quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Cartiê, filósofo


Menos de um segundo após o clique, a placidez da água, na foto ao lado, não existiria mais. Remexida, viraria lama talvez e o dono do sapato xingaria o dia todo a sujeira espalhada pela perna. Mas o fotógrafo francês Henri Cartier-Bresson (1908-2004) captou o segundo anterior ao mau humor, à lama e ao caos. E é esse momento eternizado que figura na exposição de 133 trabalhos de Bresson - ou "do Cartiê", como diz a ascensorista do Sesc Pinheiros. Não tem desculpa pra falta de grana, a entrada é gratuita.´

É uma ótima exposição, não só pelos trabalhos do Cartiê (gostei), um mestre no uso da luz, sempre em preto-e-branco, um captador de instantes mágicos, de olhares agudos, de gestos jogados. Não vou me estender em análises - tem gente muito melhor que eu pra isso, a começar do curador da exposição, meu bom Eder Chiodetto. Mas se você prestar atenção vai ver um delicioso jogo de linhas retas, curvas e zigue-zagues, que o Cartiê enxergava na "simples" imagem de uma escadaria em Nova York ou de um beco num vilarejo grego.

O melhor da exposição é que você sai dela pensando na vida - não no sentido depressivo, pelo contrário. Também não sai rindo feito uma poliana-sem-neurônio, que os tempos não estão pra isso. Sai pensando, o que já é lucro. Em exposições de fotos antigas - e nessa há várias dos anos 30 - eu sempre penso que nenhum daqueles retratados está mais entre nós. Até o menininho fofo já deve ter cumprido sua trajetória e partiu desta pra melhor. E, no entanto, estão todos ali, vivinhos da silva, me encarando com olhos intensos. E há quem diga que fotografia não é arte!
Cartiê considerava-se um vampiro, pois buscava apreender a essência do que fotografava - seus retratos, no segundo andar, chegam a perturbar. E outros, como os que ele fez do escultor Alberto Giacommetti fazem rir. A obra de Giacommetti é marcada pelas figuras esguias e longilíneas - e os retratos que Cartiê fez do Alberto (ele chama o escultor assim num vídeo, eu ouvi) mostram que escultor e escultura tinham o mesmíssimo porte. Gostei de ouvi-lo falar nesse vampirismo artístico: eu também me sinto assim, quando ouço frases e conversas que vão me inspirar em cenas, diálogos, crônicas... Nossa antena capta e, muitas vezes, demora anos para reproduzir - mas fica tudo guardado em nós.
Voltemos ao Cartiê. Cartiê também dizia que a foto é como um tiro e, ao mesmo tempo, uma briga com a morte. Ao captar para sempre um instante, o fotógrafo dribla a definitiva ausência, ignora a destruição do tempo, eterniza a fração de segundo. Ele diz muito mais coisas - e coisas muito interessantes - no video exibido no andar térreo. Confesso que, em geral, eu pulo a parte do vídeo. É sempre uma babação de ovo besta em torno do artista ou, pior, uma análise indecifrável do trabalho, pior que os textos que 'explicam' os trabalhos. (Eu sempre acho que texto de exposição é escrito pelo mesmo sujeito que escreve manual de eletrodoméstico: não entendo patavinas). É bom dizer que os textos do Chiodetto são claros e, por isso, profundos. Só os incompetentes são indecifráveis, a profundidade é simples.
No caso do Cartiê, veja só, o video é uma delícia. Fiquei me perguntando se a sabedoria daquele senhorzinho de 80 anos só apareceu por volta dos 75 ou se ele já era sábio aos 35. De todo modo, o olhar inquieto de Cartiê, impaciente com as perguntas, ensina muito a quem acha que há resposta para tudo. Cartiê, que dominou a fotografia e, depois dos 70, começou a desenhar - ele fala coisas lindas sobre isso, no vídeo - ensina que se conformar é o pior dos pecados (e o único que a igreja não condena...).
Até a biografia estampada numa parede é curiosa. Lá pelas tantas, você percebe que a turma do Cartiê era qualquer coisa de espantosa. Ele fez um livro e quem fez a capa? Matisse. E assim ia, só gente que hoje recheia catálogo de museu. E todos vivendo em Paris, o que só acrescenta mais charme à mistura. Dá uma inveja...
p.s. Não perca o terceiro andar, "Bressonianas", com os trabalhos de sete brasileiros influenciados pelo mestre francês: Flávio Damm, Carlos Moreira, Cristiano Mascaro, Orlando Azevedo, Juan Esteves, Marcelo Buainain e Tuca Vieira. Chega a ser melhor.

11 comentários:

  1. Até onde sei e lembro, o 'Cartiê' queria mesmo era ser artista plástico, mais precisamente pintor. Mas por aqueles famosos mistérios da vida, tornou-se fotógrafo. Tenho vergonha de dizer que fotografo, ao ver uma imagem clicada pelo Cartiê. E fico pensando, será que este povo todo que vive com uma digital ridícula na mão sabe quem é Cartiê? Se soubessem, jogariam fora estes mostrengos do consumismo tolo?
    Já estou marcando toca faz tempo com essa exposição. Agora que vc me lembrou quem é o curador, lá vou eu!

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  2. Gente, que coisa, e eu que achava que Cartier era apenas uma marca de relógio!!!!

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  3. Vita, nem todos têm a sorte de ter nascido em berço esplêndido lá em... como é mesmo?... ermelindo... Pois não tem gente que até hoje acha Hermès uma marca brega só por causa do Collor?

    Ana V., vc vai a.m.a.r a exposição. Tem uma tonelada de fotos conhecidas, mas nem por isso menos lindas.

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  4. Hermès é super chique, é marca preferida do Henri Sobel.

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  5. Eu gosto do Sobel. Sei lá, ele não aprendeu português até hoje, dá elza em loja de gravata... mas, pô... eu sou do tempo em que Sobel, dom Paulo Evaristo Arns e o reverendo Jaime Wright uniram esforços contra a ditadura. Tá certo que naquela época a gente achava o Paulo Brossard um paladino da democracia... alguém lembra do Paulo Brossard?

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  6. Lembro sim do senador gaúcho. E tb do Teotônio Vilela, usineiro alagoano alçado a paladino da democracia tb. Bons tempos aqueles! rs
    Mas meu preferido era o Ulysses, principalmente naquele episódio em Salvador fugindo dos carros da PM. Tempos mais educados, apesar da birutice dos milicos. Mas prefiro mesmo o Bresson.

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  7. Atenção, jovens. Ulysses é um que virou almofada da pequena sereia em Angra dos Reis... Quem lembra como chamava a mulher dele? Dona Moira!

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  8. Eu me lembro do doutor Ulisses dizendo que Congresso não era a casa da mãe Joana. E também que tinha orgasmo pelo poder.
    Ele era muito engraçado, grande articulador, sinto falta de políticos assim. Como sinto saudade de assisitir entrevista do Oto Lara Resende, do Nelson Rodrigues. De uma exclusiva com Drummond.

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  9. O Ulysses tinha um tremendo bafo de onça. Mas era de um período romântico da política, quando até os crápulas tinham sua decência - menos o Maluf, que esse já nasceu sem jeito.
    E quem comprava o Jornal da Tarde de sábado, pra ler as entrevistas que a Maria Amélia fazia com Elis, Caetano, Gal, Gil... ah, dava uma inveja...

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  10. Engraçado saber que o Ulysses, o nosso Nemo, tinha bafo de onça. Sabia que a maior porcentagem de votos do Senhor Diretas vinha justamente da classe odontológica??? Nunca ninguém soube explicar essa preferência dos dentistas. Até agora, quando, finalmente, MV declara essa pérola!
    Adoro saber e aprender coisas novas.. hehehe

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