segunda-feira, 9 de março de 2009

Por causa de Danuza Leão, domingo...


ENCONTRO CASUAL NO BOULEVARD SAINT-MICHEL


“Paris será sempre o lugar onde fomos jovens”
Zelda Scott-Fitzgerald, “Esta valsa é minha”


Avisto a mim mesmo esperando o ônibus ao pé da estátua do arcanjo, no Boulevard Saint-Michel. Faz frio nesse domingo de fim de março parisiense. No Quartier Latin as pessoas andam mais apressadas, querendo espantar o vento gelado. Eu e meu eu parado no ponto de ônibus ignoramos tudo isso, o frio, o movimento. Sem me preocupar em disfarçar, observo-me. Tenho 20 anos menos, tenho 30 quilos menos, não uso o blazer de lã, mas um casacão de jeans meio esquisito. Estou distraído e nem me percebo na outra calçada, não me dou conta que sou observado. Será que aos 20 anos isso não chama a atenção? Pode ser.
Por que não pego o metrô e vou logo para a Place d’Italie, jogar o corpo cansado num colchão estendido no chão do número 23 da Rue Paulin Mery? Vai ver que não tenho pressa. Paris é minha mesmo, não tenho motivo para correr. Além disso, o trajeto de ônibus é muito mais atraente que os túneis envelhecidos do metrô parisiense. De ônibus, corto os bairros, os bulevares, as ruas, vejo as casas, as caras, os cães, seus donos e as baguettes. Sinto o cheiro do croissant que sai do forno e da fumaça que vem sei lá de onde. De ônibus, vejo e vivo Paris com mais intensidade.
O encontro comigo mesmo já era esperado, ao menos pelo eu de hoje. O eu de 20 anos atrás nem imagina que voltaria ali, que se veria ali, parado, sem esperanças excessivas nem ansiedades descontroladas. Estamos ali, os dois, parados no Boulevard Saint-Michel, um sem saber da existência do outro, o outro sem imaginar o que passa na cabeça do primeiro. Só sei que fico feliz ao me ver, mais jovem, mais magro, meio hippie e todo besta, só porque tenho 20 anos e estou em Paris.
Na verdade, isso é o que penso eu hoje. Aos 20 anos, ter 20 anos e estar em Paris era comum, muito comum, nem chamava a atenção. Talvez seja isso, penso eu hoje, aí está o segredo. Eu não tinha noção do quanto estava sendo importante aquele tempo, eu vivia e o aproveitava porque era bom, porque tinha de ser assim. De nada adiantaria, hoje, suspirar profundamente e pensar “Ah, se eu pudesse voltar no tempo e...”... Nada!
Se voltasse no tempo, eu não ia querer mudar um só dia daquela vida. Tudo, feliz, triste, chorando, rindo, nas festas ou brigando, economizando tostões para comprar cigarro ou roubando carne no supermercado, tudo aquilo fez parte do homem que sou hoje. Tudo aquilo que viveu o eu de 20 anos levou, assim ou assado, àquele que, parado, se observa esperando o ônibus.
Foi bom e é ótimo que tenha sido assim. Por um instante, cedo ao impulso de atravessar a rua, braços abertos, em direção a mim. Abraçar-me e dizer “agora também está ótimo, diferente, mas igualmente bom, em outro ritmo, mas tão intenso quanto...”. Seria um discurso longo.
Pisquei o olho, passou o ônibus, subi, não me vejo mais no ponto. Perdi-me. Olho a estátua do arcanjo, tão linda, nem me dou ao trabalho de suspirar. Vinte anos cruzaram o boulevard, foi só. Dou meia volta, atravesso o Sena, sigo em direção à Catedral de Notre-Dame. Paro numa boulangerie, compro um pain-au-chocolat, saio mordendo a massa folhada, espalhando migalhas e farelos pelo blazer de lã. Sorrio pra mim mesmo. Ainda bem que não me encontrei. Teria sido meio ridículo. Mesmo sendo verdade, eu não acreditaria numa só palavra do que eu estava dizendo. (escrito em março de 2000)

4 comentários:

  1. mário, querido, teu encontro quase marcado levou à lembrança de um encontro quase marcado que tive tambem numa cidade estrangeira. lindo texto. fiquei comovido. guza

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  2. Guza, cada um tem sua própria madeleine, né? M.V.

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  3. "O homem, quando jovem, é só, apesar de suas múltiplas experiências. Ele pretende, nessa época, conformar a realidade com suas mãos, servindo-se dela, pois acredita que, ganhando o mundo, conseguirá ganhar-se a si próprio. Acontece, entretanto, que nascemos para o encontro com o outro, e não o seu domínio. Encontrá-lo é perdê-lo, é contemplá-lo na sua libérrima existência, é respeitá-lo e amá-lo na sua total e gratuita inutilidade. O comêço da sabedoria consiste em perceber que temos e teremos as mãos vazias, na medida em que tenhamos ganho ou pretendamos ganhar o mundo. Neste momento, a solidão nos atravessa como um dardo. É meio-dia em nossa vida, e a face do outro nos contempla como um enigma. Feliz daquele que, ao meio-dia, se percebe em plena treva, pobre e nu. Êste é o preço do encontro, do possível encontro com o outro. A construção de tal possibilidade passa a ser, desde então, o trabalho do homem que merece o seu nome."

    Hélio Pellegrino em carta a Fernando Sabino, à guisa de prefácio de "O Encontro Marcado"

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  4. Quem não leu o "Encontro Marcado", recomendo muito. Mas é uma história muito masculina (talvez as mulheres não sintam a mesma identificação). Na mesma época li "A Idade da Razão", do Sartre". Eu tinha 15 anos. Eu já tive quinze anos e havia muitas pedras no caminho; e anjos tortos, aqueles que vivem nas sombras...

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