Portugal me comove. Podem falar o que for - país de passado colonialista e predador, racista, etc (e com algumas críticas eu concordo) - mas o fato é que Portugal me deixa comovido como o diabo. Eles, os portugueses, com seu jeito rude e muitas vezes abrutalhado, carregam uma melancolia transparente, mesclada às letras melodramáticas dos fados, a um humor negrérrimo e às expressões do dia-a-dia, com o uso incansável do diminutivo... "Ai, o pobrezito!"...
Portugal voltou ao noticiário, com os lusitanos mordendo as canelas da atriz Maitê Proença. Num momento infeliz, a atriz apareceu num vídeo tirando sarro da propalada falta de inteligência lusa. Maitê foi deselegante, mas os que a criticaram por aqui foram hipócritas. Rir da lógica portuguesa é um esporte tão popular entre nós quanto falar mal de argentinos - mas como foi Maitê que deu a cara a tapa, joga pedra na Maitê. Atenção, eu não estou defendendo a atriz, longe disso - mas questionando os críticos. Quem nunca fez piada com portugueses que atire o primeiro tremoço.
Em campos mais tranquilos, Portugal voltou às minhas lembranças, enquanto lia a deliciosa novela de Luís Ruffato, "Estive em Lisboa e lembrei de você". O livro, com menos de 100 páginas, é uma delícia. Conta a história de Sérgio, um mineirinho de Cataguases que, pelas voltas da vida, acaba num hoteleco de Lisboa. Seus desencontros amorosos com uma prostituta, seus sonhos de vencer na vida trabalhando como subempregado... e sua resistência ao vício do cigarro... Vale a pena ler o novo livro de Ruffato, um autor que manuseia as palavras com prazer e transmite esse prazer a quem lê. Cada página do livro me trazia Lisboa à memória - e olhem que eu, bom paulistano que sou, sou o maior fã do Porto...
Embalado no livro, acabei indo ver "Fados", o novo filme de Carlos Saura. Será um documentário? Não, não é. Ficção, também não é. É um filme de Saura, para o bem e para o mal. É bom, porque faz desfilar diante de nós uma série imensa de cantores influenciados pelo ritmo português - um ritmo que, para minha surpresa, nasceu no século 19. Ou seja, é relativamente novo. E as vozes, as letras... ah, só mesmo em Portugal se pode ouvir um rap influenciado pelo fado. E só mesmo lá uma letra de rap usa a segunda pessoa de forma correta! (E vou defender minha tese: o rap foi feito para a prosódia lusitana - eles comem tantas vogais ao falar que, quando cantam rap, é como se estivessem a falar normalmente).
O mal do filme é o mesmo que atingia "O mistério do samba", o musical que Marisa Monte produziu sobre a escola de samba Portela: se você não conhece minimamente aquele universo, entra do filme mudo e sai calado, sem entender pissiricas. Falta didatismo ao filme, para explicar quem são aqueles cantores e porque Caetano Veloso, Chico Buarque, Toni Garrido e até a mexicana Lila Downs, ótima, estão fazendo ali. Há várias nuances no fado e ele também influenciou vários estilos musicais em países de língua lusa: Cabo Verde e Moçambique aparecem em belos números musicais, mas quem entende?
O problema de"Fados" é ser um filme de Saura - e Saura, senhoras e senhores, enferrujou. Herança de "Carmem" e outros musicais 'saurianos', os balés que enfeitam os números musicais em "Fados" são cafonas até o limite do aceitável. Aliás, eles passam fácil esse limite e batem o mau gosto no número de Lila Downs. Ao mesmo tempo, Saura mostra que continua o bom e velho esquerdista d'antanho. O número que mostra Chico Buarque cantando "Fado Tropical" - que ele compôs para a trilha da peça Calabar - mistura a imagem do cantor a cenas da Revolução dos Cravos. É de chorar, de tão lindo.
Também emociona o número que Carlos do Carmo, um dos maiores fadistas da terrinha, canta "Um homem na cidade" entre imagens lindas de sua Lisboa natal (Carlos do Carmo era o 'fadista da esquerda', enquanto Amália, a grande dama, era a 'fadista da direita'. O tempo se encarregou de limar essas bobagens). Amália, aliás, é lindamente homenageada no filme, que a mostra ensaiando um número e, em seguida, mostra Caetano Veloso cantando "Estranha forma de vida", um dos maiores sucessos da cantora (cuja casa de Lisboa, hoje transformada em Museu, está na foto que ilustra esse post).
Mesmo com defeitos, a gente sai do cinema com vontade de ouvir mais fados - os da nova sensação Mariza, uma moçambicana criada em Lisboa e que tem os cabelos curtinhos, provocantes, a emoldurar um vozeirão fantástico. Ou daqueles cantores que se apresentam numa casa de fados simples, cada um se levantando e se exibindo, numa espécie de desafio sem competição...
Isso me fez lembrar uma noite em Coimbra, quando - ao lado de alguns jornalistas - fomos parar numa casa de fados alternativa. Era uma birosca frequentada só por estudantes (Coimbra...), com fumaça de cigarro até dizer chega, e onde ouvi os melhores fados da minha vida. Ceça Brito, do Recife, estava comigo e deve lembrar dessa linda noitada de fados...
Voltando... A gente sai do filme do Saura (mesmo que se coçando com raiva dos balés), sentindo vontade de abrir um vinho Dão, mandar descer uns bolinhos de bacalhau e ler alguma cousa do Eça... Sejamos patriotas - mantenhamos o Dão, os bolinhos e abramos o livro do Ruffato. Ó pá, isto é muito giro!