segunda-feira, 23 de março de 2009

ATORES...


Anna Cecilia Junqueira tem 20 e poucos anos, uma beleza diáfana, uma doçura que espalha ao andar, sem se dar conta. Seria a pessoa menos indicada a encarnar uma mulher que acaba de matar o amante, por quem fora louca de paixão. Acontece que Anninha é ótima atriz. Mergulhou no texto e dele emergiu como a mulher sofrida que as palavras exigiam. Toda vez que ela entra em cena, olhos fundos, ar perdido, para iniciar uma conversa com o pintor invisível, faz-se a magia do palco. Começa "Natureza Morta", no Espaço dos Satyros 1, toda sexta e sábado, meia noite. É um deleite para o público - e para o autor, também.


Escritores são figuras muito estranhas. Trancam-se em seus quartos-laboratórios-redomas-edens e criam mundos. Imperfeitos, violentos, doces, amorosos mundos. Dentro desse universo, o autor de teatro é o estranho entre os estranhos. O autor de teatro nunca completa sua obra sozinho. Ele precisa do olhar do diretor, da mão do iluminador, da ajuda do cenógrafo - e do corpo dos atores. E todos, juntos, precisam do público. Sem o conjunto de olhares difusos na escuridão, atentos a cada movimento em cena, não há teatro.


Só consigo chegar à platéia incorporado nos atores. São eles, com voz, gestos, olhares e suores, que vão contar o que escrevi. Eles me traduzem pra quem não faz idéia de quem eu seja. Diretores também são fundamentais, mas é com os atores que o público vai ter contato. Ah, os atores e suas inseguranças, infantilidades, vaidades e intocáveis misteres.


Desde 1993, quando estreou "Ifigônia", minha primeira peça profissional, tenho uma relação amorosa com os atores. E ao longo do tempo fui localizando aqueles que melhor traduziam o que eu tinha escrito. Traduziam, não por fidelidade canina, mas por acréscimo. Os "meus melhores atores" sempre dão ao personagem um toque, um acento ou um tempero que eu não havia pensado. E fica tão bonito, orna tão bem, porque se não estava lá foi só porque eu tinha esquecido, distraído que sou.


Rosi Campos enforcando-se com as próprias mãos em "Ifigônia". Rubens de Falco recitando poemas de Roverto Piva para o amante perdido no passado, em "Galeria Metrópole". Pedro Guilherme injetando uma fragilidade comovente no moleque da zona leste de "Carro de Paulista". Bárbara Paz, Raul Barreto, Napão e Claudinei tornando humanas as barbaridades de "Um chopes, dois pastel e uma porção de bobagem". Otavio Martins revelando-se um filho fracassado em "Vestir o Pai" ou um cara disposto a amar quem quer que seja, não importa o sexo, em "O Amor do Sim". Flávia Garrafa, Tania Castello, Flavio Faustinoni - o que seria de "Assim com Rose" sem a presença deles? Cito esses, poderia citar outros - Zezeh Barbosa, Daniel Dottori, Carlos Baldim, Priscila Carvalho, Karin Rodrigues, Aline Abovski, Leona Cavalli, Xepa, Domingos Montagnier e Fernando Sampaio, Carol Badra, Keilinha... Já tive a alegria de trabalhar com tanta gente legal. E eles foram especialmente bacanas porque partiram do meu texto e trouxeram o seu ponto de vista. É isso o que faz do teatro uma arte sem imitações. É o conjunto e não o solitário.


Tudo isso por um motivo. Ontem, consegui uma folga de "Poder Paralelo" (estréia dia 14 de abril, na Record) e fui ver "A Noite mais Fria do Ano". Não consegui falar com o Marcelo Rubens Paiva, não pude cumprimentá-lo. No meio da apresentação, eu comecei a achar a peça esquisita, a Paula estava infantil, o Alex Gruli estava travado... De repente, uma frase, tudo muda e todas as fichas caem. E de novo, e de novo. A peça é um jogo e fez ainda mais sentido hoje do que ontem. Cada vez que penso nela lembro de um detalhe, um dado qualquer... Belíssimo texto, dom Marcelo!


Mas o que me deixou pleno mesmo foi o elenco - em especial a Paula Cohen e o Hugo Possolo. Com a Paula nunca trabalhei - até agora, mas calma, somos jovens e temos tempo. Já o Hugo... é até covardia falar de alguém com quem tenho uma afinidade profissional e pessoal acima dos padrões convencionais. Na qualidade de segundo autor mais montado dos Parlapatões, posso dizer isso com tranquilidade. Minha parceria com o Hugo, independente do resultado, é um casamento perfeito - inclusive porque não tem sexo. Minha amizade e meu carinho por ele poderiam me impedir de escrever, seria muita babação de ovo.

Mas ontem, vendo o Hugo e a Paula em cena, me comovi muito. Por várias razões: pelo trabalho que eles desenvolvem em cena; pela generosidade de ser ator ao lado do Bortolotto, dois diretores seguindo as orientações de um diretor relativamente verde, como o Marcelo... e pela entrega ao papel. Na história, o personagem de Hugo rasteja por uma mulher que o trocou por outro cara. Lá pelas tantas, beijam-se, tentando resgatar uma paixão perdida. Transam, movidos por um desejo desesperado e inútil. É lindo. E eu me dei conta que nunca tinha visto o Hugo beijando a boca de uma mulher em cena - palhacinhos não beijam. Que coisa.





6 comentários:

  1. concordo contigo em gênero, número e grau. tanto sobre tua observação sobre os atores em geral (jogando nos dois lados da quadra posso dizer que sei muito bem do que você está falando), quanto sobre tuas colocações a respeito da "noite mais fria", que até agora está me incomodando e que e quero rever, com certeza. abração. e mais uma vez obrigado pelas suas palavras no meu blog, hoje. fiquei muito comovido. graaande abraço. guza

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  2. Como ator, posso dizer que nada como um bom texto pra nos fazer felizes e isso seu Mário Viana sabe fazer como ninguém, a escolha das palavras é tão certeira que deslizam por nossas línguas e quando percebemos já saíram, assim, assim mesmo.
    Parabéns Mário. BEijo Grande
    Flávio

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  3. Com um misto de inveja e admiração, devo confessar que ainda não assisti a nenhum texto seu, Mario. Mas vou correndo ver Natureza Morta!!

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  4. Heitor, vá ver, sim. É uma bela montagem... Quanto ao Faustinoni... ah, Flavio, eu até corei de modéstia... kkkk... bjs.

    p.s. No post, eu esqueci de falar uma coisa sobre o Alex Gruli, com quem fiz ótimos esquetes cômicos no Nunca se Sábado... O Gruli é aquele ator que salva uma peça do dilúvio universal. Eu que o diga.
    Mário

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  5. Que honra pertencer a este grupo!
    obrigado pela lembrança... e quando acontecerá uma nova parceria?
    grande beijo
    Dottori

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  6. Há alguns anos, quando eu trabalhava no Estadão e fazia o jornal institucional da empresa, eu escrevi sobre uma peça dele que "por trás daquele par de óculos, havia um mar de pensamentos escatológicos". Hoje, eu escrevo, "por trás daquele par de óculos, há um ser humano arregaçado, intenso e com uma organização de idéias e palavras fudida." Assim é o prazer que tenho de entrar em contato com a sua alma e as suas palavras todo fds.
    Bjo no coração.

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