Quando a escritora Lygia Fagundes Telles embarcou para a China, em setembro de 1960, eu era apenas um bebê de dois meses e meio, nascido abaixo do peso e sem muitas garantias de sobrevida. Lygia já era Lygia, tanto que foi convidada pelo governo chinês, junto com um grupo de intelectuais e artistas, como a atriz Maria della Costa, a visitar o país e constatar com os próprios olhos o que a revolução comunista vinha aprontando havia 10 anos na antiga terra dos mandarins. A tinta revolucionária estava fresca nas paredes, já houvera uma troca de comando na cúpula e a Camarilha dos Quatro, gangue que implantou o terror governista com a Revolução Cultural, ainda não tinha posto as manguinhas de fora. Essa viagem está no delicioso "Passaporte para a China", que a Companhia das Letras acaba de lançar.
O livro é pequeno, menos de 100 páginas, e se você não se segurar é capaz de ir da primeira à última linha enquanto espera ser atendido pelo médico. Ou enquanto o ônibus não chega. Ou enquanto foge das besteiras televisivas. Enfim, é leitura rápida, agradável e - acima de tudo - inspiradora. Dá vontade de terminar o livro já no balcão de qualquer companhia aérea, preferencialmente rumo à China.
O melhor é que Lygia não fez um guia de viagens, nem um querido diário de bordo. Fez crônicas, que foram publicadas aos trancos e barrancos no jornal Última Hora. Na época, não havia facilidades em se transmitir notícias ou enviar encomendas. A viagem em si já era uma maratona: o grupo da escritora saiu do Rio de Janeiro no dia 24 de setembro e só foi pisar em Pequim no dia 29. Pernoitaram em Paris, Praga, Moscou e mais duas cidades da Sibéria, antes de chegar ao destino final.
Não deixava de ter seu charme dormir em Paris e outras cidades. Tomava-se um banho confortável, jantava-se bem, dormia-se na horizontal, feito gente. Hoje em dia, a viagem para a China leva pouco mais de 21 horas, com alguma escala - sem banho nem caminha - em alguma Dubai da vida. Para quem tem medo de avião, como Lygia, a longa duração prolongava o sofrimento de mais uma vez estar a bordo de uma nave misteriosa, piorando a cada etapa, pois as línguas agora não eram mais aquelas que se aprendia no colégio, mas alguma coisa de raiz eslava ou oriental.
Estive na China duas vezes - uma a trabalho, em 1993, e outra, de férias, em 2008. Foram duas Chinas. Agora, que li o livro de Lygia, descubro que há muito mais Chinas do que supõe a nossa vã geografia. A China que Lygia visitou ainda engatinhava no comunismo, havendo mesmo ainda proprietários de casas e terrenos herdados do antigo regime. A primeira China que eu conheci não se abrira para o capitalismo, tentava atrair turistas e investidores, mas pouco oferecia além de suas atrações históricas: era um país ainda agrícola, com uma população mal vestida e maltratada pela vida dura. A segunda China atracara-se de vez com as tentações do dinheiro, exibia-se com todos os brilhos possíveis em sua arquitetura ousada e tripudiava do Ocidente servindo de bandeja tudo o que o consumismo valorizava, em versões assumidamente piratas.
Se na China de Lygia, o líder Mao Tsé Tung era o grande timoneiro, na minha primeira China ele era ainda o modelo a ser seguido. Na new China, era apenas um avozinho cheio de manias a quem os netos tratavam com desdém. Nos anos 60, seria impensável ver Mao enfeitando camisetas, canecas, almofadas e bonés, tal qual um Mickey de olhos rasgados. A minha guia na primeira viagem era uma estudante que impunha um regime de ferro ao grupo - "Temos 20 minutos para visitar a Cidade Proibida" -, mas o segundo era um rapaz bem humorado, que falava espanhol com relativa fluência e que citava o governo sem o medo que seus pais tinham.
No livro, é divertido acompanhar o trajeto entre Pequim e Xangai, as duas mais importantes cidades do país. A primeira, por ser capital, grandiosa, exuberante, megalômana. A segunda por simbolizar, em 1960, o período em que a China foi colonizada por ingleses e franceses. Na época de Lygia, ia-se de trem - 30 horas de viagem! Hoje, pouco mais de 2 horas pelo ar e você deixa o gigantismo pequinês para mergulhar na feérica Xangai, com sua arquitetura ousada, seus serviços de primeiro mundo, seu ar de "cidade de todos". Comum, em 1960 e em 2008, foi a mesma paixão imediata por Xangai.
As viagens eram mais demoradas, viajar para outro país era uma atividade mais elitista, havia o que os nostálgicos chamam de "mais classe" - leia-se "menos pobres". Ir ao aeroporto era quase um programa cultural e até os palitos de dentes que vinham nas bandejas eram guardados como relíquias a ser exibidas aos menos favorecidos. "Olha o saleirinho, que bonitinho!" - o pai do meu amigo João Alberto tinha viajado de avião (a trabalho!) e trouxera pra nos mostrar o saleiro e o pimenteiro distribuídos na Varig. O cobertor de lã, então, chamava mais a atenção do que qualquer tapete marroquino com 1200 fios.
Dos Telles aos Viana, a China mudou - mas mudou também o mundo e a indústria das viagens. Para atender a um público cada vez maior e, claro, embolsar um lucro mais polpudinho, as companhias aéreas agora já não capricham tanto - porque acham que não precisam. O sal vem num saquinho de papel, os talheres são de plástico e a refeição, idem. O espaço das poltronas seria perfeito se o passageiro não teimasse em ter 2 pernas, quadris, costas...
As viagens são mesmo mais rápidas e você chega ao outro lado do mundo sem ao menor ter dormido as oito horas de sono regulamentares. Café preto com pão e manteiga de manhã, pato laqueado no almoço do dia seguinte. Antes, não só por questões de tecnologia, mas também por que o mundo parecia exigir mais tempo das coisas, as viagens eram no gerúndio, iam sendo feitas aos poucos, como se estivéssemos eternamente numa caravela. Hoje, os aviões brincam de Apolo XI e comprimem o tempo e a delicadeza. Até por isso, pra nos lembrar que viajar não era apenas uma maratona de compras e superficialidades disfarçadas de cultura, é que o livro de Lygia merece ser lido. Por ela, claro. Mas principalmente por nós.
fiquei com vontade de ler. eu ando lendo livros de chineses. sempre quero conhecer o brasil e outras culturas, tento variar ao máximo os livros, épocas e países para me informar melhor. li o livro do nobel Gao Xingjian, a montanha da alma. esse autor era a favor do comunismo, mas um de seus textos jornalísticos foi mal interpretado e ele ficou anos preso. depois conseguiu se refugir em londres. tb li a biografia cisnes selvagens de jung chang, a mesma q escreveu a biografia do mao depois de escrever essa obra. os pais dela ajudaram a formar a revolução. ele era um comunista ardoroso e muito culto. mas depois de anos de dedicação, acabou tb sofrendo represálias. esse eu comentei no meu blog http://mataharie007.blogspot.com/2010/07/cisnes-selvagens.html e por último adeus china, sobre o bailarino chinês li cunxin. ele era de uma família pobre de lavradores q foi escolhido para estudar em uma escola chinesa http://mataharie007.blogspot.com/2011/02/adeus-china-de-li-cunxin.html
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