sábado, 3 de outubro de 2009

Minha professora de espanhol


No momento em que escrevo este post, a cantora argentina Mercedes Sosa pode ter morrido. Até ontem, estava muito mal numa UTI e tinha recebido até a extrema-unção. Tem, ou tinha, 74 anos e, num tempo em que Oscar Niemeyer enfrenta mesas de cirurgia aos 101 e dona Canô só falta lutar capoeira aos 102, Mercedes era uma menina-moça.

Pode ser que, aos olhos de hoje, Mercedes Sosa seja uma cantora gorda, de vozeirão dramático, atracada a um tambor e enrolada num poncho que seria peça de museu até em Visconde de Mauá. Mas para quem, como eu, entrou no mundo da música pela porta do show "Falso Brilhante", Mercedes Sosa é - no mínimo - uma lembrança emocionante.

Em 1976, depois de assistir "Falso Brilhante", o show que mudou duas vidas, a da Elis e a minha, comecei a me interessar por tudo quanto era música "bacana" - no meu caso, qualquer música que não tocasse no Barros de Alencar e nem fosse algum baião do Luiz Gonzaga (que eu adoro, mas que ouvi toda a infância, criado numa família de migrantes pernambucanos). No show e no disco, Elis cantava "Gracias a la Vida" e "Los Hermanos", ambas do repertório de uma cantora argentina, de quem nunca tinha ouvido falar: Mercedes Sosa. Vinham juntos também nomes de sonoridade estranha, como Violeta Parra, Victor Jara e Atahualpa Yupanqui, todos grandes poetas e compositores latinos.

Pouco tempo depois, a própria Mercedes veio fazer show no Brasil - no ginásio do Ibirapuera, com participação de Milton Nascimento e Chico Buarque, salvo engano. Na época, eu trabalhava como menor estagiário no Banco do Brasil e a moçada que era escriturária - antenadíssima - me pediu pra comprar os ingressos pra todos na Galeria Prestes Maia. Eu não poderia fazer serviços externos, era a regra. Mas - desde cedo uma simpatia só - quebrei o galho. Estimulou a chantagem: se eu fosse, eles se cotizavam e pagavam o meu ingresso. Fui sem fazer muita idéia do que ia assistir.

Na segunda metade dos anos 70, muitos jovens se engajaram na resistência à ditadura sem necessariamente pegar em armas ou assaltar bancos. Era uma resistência por atitude, por pequenos gestos, por movimentos mínimos que acabaram ajudando a minar o poder militar. Era o mais difícil, minimizar esse poder no dia a dia, derrubar o ditador que havia nas pequenas autoridades - o bedel, o pai, o tio, o professor, o chefe.

Isto tudo é, obviamente, a visão quase ingênua de um menino de 15, 16 anos. Mas naqueles tempos, pra mim, cantar "Gracias a la Vida" era resistir à ditadura. Descobrir que havia hermanos do outro lado do muro, tão ou mais fodidos que nós, era uma maneira de lutar. Lembro do primeiro chileno que vi de perto, um rapaz bonito, fugitivo da guerrilha de lá, escondido na casa de um amigo no Parque Edu Chaves. Lembro dele escutando a versão de Elis Regina para "Gracias a la Vida". "No es tan alegre, pero ella canta muy bien. Tiene un acento de Chile". Havia sotaques, veja só.

Todas essas lembranças se misturam ao noticiário da agonia de Mercedes Sosa. Procuro na estante um CD dela, tenho dois. Ouço um dedicado ao repertório de Violeta Parra, uma das maiores - se não a maior - compositora chilena. É dela "Gracias a la Vida" e "Volver a los 17", duas canções de amor transformadas em hinos revolucionários... ("Volver" foi escrita quando Violeta, já cinquentona, se apaixonou loucamente por um adolescente... O amor a rejuvenescia e ela transformou isso em música, perfeita para embalar as paixões de adolescentes que sonhavam ganhar o mundo).No CD de Mercedes tem também "La carta", essa sim uma canção de levante armado, sobre a morte de um jovem rebelde... Linda, linda...

Depois, mais taludinho, descobri outras maravilhosas vozes argentinas - Carlos Gardel, Susana Rinaldi... Mas os anos de formação, aqueles que se transformam em filmes, livros e peças nas mãos talentosas de bons artistas - os meus anos de formação tiveram Mercedes e Elis (e Nara, mas aí é outro lance) como trilha sonora. Com os discos de Mercedes e Susana Rinaldi aprendi a falar espanhol, com um vocabulário até que bacaninha. É triste e difícil imaginar que pulmões em colapso tenham sufocado aquela voz tão forte...Ao mesmo tempo é lindo saber que essa voz continuará iluminada, dando gracias a la vida.
P.S. Mercedes Sosa morreu hoje, domingo, pela manhã.

8 comentários:

  1. É, agora só olhando para a cara do Maradona, para matar as saudades.
    Não acrescento nada, você disse o que eu diria, como se tivessemos vivido as mesmas coisas aos diecisiete. Você por acaso é um Mário que morava no Edu Chaves?

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  2. Eu não. Como meu sobrenome, Viana de Araújo, indica, sou de origem eslava, com um pé na Bulgária.

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  3. Salve, Pai Mário! Pelamordedeus, diga que morrerei aos 90 e tantos anos dançando frevo nas ladeiras de Olinda. Diga, vai!
    PS: Muitos anos atrás, assisti a um show de uma mulher y su bumbo no Projeto SP!! Antes de comer Isadora no Pirandello. Tenho tudo ou não para chegar aos 90?

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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  5. Contei sua piada sofre a origem eslava do sobrenome Viana de Araújo para o Leon e ele morreu de dar risada.
    Podemos olhar para o Evo Morales também em caso de saudades de Mercedes.
    Eu não não vi show nem comi a Isadora do PIrandello, como a Ana, mas sabia de cor o único disco dela que eu tinha.
    Fiquei tristinha, confesso.

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  6. Engraçado que o apelido da Mercedes Sosa era La Negra, por conta da cabeleira...
    O Evito tem um apelido parecido, não tem?

    Ah... o pirandello... suspiros, suspiros...

    Ana, eu até digo que vc vai estar dançando frevo nas ladeiras de Olinda, mas quem vai acreditar?

    ah, gente, aderi ao tuíter, mas ainda não sei como usa... mas o meu nome lá é mvianinha.

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  7. Eu estou gostando do twitter. Tem uma amuga da Flora que diz que no orkut todo mundo é feliz,no msn está todo mundo ocupado e no twitter todo mundo sofre.
    É uma ferramenta que permite expressar sentimentos e opiniões instantâneas, acho legal.
    Nos encontremos todos para lá. O meu é mestercosta. Não consegui entrar no seu mvianinha, acho que porque ainda é recente.

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  8. mário querido, sempre me ilustrando; tardissimamente, claro, soube que "Volver a los 17" saiu de uma paixão avassaladora, e eu pensando que dona Violeta era imune a derramamentos que não fossem políticos...
    que bom!
    beijo

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