domingo, 26 de abril de 2009

Tempo Derramado


O tempo é a grande referência da obra de Chico Buarque. Sempre foi. No álbum “Vida”, de 1981, ele já se perguntava o que tinha feito de sua existência. Se radicalizarmos, até em “A Banda”, de 1966, o tempo se faz sentir: “O que era doce acabou / tudo tomou seu lugar / depois que a banda passou”. Por isso, só mesmo quem nunca ouviu nada de Chico Buarque poderia se surpreender com a trama do seu novo romance, “Leite Derramado”. Nele, finalmente, o Chico-escritor encontra o Chico-compositor e ambos se entendem às mil maravilhas. Talvez porque tratem do tema preferido de ambos: a passagem do tempo.
Há muitos anos consagrado como um dos letristas mais requintados da música brasileira, Chico enveredou também pelo caminho da literatura. Não foi fácil, nem pra ele nem pra seus leitores. “Fazenda Modelo”, “Estorvo” e “Benjamim” são apenas corretos e não trazem em si os lampejos de gênio do autor de “Eu te amo”, “Corrente”, “As Vitrines” e tantas outras.
Ainda bem que Chico não se acanhou e continuou tentando. A balança começou a se reequilibrar com “Budapeste”, mas chega ao ponto certo com este “Leite Derramado”. A derrocada familiar de Eulálio d’Assumpção e seus desvarios racistas é obra que se lê com prazer, não porque seu autor é bacana, mas porque é um ótimo romance.
Houve quem visse no protagonista uma extensão do personagem de “O velho Francisco”, música que abre o álbum “Francisco”, de 1987. Eu iria mais longe. Pelo menos mais duas faixas – e talvez uma terceira – estão presentes no livro, dissolvidas na trama. O escritor valeu-se, enfim, do compositor e fez muito bem feito. À história do homem abandonado no hospital (“O velho Francisco”) soma-se a decadência aristocrata de “Bancarrota Blues” e a melancólica solidão de “Todo o sentimento”. Sem falar que há um toquezinho de “As minhas meninas”, na voz do pai que não sabe nem tenta segurar a filha consigo. São todas faixas do mesmo disco.
Chico discute o tempo e não esconde que sente seus efeitos. “O retrato do artista quando moço”, canta ele no disco “Paratodos”, de 1993. “Modelando o artista ao seu feitio / O tempo, com seu lápis impreciso, / Põe-lhe rugas ao redor da boca / Como contrapesos de um sorriso”, escreve em “Tempo e artista”. O tempo que demole, arruína e enfeia está nas músicas e, agora, na literatura de Chico Buarque.
Na contramão das celebridades que encontram um novo amor a cada edição de Caras, Chico pode até não gostar das rugas que vincam seu rosto. Pode, até mesmo, sentir que seu poder de grande sedutor perde um pouco da força a cada dia. Mas ele não nega que o tempo segue seu rumo. É normal, é da vida – assustador seria que isso não acontecesse. Ele se chamaria Dorian Gray e não Chico Buarque.

4 comentários:

  1. Tou lendo o Leite derramado e estou gostando. Curioso que lembrei de uma outra coisa. O personagem tem um quê do Aureliano Buendia, não tem não? Parece até que algo de surreal vai acontecer, ou está acontecendo.... O hospital parece ser uma Macondo.... sei lá, pode ser bobagem minha.....

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  2. Rosani, alvinegra plenipotenciária, sempre presente!

    Nossa, Vita, vc resgatou os Buendía do fundo da memória... rs... Não sei, acho que o personagem do Chico tem mais a ver com aqueles aristocratas decadentes do Thomas Mann ("Os Buddenbrook", vc leu?), devidamente marcados pela mistura racial que formou o Brasil. A recusa sistemática em aceitar negros na família e em procurar eufemismos para eles é um dos pontos altos do romance, pra mim. E um dos pontos mais baixos do comportamento brasileiro, não importa de que extrato social. A minha família, mesmo, que veio de pau-de-arara pra SP, tinha seus caprichos de "gente branca", como se fosse.

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  3. Mário,
    Matou a pau. Todas aquelas faixas estão ali. E outra também. Ao focar, na literatura, o que sempre foi seu tema maior nas letras, o autor achou sua voz. Ou melhor, sua outra voz. Alívio dele, sorte nossa.
    abraço,
    Aimar

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