terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Posta e deixa rolar...


Quantos posts dura a sua revolta? Você já se habituou a conter sua indignação nos 140 toques do twitter? As redes sociais estão aí e há mesmo quem diga que a primavera árabe começou graças a meia dúzia de twittadas bem dadas. Tenho minhas dúvidas sobre a eficácia do facebook como agente propagador de revolta - pelo menos, do tipo de revolta que derruba ditadores, destitui o senado e avança rumo à liberdade. Como se fosse um personagem de peça enigmática dos anos 70, me pergunto se "O Sistema" permitiria realmente a ampliação descontrolada de um serviço que pode causar tantos danos aos de cima.
Do ponto de vista de brasileiro habituado a navegar nos mares dos perfis e opiniões definitivas das redes, não tenho motivos para muita euforia. Por aqui, o que mais rolou mesmo foi "Lula, vá se tratar no SUS", "Imprensa burguesa ignora A Privataria Tucana" e "Todo mundo morre (ou todo mundo perde o emprego), menos o Sarney". Sinceramente, estamos a anos-luz de uma primavera árabe.
Houve também a caça aos torturadores de animais, com fotos, dados pessoais e chamadas ao apedrejamento moral em infinitos posts. Os acusados foram condenados antes mesmo de qualquer investigação - e as notícias que as coisas não eram bem daquele jeito são ignoradas nas redes. Se for realmente comprovada sua culpa, os tais torturadores merecem ser punidos e não apenas pagar uma multa. Mas não podemos queimar etapas e dar o veredito antes do julgamento. Se queremos que se aplique justiça, devemos começar a partir de nós mesmos. Entretanto, nem os culpados foram punidos, nem os revoltosos partiram para a ação armada. A indignação coube no facebook.
Também pelo lado bom da coisa, a eficácia das redes sociais é duvidosa. Temos pena de quem sofre, choramos por um menino acuado por bullying na França, achincalhamos o prefeito ou o governador ou o/a presidente por não tentar resolver os problemas sociais que se espalham ao nosso redor. Mas poucos de nós levantam realmente o traseiro do sofá e vão à luta, reúnem roupas que não usam mais, compram cestas básicas, aderem ao transporte público ou tomam alguma outra atitude mais elogiável. Trocamos tudo por um post inteligente, de preferência com muita repercussão entre quem nos curte.
Estamos contaminados pelo bom mocismo. Somos instados a nunca mais pisar num supermercado que use sacolas plásticas, mas nem percebemos que a campanha dita ecológica só servirá mesmo para livrar o quitandeiro de pagar pelo saquinho que continua a ser oferecido ao cliente - a diferença é que o Abílio Diniz quer que você pague pelo tal saquinho.
Da mesma forma, os ciclistas - que a colunista Bárbara Gancia apelidou acertadamente de talebikers - gritam em defensa de vias exclusivas. E todo mundo, mesmo quem não diferencia uma Monark de uma Caloi dobrável, inicia a infinita série de posts bem intencionados sobre a ciclovia e sua importância para a sobrevivência da espécie no planeta. Eu defenderei os bikers com muito gosto a partir do momento em que não correr mais o risco de ser atropelado por um deles. Deve ser um dogma da categoria: ciclista ignora sinal vermelho e avança sobre o pedestre com a impiedade de um tubarão faminto. Isso não é bacana.
As lições de convivência e respeito, tão cantadas nas redes sociais, ainda estão no limite das boas intenções. Depois de escrever meia dúzia de palavras legais sobre um tema edificante, nos sentimos liberados a puxar a brasa pra nossa sardinha, dane-se o resto. Desde que possamos espalhar nossos pensamentos profundos e fundamentais sobre qualquer tema humanitário, adquirimos passe livre pra não nos mexermos e fazer o que realmente é preciso para melhorar o mundo.
Uso e acho muito legais o facebook e o twitter. Mas não atribuo a eles a capacidade de melhorar a sociedade em que vivo. Não somente pelo fato de, ali, desfilar muita gente preconceituosa, carola, egoísta e, acima de tudo, sem a menor intimidade com a língua pátria. Tem muita gente legal também. Gente inteligente, bem humorada, do bem. Mas nem os "malvados" partem pra porrada, nem os "bonzinhos" largam sua nuvem. É tudo muito adolescente, tudo muito "amo" ou "odeio", "morte a isso", "fora com aquilo". A convivência, que é bom - e é o melhor desse jogo chamado vida -, está se diluindo nas nuvens do virtual. Isso é real.


terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Monstros sem Freud


A culpa deve ser do Tom e Jerry. Ou do Bip Bip e Coiote. Não há outra explicação razoável para a série de atentados terroristas que tem vitimado cães, no que parece ser a última moda em bestialidade moderna. O sujeito pega o cachorro, amarra no carro e sai arrastando o bicho estrada a fora. Outro enterra o cãozinho recém-nascido ainda vivo. Soube de crianças em um condomínio que brincaram de atirar gatinhos recém-paridos contra a parede - um deles sobreviveu com sequelas cerebrais. Não é culpa dos astros, dos pais nem da água? Então, só pode ser coisa de Tom e Jerry: as pessoas deram pra acreditar que o mundo é um desenho animado, você explode uma bomba aqui, atira o outro pela janela ali - e no quadro seguinte, a vida prossegue como se nada houvera.
Há também a série de mães que se livram de filhos indesejados largando-os na rua, em sacos plásticos, lixeiras, rios. Outro dia, uma mãe atirou os bebês gêmeos pela janela. Para estes casos, bem ou mal, a ciência parece encontrar explicações. Depressão pós-parto, miséria extrema, vício em crack, sempre se saca algum freud da cartola. É aterrorizante pensar que se possa abandonar assim um neném tão frágil, indefeso. O terror cresce quando quem faz isso é a mãe, o pai, o gerador daquela vida. Não há nesse comentário nenhum cristianismo, é pura sensação de sobrevivência da espécie. Tenho comigo a ideia fixa de que lutamos para preservar os nossos, como quem se assegure da continuidade da própria semente.
A maldade contra animais ainda escapa à análise. À minha, pelo menos. Ninguém obriga um sujeito a ter um cão. Eu nunca tive, não gosto de cachorro, procuro evitar a menor intimidade, meus amigos sabem disso. Nem por isso, abafo em mim um envenenador de cães, um atropelador de gatos, um estripador de sapos. Eles lá e eu aqui, esse sempre foi meu lema em relação a bichos. O lema agora mudou: "eles lá, eu aqui e as feras que maltratam bichos na cadeia". Não é possível que a pessoa arraste um pitbull amarrado ao carro, até o bicho perder as patas e a vida, e não receba mais que uma multa. (Pensando bem, é possível, sim: atropeladores embriagados depositam a fiança e voltam para casa, com a carteira de motorista no bolso, sem sequer serem obrigados a pagar o tratamento ou o enterro de suas vítimas).
Para as mães que tentam se livrar de seus filhos, parece, resta alguma esperança: de que ela se arrependa e volte chorando; de que seu estado de penúria seja amenizado e ela tenha condições de amar sua prole... É a esperança na justiça, divina, terrena ou satânica. A vingança pelos inocentes sacrificados. Agora, quem sadicamente tortura animais abdica dessa esperança. Para covardes assim, não há cura na linha do horizonte.
Quem enterra um filhote recém-nascido ainda vivo não deve ter muita noção dos limites que a vida estabelece. O homem que liga o carro e arrasta o cão que certamente o adorava está pouco ligando para o que sentem outros seres humanos. Maltratar um cão ou um velho ou uma criança ou uma mulher são apenas dobraduras do mesmo origami sangrento. Em algum ponto de suas vidas, essas criaturas sádicas deixaram de ser corrigidas ou simplesmente notadas. Alguma falha no sistema houve. Ninguém sai do comportamento de anjo de procissão para o rally do cachorro arrastado em dois ou três dias.
Assistimos perplexos a essas aberrações. Lemos no jornal, vemos na TV. Ficamos chocados. Mas não conheço ninguém que seja parente, amigo, vizinho ou sequer conhecido de um desses torturadores que brotam dos noticiários como gremlins ensandecidos. A vida torna-se um reality show do terror. O sujeito inspira-se num monstro e decide cometer uma atrocidade ainda maior. Busca o holofote, o flash. Seu cão escapará. O Tom sempre sobreviveu aos ataques do Jerry. E o Tom era apenas um gato!
Me pego pensando em como reagiria se um vizinho fosse esse personagem monstruoso. O primo de um amigo. O irmão de um colega de trabalho. O pavor ganharia corpo e voz. Por enquanto, ainda, a água não atingiu meu quintal...

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Muitas Chinas


Quando a escritora Lygia Fagundes Telles embarcou para a China, em setembro de 1960, eu era apenas um bebê de dois meses e meio, nascido abaixo do peso e sem muitas garantias de sobrevida. Lygia já era Lygia, tanto que foi convidada pelo governo chinês, junto com um grupo de intelectuais e artistas, como a atriz Maria della Costa, a visitar o país e constatar com os próprios olhos o que a revolução comunista vinha aprontando havia 10 anos na antiga terra dos mandarins. A tinta revolucionária estava fresca nas paredes, já houvera uma troca de comando na cúpula e a Camarilha dos Quatro, gangue que implantou o terror governista com a Revolução Cultural, ainda não tinha posto as manguinhas de fora. Essa viagem está no delicioso "Passaporte para a China", que a Companhia das Letras acaba de lançar.
O livro é pequeno, menos de 100 páginas, e se você não se segurar é capaz de ir da primeira à última linha enquanto espera ser atendido pelo médico. Ou enquanto o ônibus não chega. Ou enquanto foge das besteiras televisivas. Enfim, é leitura rápida, agradável e - acima de tudo - inspiradora. Dá vontade de terminar o livro já no balcão de qualquer companhia aérea, preferencialmente rumo à China.
O melhor é que Lygia não fez um guia de viagens, nem um querido diário de bordo. Fez crônicas, que foram publicadas aos trancos e barrancos no jornal Última Hora. Na época, não havia facilidades em se transmitir notícias ou enviar encomendas. A viagem em si já era uma maratona: o grupo da escritora saiu do Rio de Janeiro no dia 24 de setembro e só foi pisar em Pequim no dia 29. Pernoitaram em Paris, Praga, Moscou e mais duas cidades da Sibéria, antes de chegar ao destino final.
Não deixava de ter seu charme dormir em Paris e outras cidades. Tomava-se um banho confortável, jantava-se bem, dormia-se na horizontal, feito gente. Hoje em dia, a viagem para a China leva pouco mais de 21 horas, com alguma escala - sem banho nem caminha - em alguma Dubai da vida. Para quem tem medo de avião, como Lygia, a longa duração prolongava o sofrimento de mais uma vez estar a bordo de uma nave misteriosa, piorando a cada etapa, pois as línguas agora não eram mais aquelas que se aprendia no colégio, mas alguma coisa de raiz eslava ou oriental.
Estive na China duas vezes - uma a trabalho, em 1993, e outra, de férias, em 2008. Foram duas Chinas. Agora, que li o livro de Lygia, descubro que há muito mais Chinas do que supõe a nossa vã geografia. A China que Lygia visitou ainda engatinhava no comunismo, havendo mesmo ainda proprietários de casas e terrenos herdados do antigo regime. A primeira China que eu conheci não se abrira para o capitalismo, tentava atrair turistas e investidores, mas pouco oferecia além de suas atrações históricas: era um país ainda agrícola, com uma população mal vestida e maltratada pela vida dura. A segunda China atracara-se de vez com as tentações do dinheiro, exibia-se com todos os brilhos possíveis em sua arquitetura ousada e tripudiava do Ocidente servindo de bandeja tudo o que o consumismo valorizava, em versões assumidamente piratas.
Se na China de Lygia, o líder Mao Tsé Tung era o grande timoneiro, na minha primeira China ele era ainda o modelo a ser seguido. Na new China, era apenas um avozinho cheio de manias a quem os netos tratavam com desdém. Nos anos 60, seria impensável ver Mao enfeitando camisetas, canecas, almofadas e bonés, tal qual um Mickey de olhos rasgados. A minha guia na primeira viagem era uma estudante que impunha um regime de ferro ao grupo - "Temos 20 minutos para visitar a Cidade Proibida" -, mas o segundo era um rapaz bem humorado, que falava espanhol com relativa fluência e que citava o governo sem o medo que seus pais tinham.

No livro, é divertido acompanhar o trajeto entre Pequim e Xangai, as duas mais importantes cidades do país. A primeira, por ser capital, grandiosa, exuberante, megalômana. A segunda por simbolizar, em 1960, o período em que a China foi colonizada por ingleses e franceses. Na época de Lygia, ia-se de trem - 30 horas de viagem! Hoje, pouco mais de 2 horas pelo ar e você deixa o gigantismo pequinês para mergulhar na feérica Xangai, com sua arquitetura ousada, seus serviços de primeiro mundo, seu ar de "cidade de todos". Comum, em 1960 e em 2008, foi a mesma paixão imediata por Xangai.
As viagens eram mais demoradas, viajar para outro país era uma atividade mais elitista, havia o que os nostálgicos chamam de "mais classe" - leia-se "menos pobres". Ir ao aeroporto era quase um programa cultural e até os palitos de dentes que vinham nas bandejas eram guardados como relíquias a ser exibidas aos menos favorecidos. "Olha o saleirinho, que bonitinho!" - o pai do meu amigo João Alberto tinha viajado de avião (a trabalho!) e trouxera pra nos mostrar o saleiro e o pimenteiro distribuídos na Varig. O cobertor de lã, então, chamava mais a atenção do que qualquer tapete marroquino com 1200 fios.
Dos Telles aos Viana, a China mudou - mas mudou também o mundo e a indústria das viagens. Para atender a um público cada vez maior e, claro, embolsar um lucro mais polpudinho, as companhias aéreas agora já não capricham tanto - porque acham que não precisam. O sal vem num saquinho de papel, os talheres são de plástico e a refeição, idem. O espaço das poltronas seria perfeito se o passageiro não teimasse em ter 2 pernas, quadris, costas...
As viagens são mesmo mais rápidas e você chega ao outro lado do mundo sem ao menor ter dormido as oito horas de sono regulamentares. Café preto com pão e manteiga de manhã, pato laqueado no almoço do dia seguinte. Antes, não só por questões de tecnologia, mas também por que o mundo parecia exigir mais tempo das coisas, as viagens eram no gerúndio, iam sendo feitas aos poucos, como se estivéssemos eternamente numa caravela. Hoje, os aviões brincam de Apolo XI e comprimem o tempo e a delicadeza. Até por isso, pra nos lembrar que viajar não era apenas uma maratona de compras e superficialidades disfarçadas de cultura, é que o livro de Lygia merece ser lido. Por ela, claro. Mas principalmente por nós.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

A lei do Hato


Quando ainda era vereador, o hoje deputado Jooji Hato estava em seu carro e foi assaltado por um motoqueiro - ou melhor, pelo carona do motoqueiro, que ia na garupa. Foi traumatizante, diz o deputado, e ninguém duvida. Por conta disso, o político vem há anos tentando emplacar uma lei que proíbe o transporte de caronas em motos. A motocicleta, como todos sabem, tem espaço para duas pessoas - o piloto e seu convidado. Em qualquer lugar do mundo é assim. Menos no Estado de São Paulo, a depender da vontade de Jooji Hato e seus colegas de plenário. Espera-se agora que o anjo que soprou um pouco de bom senso nos ouvidos da então prefeita Marta Suplicy tenha igual fôlego quando o projeto estiver diante do governador Geraldo Alckmin - e, assim como fez a petista, o tucano vete o projeto de lei, sob risco de sair de destaque no grande desfile dos ridículos a que somos expostos pela incansável classe política.
Jooji Hato ficou chocado com o assalto sofrido, qualquer um de nós ficaria. Mas nós não temos a máquina legislativa a nosso serviço. Jooji Hato poderia ter ficado chocado também com o tanto de crianças pedindo esmolas nas esquinas, vendendo bala e pano de prato, nariz escorrendo e medo do adulto que as controla de um ponto adiante. Isso não chocou o vereador-deputado. Nem as hordas de miseráveis que se espalham pelas calçadas de todas as cidades, é só olhar pros lados - mesmo em carros com vidro fumê dão acesso a essa deprimente paisagem.
É mais fácil atacar os motoqueiros - categoria que irrita onze em cada dez motoristas, é verdade, mas nem por isso formada só por assaltantes. Talvez seja difícil pro senhor Hato e sua equipe acreditarem, mas há pessoas que usam motocicletas como... digamos... meio de transporte. Nem digo para trabalhar, mas para se locomover, levar o filho à escola, levar a namorada ao cinema ou a mulher ao trabalho dela. Enfim, as pessoas usam o veículo que o deputado e seus parceiros querem vetar. Aliás, o rasgo de genialidade é proibir a prática da carona nos dias úteis - partindo-se do princípio que assaltantes obedecem a semana inglesa. O deputado e seus assessores confundiram os horários dos ladrões com os dos políticos. Acontece.
O engraçado é que, assim como os jornalistas que pautam seus cadernos e revistas pelo que acontece em seus horizontes cotidianos (quem tem filho pequeno faz matéria de preço de escola, quem sai na noite fala dos bares que frequenta, etc), os políticos pautam seus projetos pelo muito que lhes acontece fora de seus ambientes de trabalho - onde, convenhamos, eles vão muito pouco. O projeto do Hato é assim, nascido de uma traumática experiência pessoal, que teria sido evitada se a cidade fosse mais iluminada e tivesse segurança pública, etc etc.
Mas o Brasil é o país em que se receita aspirina pra combater tumor no cérebro. Tem assalto na saída do banco? Proíbe-se o uso de celular dentro da agência. Aconteceu outro dia comigo: um problema no Bradesco exigia que eu falasse imediatamente com a advogada, mas eu só poderia fazer isso se saísse da agência e perdesse meu lugar na fila... Outra modalidade tipicamente verde-amarela: somos o único país do mundo onde banco 24 horas funciona em horário comercial.
Vivemos também em uma cidade onde gangues andam pela Avenida Paulista agredindo gays, pretos e pobres sempre nas madrugadas - e o policiamento que o governo anuncia acontece das 6 às 22 horas. Tente passar depois disso e você não verá ninguém fardado por quilômetros. É como a turma que faz blitz da lei seca, que só trabalha até as 4 horas - que é quando bares e baladas estão fervendo: os briacos pegam seus carros depois das 4 e tudo bem.
É mais fácil sair proibindo isso e aquilo, em vez de atacar a verdadeira causa dos males. A hipocrisia impera, os governantes relaxam porque sabem que nós, do lado de cá da urna, logo esqueceremos - e muitos desses políticos de quinta retornarão aos cargos, premiando-se aumentos infinitos e, de vez em quando, aprovando leis sem nem sequer se importar se ferem ou não a Lei. Estamos na terra do faz de conta, no labirinto do fauno, onde a polícia finge que protege, o fiscal finge que toma conta e o deputado finge que legisla em nome do povo. Só mesmo os assaltantes e agressores é que levam a coisa a sério.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

O SUS do Lula


Foi como tosse no intervalo de um concerto. Mal saiu a notícia de que Lula teve diagnosticado um câncer na laringe, começaram a pipocar na Internet os mais variados comentários - do apoio solidário às piadas de humor negro. Teve início uma campanha para que o ex-presidente abrisse mão do atendimento em um dos melhores hospitais do país para tratar-se no SUS, o Sistema Único de Saúde mantido aos muitos trancos e abissais barrancos pelo governo federal.
Do outro lado da trincheira, brigava-se pelo respeito às emoções de quem descobre uma doença grave em si mesmo ou em alguém próximo. Era uma briga feia e, como em todo bate-boca por rede social, recheado de agressividade incontida, de ambos os lados. Mais que aversão política, a campanha "Lula, vá se tratar no SUS" revelou que séculos de civilidade não resistem às dinamites grosseiras das redes sociais.
A tecnologia criada para aproximar pessoas dos rincões mais afastados do planeta serve também para implodir a "educação que mamãe nos ensinou". Alguém, num blog ou artigo opinativo, apontou o anonimato como estímulo para que as pessoas manifestem tão abertamente sua deselegância. Não sei se concordo. Conheço alguns dos que ajudaram a espalhar essa campanha pelo facebook e pelo twitter, seus posts vêm assinados, muitos trazem a foto da própria pessoa. Pudor é o novo mico-leão dourado da língua, ameaçado de desuso. Não existe mais vergonha de expor opiniões e sentimentos que, antes, mal eram sussurrados no ouvido do analista. E, quando eram, faziam o paciente sair do consultório de olhos inchados de tanto chorar.

Hoje, não. Assim como o gosto pelo popularesco não é mais apanágio das "empregadinhas" - notem as aspas, por favor, elas têm uma função crítica -, também a brutalidade e a indelicadeza não são mais atributos de gente tosca. Pelo contrário. Quanto mais bem formado o sujeito, quanto mais bem situado na pirâmide social, mais ele se julga portador de um passe que dá livre acesso à grosseria generalizada. É claro que nem todo rico é mal educado, nem todo pobre é um anjo caído do céu. A pirâmide social do meu comentário é aquela que cada criatura constroi para si próprio.

Colonização, escravagismo e outros desvios históricos criaram em nosso DNA coletivo a ideia de que bom mesmo é ser da elite, não precisar trabalhar muito (ou nada) e, sempre que possível, exibir à patuleia desabençoada os sinais de nosso privilégio. "Público", aqui, é sinônimo de "coisa de pobre, de qualquer um". Pior: é sinônimo de "de ninguém". Não zelamos nem pela área comum de nossos prédios, que dirá do transporte ou da escola pública, do qual - graças a Deus - tiramos nossos filhos. Achar que Lula, ao entrar na hipotética fila do SUS, melhoraria o sistema é mascarar hipocritamente a vontade de que ele morra com a senha na mão. Dane-se se o sistema vai melhorar ou não ("eu tenho meu plano de saúde, meia boca, mas meu"), o importante é que ele pague por "tudo o que não fez" pela saúde do Brasil.

Em princípio, eu concordo plenamente com a teoria de que políticos brasileiros deveriam usar os hospitais públicos, o transporte público e o ensino público. Na verdade, eu sou radical e vou mais longe. Acho que todos nós - todos: eu, você, sua vizinha, seu padrasto, seu irmão adotivo, seu ficante - todos nós devíamos usar os serviços públicos pelos quais pagamos altos impostos. O verdadeiro desaforo não é Lula - ex-presidente, que cobra 200 mil dinheiros por palestra, tendo recursos pra pagar um bom plano de saúde que inclua o Sirio-Libanês -, repito, o desaforo não é Lula tratar-se em hospital de elite.

O desaforo é nós não podermos usar os serviços pelos quais pagamos: eu queria chegar no HC e encontrar rapidamente um ortopedista que desse um jeito na minha dor nas costas; eu queria fazer um bom curso bancado pelo Estado ou ir e voltar dos compromissos usando metrô e ônibus confortáveis. Queria voltar do cinema à noite caminhando sem medo por ruas policiadas e até estacionar meu carro na rua sem medo de não encontrá-lo na volta, já que haveria segurança garantida.

Enquanto apertamos o orçamento pra pagar plano de saúde, colégio particular e estacionamento extorsivo, exigimos que Lula use o serviço público que nós evitamos a todo custo. "Ele precisa dar o exemplo", me escreveu uma garota bastante raivosa. E eu perguntei: "exemplo do quê?" De abnegação cristã? Se assim o fizesse, não faltaria quem o acusasse de populismo e até o atacasse por ter furado a fila - maiores de 65 anos podem fazer isso, está na lei. O fundamental é que ele, o iletrado que virou presidente, voltasse a sentir o gosto de um mau atendimento.

Atire a primeira pedra aquele que, tendo nas mãos o diagnóstico de uma doença grave (em si ou em alguém que ame), não faria de tudo pra conseguir o melhor tratamento. Venderia a casa, o carro, abriria mão de vários confortos. Recusar esse direito a qualquer pessoa - de Lula a Sarney, de Zezé de Camargo a Reynaldo Giannechini -, em nome de uma causa partidária ou algo que o desvalha, está abaixo das normas mínimas de civilidade, até para um usuário de facebook.



quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Aética Aplicada


Ninguém sabe com certeza se foi Charles ou William Lynch quem oficializou, ainda no século 18, o assassinato de uma pessoa, cometido por uma multidão, sem prévio julgamento ou prova de culpa. O certo é que a prática do linchamento tornou-se corriqueira e ganhou, mesmo, entre nós, uma subcategoria, a do linchamento moral. No Brasil, em especial, parece que linchar é um esporte tão fácil de praticar quanto jogar peteca ou chutar bola. Com o auxílio tecnológico das redes sociais, então, ficou ainda mais fácil participar de qualquer campanha linchatória sem sequer sujar as mãos. E é tudo muito rápido, veloz, um zás-trás: anteontem era o Rafinha Bastos, ontem foi o Orlando Silva e amanhã... talvez o ministro da Educação, por conta das sucessivas besteiras em torno das provas do Enem. É bom preparar as pedras - virtuais ou não.
O esforço gasto no linchamento alheio talvez seja o motivo de as pessoas não prestarem atenção nos detalhes sórdidos das histórias. Vamos pegar o caso do Orlando Silva como exemplo. Não acredito que o ex-ministro dos Esportes seja o anjo de candura e inocência que ele, seus correligionários e uma ala mais à esquerda da política querem mostrar. Também não acredito que ele devesse ser crucificado tão logo apareceu a primeira denúncia, como queriam os centro-direitistas espalhados pela política e pela imprensa. Há que se apurar antes de se dar qualquer sentença - pelo menos é isso o que eu espero que façam comigo, no hipotético caso de ser acusado de alguma coisa.
Não basta ser inocente, é preciso parecer inocente aos olhos da opinião pública. Mas vivemos numa situação em que, por princípio, todos parecem culpados de alguma coisa. Com isso, o bate-boca entre situação e oposição, normalmente já subnivelado, atinge o inimaginável. Deveria ser prática corrente o sujeito colocado sob suspeita pedir o chapéu e - temporariamente - sair do cargo que ocupa. Daria à investigação, ao menos, a aparência de que algo seria feito. Constatada a inocência, o sujeito voltaria pra sua salinha, sua secretária, seus despachos. Assim como outros ministros apanhados em algum tropeço, Orlando Silva não fez isso e, claro, submeteu o governo inteiro a uma frigideira quentíssima.
O mais impressionante no caso do Orlando - podemos tratar na intimidade, há 15 dias só se fala no homem, ele ja é de casa - é que, se levadas a sério, as denúncias deveriam derrubar tudo quanto é ONG, instituição beneficente, sociedade amigos de bairro, salão paroquial, o diabo a quatro. O desfile de organismos que levaram grana - e grana preta - do governo pra atender crianças que não existiam é de ofuscar concurso de miss. Os valores, sempre milhares de dólares, parecem saídos de um livro do Sidney Sheldon ou outro best-seller desvairado: não pode ser coisa de vida real lidar com 3 milhões aqui, 5 milhões ali, como se estivéssemos falando do troco pra comprar um chiclete.
Enquanto isso, no lado dos que gostam de arrotar moralidade em cima do outro partido, uma série de "denúncias" ameaça fechar um shopping construído em cima de um lixão, porque aquilo tudo poderia ir pelos ares. Quando alguém lembrou que havia um conjunto residencial popular - uma ex-favela devidamente encaixotada em alvenaria - logo também se chegou a um acordo e surgiram providências que deveriam ter sido tomadas há anos (e não o foram por dificuldades técnicas intransponíveis). Ficou tão evidente que rolou um "cala a boca" entre as devidas partes envolvidas que a gente até perde a noção do certo e do errado. O que antes era tratado com certo pudor, agora é praticamente escancarado. Perdeu-se o pudor de parecer desonesto.
Essa constante aula prática de Aética é o que tem guiado jornais, seja da mais raivosa direita, seja da mais energizada esquerda. Não há, até o momento, nenhum sinal de que princípios de moralidade e decência no trato da coisa pública sobrevivam em algum rincão de nosso território. Isso é muito triste, porque desobriga qualquer pessoa a cumprir uma lei que seja. Se a direita sempre fez o que bem quis e a esquerda, quando sobe, demonstra ter aprendido direitinho o que não presta... não sei bem o que devemos esperar desses seres que nos governam. Nem mesmo de nós, os governados. Fico perdido, entre o susto e o desânimo.


quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Alô, alô... responde...


Quantas palavras existem no mundo, não faço a menor ideia. Só sei que todas elas, juntas, não estão dando conta do recado. Nunca se falou tanto, nunca se escreveu tanto, nunca se comunicou tanto para tantos - e, contraditoriamente, nunca nos entendemos tão pouco. Nos e-mails, nas redes sociais, nos livros, jornais, blogs, revistas, nunca tantas palavras foram atiradas a esmo. Emitimos sinais, contamos façanhas, lançamos apelos - para quem? Antes, quando escrevíamos uma carta, colocávamos o destinatário no envelope e dávamos um rumo definido à mensagem. Trocamos o destinatário por "amigos" e "seguidores", subtraímos rosto e digital - mas perdemos em retorno. Com quem falamos? Quem tenta, em algum ponto do planeta, falar conosco? Consegue?
A "descomunicação" é o tema que une três filmes argentinos. Não deve ser coincidência que um dos povos mais falastrões do mundo tenha levado ao cinema essa preocupação - a comunicação com o outro está interrompida, fora de área, sem sinal. Estamos sós. Solitos, dizem os argentinos em filmes como "Um conto chinês", "Medianeras" e "O dia em que não nasci". É bom prestarmos atenção nisso.
Embora aparente ser o mais óbvio, "Um conto chinês" é o mais universal dos três filmes. Na fábula do irritadiço comerciante portenho (vivido com especial brilho por Ricardo Darín, o Mastroianni da nossa época) e de seu hóspede chinês (Ignacio Huang), que desembarca na Argentina sem saber nem um "hola que tal" básico, está muito da nossa vida atual. O desconforto com o desconhecido, o medo da solidão - e o pavor de aprender a conviver, tudo isso está no filme de Sebastian Borenztein. Os dois protagonistas não trocam uma só palavra diretamente. Nada de nada. Ali, não há lugar para google translator, nem para aqueles antigos dicionários de frases básicas para viajantes. Eles nunca se falam, mas acabam se entendendo. Une-os a solidão e esse é um dado fundamental para entender os três filmes e a nossa vida.
O segundo filme é uma co-produção Alemanha-Argentina, que toca numa ferida sensível - o destino dos filhos dos mortos pelo regime militar que dominou nosso vizinho nos anos 70/80. Se "A História Oficial" (1985) falava de uma mulher (Norma Aleandro, estupenda) que saía do casulo protetor da classe média ao descobrir ter adotado filhos de perseguidos políticos, o filme "O dia em que não nasci" conta a história de uma dessas crianças. Uma nadadora alemã, ao fazer escala de voo em Buenos Aires, lembra-se de uma canção de ninar cantada em espanhol, uma língua que ela nunca falou. É o mote para descobrir ser filha de um casal morto pela ditadura - e outras descobertas terríveis virão. O filme cresce, imensamente, quando entra em cena a tia argentina da moça - vivida por Beatriz Spelzini, uma atriz fantástica. A mulher está feliz por reencontrar a sobrinha que julgava perdida, mas não esquece que é preciso justiça para quem tirou a menina da família. O embate entre a alemãzinha e seus tios argentinos se dá por mímica ou por um vocabulário de inglês mequetrefe. Um não fala a língua do outro, mas ambos buscam desesperadamente um ponto em comum e, quando o encontram, descobrem que isso pode ser um problemaço.
O terceiro filme está fazendo mais sucesso, pois tem visual moderninho e soluções criativas para várias cenas. Infelizmente, é o de roteiro mais frouxo, esquemático. "Medianeras" seduz pelo que indica, não pelo que mostra. Espécie de "Nunca te vi, sempre te amei" da geração Apple, o filme tem um casal protagonista fofo - ela, a espanhola Pilar Lopez de Ayala é linda toda vida, e ele, Javier Drolas, tem charme - e usa & abusa de todos os ícones de nossa pretensa modernidade: internet, chat, computador da Apple, auto-depreciação bem humorada, onde está Wally, sexo sem paixão e delivery de comida chinesa. Saímos do cinema com o ar satisfeito de quem se viu na tela, em pelo menos um dos momentos, e nem nos damos conta que o roteiro é um curta espichado sem burilamento: faltou desenvolver melhor a personagem feminina, suas cenas de "solidão" são basiquinhas e repetitivas. Talvez por ser homem, o diretor caprichou mais nos percalços masculinos. E mesmo assim não explica como o rapaz de roupas sempre discretas tira do armário o moleton que usa na última cena. OK, fica uma gracinha, a gente suspira ("viu só? o segredo é não desistir de procurar"), mas não faz sentido.
O filme de Gustavo Taretto, no entanto, é eficiente ao mostrar que a solidão dos personagens é gritante e seus desencontros são a marca de nosso tempo. Estamos todos assim, vários mundos desconexos em estreitíssima convivência e sem tradução simultânea. O bom é que o cinema mostra que isso ainda nos incomoda. Só por isso, já dá pra ter esperanças.