faz a fortuna dos confessionários e consultórios de terapia. Ok, recorramos aos padres e terapeutas, se isso ajudar - pelo menos são seres vivos nos ouvindo e questionando. Há igualdade de condições. Mas com um morto... Convenhamos, a gente recorre a eles porque acredita que eles têm informações privilegiadas sobre o futuro, as quais eles não hesitariam em dividir conosco, seus entes queridos que sobraram neste vale de lágrimas. Haveria, portanto, um interesse aparentado do mesquinho nessa lacrimosa conversa com o além.

Não é por acaso que o filme com menos pegada culpa-no-cartório é o tailandês "Tio Boonmee, que Pode Recordar suas Vidas Passadas" - o da foto que ilustra o post. Talvez por conta da formação budista de toda a equipe. No filme, que ganhou a Palma de Ouro em Cannes, o Tio do título está à beira da morte e recebe a visita de uma cunhada, um sobrinho - vivos - e alguns mortos. A convivência entre eles é bastante razoável e há momentos de extrema poesia: a mulher morta há 19 anos permaneceu igual e os vivos envelheceram, o que os faz refletir sobre a passagem do tempo. Há consultas sobre o que espera os que morrem e uma frase demolidora: "O ceu é superestimado pelos vivos".

Nossos mortos não envelhecem, não mudam de opinião, não mais nos surpreendem. Nossos ídolos, que morreram jovens, não têm direito a trocar de grupo, partir pra outro estilo, nada. Daria até pra dizer que nossos falecidos são conservadores. Portanto, pedir conselho a eles é meio que recorrer ao tiozinho do sermão. Como se qualquer pessoa se tornasse um guru sensato, ao passar pro andar de cima (acho engraçada essa imagem de morte, que o ator-diretor Otavio Martins volta e meia deixa escapar).

Cada um acredita no que quer e pronto. Eu mesmo já circulei em centro espírita, consultei erê e cigana, fiz o jogo do copinho e assisti a medium incorporando artista plástico. Não acho que nada seja impossível, mas não é por isso que vou correr a cada parabólica mediúnica sempre que estiver com dor de corno, quiser me arriscar num trabalho novo ou fazer uma viagem.

A vida é território dos vivos, mas temos de reconhecer: do jeito que a coisa anda, vamos aposentar de vez o chavão "Morreu, descansou". Nunca, como agora, os mortos tiveram tanto pra fazer.

8 comentários:

  1. Sensacional, Mario!
    Nunca mais o tal "descanso eterno" de que tanto falam...

    ResponderExcluir
  2. Belo texto, Mario.
    A primeira vez que entrei neste blog foi através de um amigo, Paulo Cunha, que citou uma frase sua no blog dele: “Nossa eternidade tem a duração da memória de quem nos ama”. Talvez isso explique a necessidade que temos de chorar e lembrar nossos mortos, e querer até manter contato com eles. Nós, os que ficamos, somos - mesmo que inconscientemente - os responsáveis por fazer com que a existência de quem amamos não caia no esquecimento. E afinal, também somos o que perdemos.
    Grande abraço.

    ResponderExcluir
  3. Paulo, essa frase faz parte de um espetáculo que escrevi para os Parlapatões, "Pantagruel". Era a fala final do protagonista e eu, até hoje, gosto muito dela. Concordo com você, lutamos para preservar a memória dos que amamos e que se foram, pq é uma maneira de preservar a nossa própria memória neste mundo. Mas o que me incomoda é a dependência da palavra dos mortos, Lembrar de quem se foi é humano, é o que nos salva da poeira.

    ResponderExcluir
  4. Oi Mario, tudo bem! Estou iniciando meu Blog e portanto tenho olhado vários outros Blogs, gostaria de ser sua “perseguidora”.
    Falando sobre esta sua postagem: Tenho experiência muito íntima ao assunto. Minha avo é médium – ela é do sitio, nunca estudou, trabalhou na roça, era a benzedeira da região – sempre foi católica. Ela é médium porque é, porque aceitou essa dádiva, sei lá... Lembro-me das poucas sessões para a família (pois meu avô não aceitava) sempre muito divertidas quando alguns espíritos vinham para fazer graça, ou dizer o sexo do bebê de alguma mãe grávida, ou sofrimentos amorosos. Estes espíritos, suas vindas eram permitidas pelo espírito protetor dela, outros de ma índole, bravos, ditos: do mal, eram recusados – não eram da mesa branca. Bom, ela (ou o espírito protetor dela) foi meu porto sentimental e existencial por um bom período. Mesmo de São Paulo (família do Paraná) eu enviava perguntas através de minha mãe em conversa por telefone. Uma certa vez, morando com mais cinco amigos em uma casa no bairro Saúde (todos juntos alugamos a casa) eu ouvia vozes, barulhos na escada, alguma coisa batendo... durante a noite de sono. Perguntei ao espírito da minha avo, o que era isso. “Pergunta enviada por telefone, através da minha mãe.” Resposta: Morava antes na casa uma senhora cega que usava bengala, ela não sabia que havia morrido. O espírito pediu que eu acendesse uma vela e orasse para que os anjos falasse à ela que estava morta e a conduzisse... algo assim. E o medo de acender uma vela para esse fim? Ok, fiz. Fiz porque investiguei a “resposta”. Perguntei aos vizinhos se conheciam quem morava na casa. Eles responderam que era uma senhora (não lembro o nome dela) que era cega, que vivia pedindo para o jardineiro cortar a cerca viva do quintal frente a rua, porque batia a bengala na cerca viva e dizia que o mato estava grande. Afirmaram que a cerca nunca chegava a ficar bonita, verdinha, e que era uma pena. Ui!
    Mario, eu não inventei isso é verdade. Bj grande.

    ResponderExcluir
  5. Vera, que história ótima! Imagine, espíritos que enxergam nem sempre conseguem fazer a passagem... já pensou uma cega? Lembrou aquela série Ghost Whisperesrs, vc já assistiu? Interessante.
    Bom, mas o que interesssa é: bem vinda ao mundo dos blogueiros. Você vai ver que isso vicia =, enjoa, vicia de novo... uma delícia.

    ResponderExcluir
  6. Vicia mesmo, Mário. E parabéns pelo post, cara.

    ResponderExcluir
  7. Mário:
    Sempre a gente ri com seus textos, seja os do palco seja os q vc posta aqui! (claro q nos dos veículos tradicionais tb!)
    Sua tirada sobre os mortos não descansarem, ao contrário, estão sendo muito requisitados, é hilária!
    Mas não posso deixar de apontar um lance: nas teorias espiritualistas, o desencarnado/ morto escolhe a melhor forma ou como melhor ele se via aqui na terra para se mostrar para os entes queridos quando aparece. Daí a personagem do filme vir mais nova do que o filho!
    Mas não gostei nem um pouco desse filme.... é fantasmagórico demais pro meu gosto!
    Bjs
    Maurício

    ResponderExcluir
  8. Belo texto, ainda bem que tem gente com sensatez suficiente para pensar voisas desse tipo. O apego ao além é muito grande, penso que é uma forma de fugir daqui, desse plano real, e, às vezes, muito cruel. Mas, a vida é aqui mesmo, é bom lembrarmos disso e deixar nossos queridos mortos em paz. O que se tem para fazer para ou pelas pessoas é bom fazermos enquanto estão vivas, na nossa convivência, pois, depois vira lamento.

    ResponderExcluir