domingo, 18 de outubro de 2009

Lembranças lusas


Portugal me comove. Podem falar o que for - país de passado colonialista e predador, racista, etc (e com algumas críticas eu concordo) - mas o fato é que Portugal me deixa comovido como o diabo. Eles, os portugueses, com seu jeito rude e muitas vezes abrutalhado, carregam uma melancolia transparente, mesclada às letras melodramáticas dos fados, a um humor negrérrimo e às expressões do dia-a-dia, com o uso incansável do diminutivo... "Ai, o pobrezito!"...

Portugal voltou ao noticiário, com os lusitanos mordendo as canelas da atriz Maitê Proença. Num momento infeliz, a atriz apareceu num vídeo tirando sarro da propalada falta de inteligência lusa. Maitê foi deselegante, mas os que a criticaram por aqui foram hipócritas. Rir da lógica portuguesa é um esporte tão popular entre nós quanto falar mal de argentinos - mas como foi Maitê que deu a cara a tapa, joga pedra na Maitê. Atenção, eu não estou defendendo a atriz, longe disso - mas questionando os críticos. Quem nunca fez piada com portugueses que atire o primeiro tremoço.

Em campos mais tranquilos, Portugal voltou às minhas lembranças, enquanto lia a deliciosa novela de Luís Ruffato, "Estive em Lisboa e lembrei de você". O livro, com menos de 100 páginas, é uma delícia. Conta a história de Sérgio, um mineirinho de Cataguases que, pelas voltas da vida, acaba num hoteleco de Lisboa. Seus desencontros amorosos com uma prostituta, seus sonhos de vencer na vida trabalhando como subempregado... e sua resistência ao vício do cigarro... Vale a pena ler o novo livro de Ruffato, um autor que manuseia as palavras com prazer e transmite esse prazer a quem lê. Cada página do livro me trazia Lisboa à memória - e olhem que eu, bom paulistano que sou, sou o maior fã do Porto...


Embalado no livro, acabei indo ver "Fados", o novo filme de Carlos Saura. Será um documentário? Não, não é. Ficção, também não é. É um filme de Saura, para o bem e para o mal. É bom, porque faz desfilar diante de nós uma série imensa de cantores influenciados pelo ritmo português - um ritmo que, para minha surpresa, nasceu no século 19. Ou seja, é relativamente novo. E as vozes, as letras... ah, só mesmo em Portugal se pode ouvir um rap influenciado pelo fado. E só mesmo lá uma letra de rap usa a segunda pessoa de forma correta! (E vou defender minha tese: o rap foi feito para a prosódia lusitana - eles comem tantas vogais ao falar que, quando cantam rap, é como se estivessem a falar normalmente).


O mal do filme é o mesmo que atingia "O mistério do samba", o musical que Marisa Monte produziu sobre a escola de samba Portela: se você não conhece minimamente aquele universo, entra do filme mudo e sai calado, sem entender pissiricas. Falta didatismo ao filme, para explicar quem são aqueles cantores e porque Caetano Veloso, Chico Buarque, Toni Garrido e até a mexicana Lila Downs, ótima, estão fazendo ali. Há várias nuances no fado e ele também influenciou vários estilos musicais em países de língua lusa: Cabo Verde e Moçambique aparecem em belos números musicais, mas quem entende?


O problema de"Fados" é ser um filme de Saura - e Saura, senhoras e senhores, enferrujou. Herança de "Carmem" e outros musicais 'saurianos', os balés que enfeitam os números musicais em "Fados" são cafonas até o limite do aceitável. Aliás, eles passam fácil esse limite e batem o mau gosto no número de Lila Downs. Ao mesmo tempo, Saura mostra que continua o bom e velho esquerdista d'antanho. O número que mostra Chico Buarque cantando "Fado Tropical" - que ele compôs para a trilha da peça Calabar - mistura a imagem do cantor a cenas da Revolução dos Cravos. É de chorar, de tão lindo.

Também emociona o número que Carlos do Carmo, um dos maiores fadistas da terrinha, canta "Um homem na cidade" entre imagens lindas de sua Lisboa natal (Carlos do Carmo era o 'fadista da esquerda', enquanto Amália, a grande dama, era a 'fadista da direita'. O tempo se encarregou de limar essas bobagens). Amália, aliás, é lindamente homenageada no filme, que a mostra ensaiando um número e, em seguida, mostra Caetano Veloso cantando "Estranha forma de vida", um dos maiores sucessos da cantora (cuja casa de Lisboa, hoje transformada em Museu, está na foto que ilustra esse post).

Mesmo com defeitos, a gente sai do cinema com vontade de ouvir mais fados - os da nova sensação Mariza, uma moçambicana criada em Lisboa e que tem os cabelos curtinhos, provocantes, a emoldurar um vozeirão fantástico. Ou daqueles cantores que se apresentam numa casa de fados simples, cada um se levantando e se exibindo, numa espécie de desafio sem competição...

Isso me fez lembrar uma noite em Coimbra, quando - ao lado de alguns jornalistas - fomos parar numa casa de fados alternativa. Era uma birosca frequentada só por estudantes (Coimbra...), com fumaça de cigarro até dizer chega, e onde ouvi os melhores fados da minha vida. Ceça Brito, do Recife, estava comigo e deve lembrar dessa linda noitada de fados...

Voltando... A gente sai do filme do Saura (mesmo que se coçando com raiva dos balés), sentindo vontade de abrir um vinho Dão, mandar descer uns bolinhos de bacalhau e ler alguma cousa do Eça... Sejamos patriotas - mantenhamos o Dão, os bolinhos e abramos o livro do Ruffato. Ó pá, isto é muito giro!


sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Fernanda, 80 anos hoje



Conheci Fernanda Montenegro em 1973. Quem nos apresentou foi Medéia, numa adaptação da tragédia, assinada por Oduvaldo Vianna Filho - e que, alguns anos depois, viraria "Gota d´Água", com as deslumbrantes músicas de Chico Buarque. Devo ser sincero: na época não entendi muita coisa daquele caso especial, a não ser que a mulher enciumada matava os filhos e a nova mulher do ex-marido... Por volta de 1976-77, fui ao cinema assistir "Tudo Bem", uma comédia dirigida por Arnaldo Jabor (e, ao lado de "Toda Nudez será Castigada", um de seus melhores filmes). Me apaixonei de vez por aquela atriz ensandecida, que delirava com as traições imaginárias do marido e tratava os pedreiros com uma "bondade classe média" apavorante.


Desde aquela época já estive com Fernanda em várias situações. Ela era a estilista apaixonada por uma jovem Renata Sorrah, em "As lágrimas amargas de Petra von Kant"... Era a madrasta enlouquecida de amor por um ainda-sem-plástica Edson Celulari em "Fedra"... Era a dona de casa trocada por uma universitária, em "É...", de Millor Fernandes, ou a mulher soterrada na lama em uma peça de Samuel Beckett... Era a prima maluca de Paulo Autran na novela "Guerra dos Sexos"... Era a Zulmida de "A Falecida", a Dora de "Central do Brasil" e a Romana de "Eles não usam black-tie". E era também Adélia Prado, no monólogo "Dona Doida", um recital de poemas da autora mineira.
Não me lembro, nunca, de ter saído menos que hipnotizado por Fernanda. Mesmo quando não gosto muito, como o "Viver sem tempos mortos", em que ela vive Simone de Beauvoir, não posso dizer que ela estava fora de contexto. Fernanda cria o contexto. Cria o mundo.
O prazer da minha companhia, mesmo, ela só desfrutou em duas fugazes ocasiões. Durante a maratona de entrevistas para o lançamento de "Central do Brasil", Fernanda saiu do Espaço Unibanco e deu de cara com uma fila de gente comprando ingressos para outro filme. Era mais que um encontro, era um esbarrão inevitável. Ela encarou a todos nós e cumprimentou um por um, pegando na mão e tudo. Dizia algo do tipo "como vai, tudo bem, que legal que você está indo ao cinema"...
A outra vez foi quando, repórter da Folha, eu fazia uma matéria sobre cultivo de flores... sei lá porque, aquelas pautas da Folha... mas resolvi que Fernanda poderia dizer alguma coisa. Fui direto ao teatro onde ela estava em cartaz (o Cultura Artística, e ela fazia "Fedra") e, sem passar por assessor nem nada, pedi pra ouvi-la, expliquei o assunto ao porteiro e, depois de um tempo, recebi autorização pra subir ao camarim. Ela estava sentada, descansando antes do espetáculo. Me viu parado à porta, meio besta, e sorriu: "Você é o rapaz das flores?" Foram cinco minutos de conversa, da qual obviamente não lembro patavinas.
De resto, só conheço o que todo mundo conhece. E guardo na memória algumas cenas... Fernanda e Guarnieri catando feijão na mesa, em "Eles não usam black-tie" - fala sério, poucas cenas do cinema nacional são tão emocionantes. Fernanda recitando um poema de Adélia em que fala do silêncio cúmplice de um casal limpando peixes de madrugada... Fernanda ressuscitando o desejo pela virilidade de Othon Bastos em "Central do Brasil"... Fernanda e Paulo Autran despejando o café da manhã inteiro um no outro, numa tomada única e perfeita...
Fernanda, aos 80 anos, corre o risco de virar unanimidade. Uns, para criticar, falam que ela adora o dinheirinho do cachê, como se isso fosse pecado. Caramba, a mulher é o quê? Atriz. Vive do quê? De representar. Pra isso, precisa ser paga, pois não? Ah, esse nosso pudor católico em 'rejeitar' dinheiro...
O que me importa é assistir Fernanda em cena, admirar sua inflexão de voz e seus gestos precisos... É entender pelo olhar a alma do personagem... Não é preciso teorizar nem buscar explicações sociológicas: o prazer de um trabalho bem feito e que nos faz reconhecer o humano que existe no outro... Pra mim, dona Fernanda é isso.
Agora, fico sabendo que minha amiga Neusa Barbosa lança dia 28 o seu livro sobre Fernanda Montenegro. É um daqueles depoimentos da coleção Aplauso, da Imprensa Oficial - um catálogo que mistura gente interessante com outros que, francamente, não valem dois parágrafos... mas deixa pra lá... O que importa é que Neusinha colheu um depoimento de Fernandona ao longo de vários meses e me deixou com água na boca... Como pessoas adultas, amigos há mais de muitos anos, Neusinha e eu concordamos em várias coisas e, mais importante, discordamos em outras... Mas carregamos uma admiração comum por dona Fernanda (e pelo Chico, também...).
Tudo isso, só pra dizer "feliz aniversário, dona Fernanda! A senhora é o máximo!"
E tem mais uma coisa: sim, esse post é uma babação de ovo, descarada e assumida. São as delícias da blogosfera...

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Cartiê, filósofo


Menos de um segundo após o clique, a placidez da água, na foto ao lado, não existiria mais. Remexida, viraria lama talvez e o dono do sapato xingaria o dia todo a sujeira espalhada pela perna. Mas o fotógrafo francês Henri Cartier-Bresson (1908-2004) captou o segundo anterior ao mau humor, à lama e ao caos. E é esse momento eternizado que figura na exposição de 133 trabalhos de Bresson - ou "do Cartiê", como diz a ascensorista do Sesc Pinheiros. Não tem desculpa pra falta de grana, a entrada é gratuita.´

É uma ótima exposição, não só pelos trabalhos do Cartiê (gostei), um mestre no uso da luz, sempre em preto-e-branco, um captador de instantes mágicos, de olhares agudos, de gestos jogados. Não vou me estender em análises - tem gente muito melhor que eu pra isso, a começar do curador da exposição, meu bom Eder Chiodetto. Mas se você prestar atenção vai ver um delicioso jogo de linhas retas, curvas e zigue-zagues, que o Cartiê enxergava na "simples" imagem de uma escadaria em Nova York ou de um beco num vilarejo grego.

O melhor da exposição é que você sai dela pensando na vida - não no sentido depressivo, pelo contrário. Também não sai rindo feito uma poliana-sem-neurônio, que os tempos não estão pra isso. Sai pensando, o que já é lucro. Em exposições de fotos antigas - e nessa há várias dos anos 30 - eu sempre penso que nenhum daqueles retratados está mais entre nós. Até o menininho fofo já deve ter cumprido sua trajetória e partiu desta pra melhor. E, no entanto, estão todos ali, vivinhos da silva, me encarando com olhos intensos. E há quem diga que fotografia não é arte!
Cartiê considerava-se um vampiro, pois buscava apreender a essência do que fotografava - seus retratos, no segundo andar, chegam a perturbar. E outros, como os que ele fez do escultor Alberto Giacommetti fazem rir. A obra de Giacommetti é marcada pelas figuras esguias e longilíneas - e os retratos que Cartiê fez do Alberto (ele chama o escultor assim num vídeo, eu ouvi) mostram que escultor e escultura tinham o mesmíssimo porte. Gostei de ouvi-lo falar nesse vampirismo artístico: eu também me sinto assim, quando ouço frases e conversas que vão me inspirar em cenas, diálogos, crônicas... Nossa antena capta e, muitas vezes, demora anos para reproduzir - mas fica tudo guardado em nós.
Voltemos ao Cartiê. Cartiê também dizia que a foto é como um tiro e, ao mesmo tempo, uma briga com a morte. Ao captar para sempre um instante, o fotógrafo dribla a definitiva ausência, ignora a destruição do tempo, eterniza a fração de segundo. Ele diz muito mais coisas - e coisas muito interessantes - no video exibido no andar térreo. Confesso que, em geral, eu pulo a parte do vídeo. É sempre uma babação de ovo besta em torno do artista ou, pior, uma análise indecifrável do trabalho, pior que os textos que 'explicam' os trabalhos. (Eu sempre acho que texto de exposição é escrito pelo mesmo sujeito que escreve manual de eletrodoméstico: não entendo patavinas). É bom dizer que os textos do Chiodetto são claros e, por isso, profundos. Só os incompetentes são indecifráveis, a profundidade é simples.
No caso do Cartiê, veja só, o video é uma delícia. Fiquei me perguntando se a sabedoria daquele senhorzinho de 80 anos só apareceu por volta dos 75 ou se ele já era sábio aos 35. De todo modo, o olhar inquieto de Cartiê, impaciente com as perguntas, ensina muito a quem acha que há resposta para tudo. Cartiê, que dominou a fotografia e, depois dos 70, começou a desenhar - ele fala coisas lindas sobre isso, no vídeo - ensina que se conformar é o pior dos pecados (e o único que a igreja não condena...).
Até a biografia estampada numa parede é curiosa. Lá pelas tantas, você percebe que a turma do Cartiê era qualquer coisa de espantosa. Ele fez um livro e quem fez a capa? Matisse. E assim ia, só gente que hoje recheia catálogo de museu. E todos vivendo em Paris, o que só acrescenta mais charme à mistura. Dá uma inveja...
p.s. Não perca o terceiro andar, "Bressonianas", com os trabalhos de sete brasileiros influenciados pelo mestre francês: Flávio Damm, Carlos Moreira, Cristiano Mascaro, Orlando Azevedo, Juan Esteves, Marcelo Buainain e Tuca Vieira. Chega a ser melhor.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Dá licença?


Tem acontecido com frequência cada vez maior. Este fim de semana, por exemplo. Sentado numa poltrona do Espaço Unibanco, à espera do filme, não reparei que um rapaz tentava entrar na fileira. O que ele fez? Começou a empurrar minha perna até que eu desse passagem. O outro, que se sentou ao lado, não teve o menor constrangimento em tirar do bolso um celular do tamanho de uma caixa de sapato e ver a hora ou mensagem ou... Ok, isso pode ser comum, mas eu não me acostumo com essas grosserias. Ainda mais no meio de um filme como "Bastardos Inglórios". O escalpo é o mínimo que um sujeito desses - o do celular - merece.

Nos ônibus, as pessoas vão passando, sem pedir licença. Na rua, perguntam as horas e, depois da resposta, não agradecem. Te empurram e não pedem desculpas. Várias vezes já me senti pressionado numa calçada e não era assédio nem assalto: era alguém querendo passar e não conseguia pedir licença! Alguém, mais antenado com a modernidade, bem que poderia tentar me explicar o que fizeram com uma expressão tão simples como "dá licença?". Eu confesso, não sei.


E sinto falta dessa gentileza. Não precisa ser nada meloso, não. Formalidade demais é chato. Mas podia ser educado, já bastava. Quer um exemplo? Quando saio de manhã pra ir fazer ginástica... posso encontrar gente no elevador... um simples bom dia já tá bom. Às vezes, na rua mesmo. Desconhecidos que 'cometem' pequenos gestos educados - como dar passagem a alguém mais velho e a pessoa olhar de volta e agradecer com um sorrisinho. Nem precisa falar. Só olhar e sorrir.

Parece (e deve ser) pedir demais. Mas é o único jeito de não me sentir tão fora de moda como uma bicicleta antiga.
p.s. Por falar em "Bastardos Inglórios", o filme é impressionante. Tarantino cresceu e domina a linguagem do silêncio como pouquíssimos. Neste filme, as pausas e silêncios são de uma eloquência avassaladora.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Obama é o cara... rico





Uma semana depois de ver sua Chicago querida perder os Jogos Olímpicos para Buenos Aires, isto é, o Rio de Janeiro (enfim, a capital do Brasil), o presidente Barack Obama deu o troco. Ou melhor, recebeu o cheque. Acordou hoje com a notícia de que tinha ganho o Prêmio Nobel da Paz por seus esforços no desarmamento nuclear. Não é nada, não é nada, o cofrinho da família Obama estufou: o Nobel está em torno de 1,4 milhão de dólares... Lula deve estar com um bico des'tamanho.

Não vou entrar no mérito da premiação - mas, cá entre nós, essa comissão do Nobel é muito esquisita. É muito difícil eles premiarem alguém que a gente conheça - eu confesso, nunca tinha ouvido falar dessa escritora que ganhou o Nobel de Literatura. Os cientistas, então, nem se fala. Às vezes, eu penso que a comissão premiadora é formada só por jornalistas da Ilutrada e presidida pelo Ed Motta - eles nunca ouvem o que todo ouve, nunca lêem o que todo mundo lê: sempre conhecem uma cantora pop da Eslováquia, uma banda pop de Bucareste e um escritor fenomenal, autor de um único livro publicado em edição caseira na Ilha de Páscoa, sem tradução pra nenhuma língua cristã.

Francamente, eu tenho uma alma de boa noite, cinderela - o programa, não o sonífero - e gosto mais de ver darem o prêmio pra algum pobre coitado da Zâmbia do que pro homem que ocupa, dizem, o cargo mais poderoso do mundo. Posso estar totalmente enganado, claro, mas premiar o presidente dos Estados Unidos é uma cópia espantosamente ampliada da eleição do Fernando Collor pra quialquer academia de letras. Certamente, não era isso que o Alfred Nobel original, da fotinho aí em cima, planejava quando criou seu prêmio.

Engraçado mesmo seria que Barack, o boa-praça, fizesse aquilo que todo mundo diz que faria se acordasse com 1 milhão de dólares na conta: desse uma grandiosa banana pro patrão, catasse a patroa e a molecada e fosse saracotear pelo mundo. Já imaginaram o Barack chutando a porta da Casa Branca e cantando: "Ô Michelle! Acertei no milhar! Ganhei 2o mil contos, não vou mais trabalhar!" Seria sensacional, a ordem mundial ficaria de ponta-cabeça, mas quem acordaria do sonho - ao contrário da música - era a gente...








sábado, 3 de outubro de 2009

Minha professora de espanhol


No momento em que escrevo este post, a cantora argentina Mercedes Sosa pode ter morrido. Até ontem, estava muito mal numa UTI e tinha recebido até a extrema-unção. Tem, ou tinha, 74 anos e, num tempo em que Oscar Niemeyer enfrenta mesas de cirurgia aos 101 e dona Canô só falta lutar capoeira aos 102, Mercedes era uma menina-moça.

Pode ser que, aos olhos de hoje, Mercedes Sosa seja uma cantora gorda, de vozeirão dramático, atracada a um tambor e enrolada num poncho que seria peça de museu até em Visconde de Mauá. Mas para quem, como eu, entrou no mundo da música pela porta do show "Falso Brilhante", Mercedes Sosa é - no mínimo - uma lembrança emocionante.

Em 1976, depois de assistir "Falso Brilhante", o show que mudou duas vidas, a da Elis e a minha, comecei a me interessar por tudo quanto era música "bacana" - no meu caso, qualquer música que não tocasse no Barros de Alencar e nem fosse algum baião do Luiz Gonzaga (que eu adoro, mas que ouvi toda a infância, criado numa família de migrantes pernambucanos). No show e no disco, Elis cantava "Gracias a la Vida" e "Los Hermanos", ambas do repertório de uma cantora argentina, de quem nunca tinha ouvido falar: Mercedes Sosa. Vinham juntos também nomes de sonoridade estranha, como Violeta Parra, Victor Jara e Atahualpa Yupanqui, todos grandes poetas e compositores latinos.

Pouco tempo depois, a própria Mercedes veio fazer show no Brasil - no ginásio do Ibirapuera, com participação de Milton Nascimento e Chico Buarque, salvo engano. Na época, eu trabalhava como menor estagiário no Banco do Brasil e a moçada que era escriturária - antenadíssima - me pediu pra comprar os ingressos pra todos na Galeria Prestes Maia. Eu não poderia fazer serviços externos, era a regra. Mas - desde cedo uma simpatia só - quebrei o galho. Estimulou a chantagem: se eu fosse, eles se cotizavam e pagavam o meu ingresso. Fui sem fazer muita idéia do que ia assistir.

Na segunda metade dos anos 70, muitos jovens se engajaram na resistência à ditadura sem necessariamente pegar em armas ou assaltar bancos. Era uma resistência por atitude, por pequenos gestos, por movimentos mínimos que acabaram ajudando a minar o poder militar. Era o mais difícil, minimizar esse poder no dia a dia, derrubar o ditador que havia nas pequenas autoridades - o bedel, o pai, o tio, o professor, o chefe.

Isto tudo é, obviamente, a visão quase ingênua de um menino de 15, 16 anos. Mas naqueles tempos, pra mim, cantar "Gracias a la Vida" era resistir à ditadura. Descobrir que havia hermanos do outro lado do muro, tão ou mais fodidos que nós, era uma maneira de lutar. Lembro do primeiro chileno que vi de perto, um rapaz bonito, fugitivo da guerrilha de lá, escondido na casa de um amigo no Parque Edu Chaves. Lembro dele escutando a versão de Elis Regina para "Gracias a la Vida". "No es tan alegre, pero ella canta muy bien. Tiene un acento de Chile". Havia sotaques, veja só.

Todas essas lembranças se misturam ao noticiário da agonia de Mercedes Sosa. Procuro na estante um CD dela, tenho dois. Ouço um dedicado ao repertório de Violeta Parra, uma das maiores - se não a maior - compositora chilena. É dela "Gracias a la Vida" e "Volver a los 17", duas canções de amor transformadas em hinos revolucionários... ("Volver" foi escrita quando Violeta, já cinquentona, se apaixonou loucamente por um adolescente... O amor a rejuvenescia e ela transformou isso em música, perfeita para embalar as paixões de adolescentes que sonhavam ganhar o mundo).No CD de Mercedes tem também "La carta", essa sim uma canção de levante armado, sobre a morte de um jovem rebelde... Linda, linda...

Depois, mais taludinho, descobri outras maravilhosas vozes argentinas - Carlos Gardel, Susana Rinaldi... Mas os anos de formação, aqueles que se transformam em filmes, livros e peças nas mãos talentosas de bons artistas - os meus anos de formação tiveram Mercedes e Elis (e Nara, mas aí é outro lance) como trilha sonora. Com os discos de Mercedes e Susana Rinaldi aprendi a falar espanhol, com um vocabulário até que bacaninha. É triste e difícil imaginar que pulmões em colapso tenham sufocado aquela voz tão forte...Ao mesmo tempo é lindo saber que essa voz continuará iluminada, dando gracias a la vida.
P.S. Mercedes Sosa morreu hoje, domingo, pela manhã.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

500 Mil




Toda vítima de conto do vigário, no fundo, estava mal intencionada. Queria mesmo era botar a mão na bolada de dinheiro que o sujeito humilde sacode na sua frente... No fim das contas, o sujeito humilde se revela um cruzamento de Mazzaroppi com Darth Vader e o que tentava ser mais esperto leva uma rasteira.


O sujeito que procurou os repórteres do Estadão para oferecer a prova do Enem estaria nesse caso? Tendo nas mãos um exemplar da prova que seria aplicada a milhões de estudantes no próximo fim de semana, ele deve ter pensado: "oba, vou me dar bem". Ninguém sabe se por conta própria ou orientado por outro esperto, resolveu procurar a reportagem. Cobrou 500 mil pela "denúncia" e saiu de mãos abanando. Deve estar a caminho do Paraguai, apanhando (ou batendo) no amigo que teve a idéia luminosa: "Liga pro Estadão".


Minha sobrinha, que prestaria a prova, estava desolada. "A gente se prepara psicologicamente, sabe que vai enfrentar dois dias de prova... e aí..." Como consolo, eu disse a ela que seria pior se a falcatrua fosse revelada na segunda-feira que vem. "Credo, fazer a prova de novo? Já pensou?". O cruel desse crime - é um crime, pois não? - é que a nova data da prova pode embolar os vestibulares de outras faculdades e, ainda, retardar os pedidos ao Pró-Uni. Eu só disse uma coisa à minha sobrinha, e disse com tristeza. "Bem vinda ao mundo da corrupção".