terça-feira, 7 de abril de 2009

A carne das palavras

Ando cismado, desde que começaram a divulgar o espetáculo "Por um fio", que estreou semana passada no Teatro Sesc Anchieta. Estrelada por Regina Braga e Rodolfo Vaz, a peça é a transcrição cênica, palavra por palavra, de alguns contos do livro escrito pelo médico Drauzio Varella. A falta de tempo me impediu de ver até agora o que deve ser um bom espetáculo - Regina e Rodolfo são atores que extraem emoção até de manual de instrução de aparelho eletrônico e Drauzio Varella tem um olhar sensível sobre o ser humano. Mas confesso que não sinto um frisson incontrolável de ir ao teatro para 'ouvir' um livro. Podem chamar de cafona, antigo, old fashion - mas livro eu gosto de ler eu mesmo.
Moacir Chaves, o diretor de "Por um fio", já fez outros espetáculos no mesmo molde. Lembro de "Sermão da quarta-feira de cinzas", de Padre Antonio Vieira. O ator Pedro Paulo Rangel arrasava com o texto do século 17. Tempos depois, o diretor Aderbal Freire-Filho montou "O que diz Moleiro" e fez de um romance português que ninguém tinha lido um dos maiores sucessos teatrais da primeira década deste século. Era um espetáculo bonito, mas eu não saí uivando do teatro, não. A peça tinha barriga - e não era barriga tanquinho, não, era pânceps mesmo. Animado pelo sucesso, Aderbal fez "O púcaro búlgaro", encenando o romance do Campos de Carvalho, eu já tinha desistido. Repetindo, livro eu leio.
Não é gratuita a ranhetice. É mais um respeito pela Palavra, assim mesmo, com maiúscula. Existe um mecanismo secreto no ritmo das frases, algo que as destina para serem lidas ou ouvidas. Isso não é regra universal, obviamente, mas eu penso assim. A Palavra, quando é para ser desfrutada em livros, ela respira de outra maneira, ela se articula com as outras de outra forma, ela cria um hábitat próprio.
A Palavra do teatro tem outra carne. Ela sua, é suja, ela desliza da boca dos atores para nossos ouvidos, inventa novos universos e nos faz enxergar e imaginar a vida de outra forma. A Palavra do teatro depende do ator para lhe soprar a Vida esboçada pelo dramaturgo. Os textos de Shakespeare e de Nelson Rodrigues, por exemplo, são um primor, quando lidos. Mas atingem o céu quando bem encenados. É nessa hora que eles cumprem sua missão.
No documentário "Palavra (en)cantada", Chico Buarque dá um exemplo prático disso. Contrário à idéia de que ótimos letristas sejam poetas, Chico lê uma letra escrita por ele e considerada pela audiência como "uma poesia!". Ele lê e vai comentando... "Essa palavra... o poema não pede, mas a canção pede, por isso a palavra tá aqui".
Eu, que já virei parceiro de Mário de Andrade, Rabelais, Robert Louis Stevenson e Murilo Rubião, entre outros, não vejo problema algum em fazer e assistir boas adaptações de contos e romances para o palco ou as telas. Mas a alma das adaptações pode ser tema de outro post. Este aqui quer apenas falar isso: livro na íntegra, ok, mas por escrito. Audiolivro é útil para deficiente visual, quantos mais houver, melhor (os audiolivros, não os cegos).
A Simples Transcrição Cênica pode render lindos e honestos espetáculos - mas Dramaturgia não é, não.

5 comentários:

  1. Mário,

    Também penso assim. Livro é livro, filme é filme, teatro é teatro. Como diz aquele pessoal da arte contemporânea, são suportes diferentes, mesmo que tenham por base a palavra escrita. E a palavra escrita é traiçoeira. O que soa bem no livro, dificilmente soará (acho que é a primeira vez em 53 anos, completados hoje, que escrevo essa palavra)bem. Você percebeu isso na sua adaptação do Médico e o Monstro. E nós, da platéia, agradecemos... Tudo bem, podia ter umas mulheres peladas ali, como se faz no bom teatro contemporâneo, mas deixa pra lá....

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  2. Luiz Vita, um membro ativo e pulsante do conselho de anciãos da aldeia precisa ser mais comedido... rs rs... feliz aniversário de novo. vai que vc, com o avançar da idade, esqueça de quem ligou...

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  3. Mário,
    Dei o endereço do Blog para a Cris. Ela disse que não pode acessar do trabalho e eu disse que não era pornô. A menina só pensa naquilo...

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  4. Mário, esses caras são inovadores.
    Depois do stand up cômico, que demorou tanto tempo pra chegar (e está demorando muito pra desaparecer), inventam um novo gênero.
    O stand up clínico.

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  5. concordo com o que você escreveu, e não só linha por linha, mas em gênero, número e grau. parabéns! guza

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