sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Dia do Pendura


O tempo recuou quase 45 dias em Santo André: embora ontem fosse 24 de setembro, o pessoal da Vila Pires viveu um 11 de Agosto inesquecível, um Dia do Pendura fora de época. Pra quem não sabe, todo 11 de Agosto comemora-se a fundação da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Nesse dia, os futuros bacharéis, promotores, ministros e portas-de-cadeia almoçam e jantam na rua sem pagar a conta no final - geralmente com a total discordância dos donos dos restaurantes. Enfim, é o Dia do Pendura, primeiro dos muitos calotes que vários profissionais vão dar pela vida a fora.

Vila Pires não tem faculdade de direito, parece que nem restaurante. Mas tem uma loja de fogos de artifício. Tinha. A loja ontem voou pelos ares, levando consigo uma parte considerável da rua em si. O ponto de comércio estava irregular, os vizinhos já vinham protestando fazia um tempo, mas só depois da explosão é que alguém resolveu levar as coisas a sério. Certamente isso não serve de consolo pros parentes das duas pessoas que morreram. Muito menos pros donos das quatro casas totalmente destruídas durante o acidente.

Fiquei pensando nos donos dessas casas. Sujeitos que, certamente, pagam suas contas, saem pra trabalhar, torcem pra algum time de futebol e gostam de acompanhar a novela toda noite. De uma hora pra outra, a vida deles não é mais o que era. Ruiu tudo. Uma série de bombardeios transformou suas casas em ruínas e deu a suas vidas um destino impensado. Como fénix do terceiro milênio, eles precisam renascer - não das próprias cinzas, mas da poeira.

Recomeçar é sempre bom, dizem os livros de auto-ajuda. Será que seus autores passaram por algo parecido? Perder tudo em um minuto? Não dá pra ser muito otimista quando se sabe que o prejuízo vai ficar por conta do abreu. Foi um grande e cruel Pendura. Quem vai pagar as casas? Os móveis? Os danos? Mesmo que esteja vivo, dificilmente o dono de um muquifo escondido numa rua de Santo André vai ter cacife pra repor o prejuízo material de tantas vítimas - mais de 100 pessoas desalojadas desde ontem. Mesmo que tivesse... seria suficiente? Como diz aquela propaganda de cartão de crédito, tem coisa que o dinheiro não compra.

Debaixo dos escombros, ficaram os eletrodomésticos ganhos no dia das mães, o dormitório comprado a prestação e a máquina de lavar que precisava ser trocada um dia desses. Debaixo dos escombros ficaram as roupas, os livros, os CDs, a revista que ainda ia ser lida e uma conta que vence dia 30. Ficou a lista do mercado, o par de sapatos comprado pro casamento do sobrinho e um vasinho de violetas todo florido.

Ficaram soterradas também todas as lembranças - uma almofada que a mãe mesmo bordou, um jogo de jantar do enxoval de casamento e um porta-retratos com uma foto tirada na última viagem a Porto de Galinhas. Ou será Porto Seguro? Sumiu pra sempre o álbum com fotos do caçula e o video de formatura do mais velho... Sumiu tudo...

Sobrou apenas, pendurada no chaveiro, uma chave inútil.

12 comentários:

  1. Rapaz, um belo texto. O drama humano, visceral e devastador, para além das estatísticas.
    abs

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  2. CARAMBA!!! Ufa... (enxugando umas lágrimas)

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  3. Valeu, gente! Foi um texto que começou a partir da última frase, vejam só... Eu tava caminhando, pensando no caso e pensei: a chave da casa vai abrir o quê? nada!

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  4. Belo texto Mário..... Não chorei como a Ana, porque meu coração é uma pedra, você sabe. Mas, confesso que vacilei. Tou ficando frouxo.... Realmente você detonou!!

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  5. Este comentário foi removido pelo autor.

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  6. Numa das minhas mudanças de casa, achei que tinha perdido as fotos dos meus filhos. Gemte, fiquei triste até não mais poder. Lembro de contar para o meu psicanalista, arrasada.
    Quando fui mudar de novo, encontrei as fotos, só faltei soltar fogos (desculpe)de tanta alegria.
    É muito duro perder o registro de nossa memoria afetiva, mas do que perder bens e dinheiro.

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  7. Guardar o passado em fotos e vídeos, presentes, músicas... mas sem que isso seja uma bola de ferro presa ao pé... Isso vale até para corações empredados, como o do Vita...
    Vcs viram o dono da loja de fogos? Achei bacana a mulher dele estar ao lado...

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  8. Show de bola de relações públicas, quem orientou, orientou direitinho.

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  9. Pensei nisso também. O advogado do cara é bom. Precisamos pegar o nome dele... nunca se sabe quando a nossa lojinha de fogos vai explodir...

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  10. Desde que fui processada por advogados que tinha contratado para me defender, que me vi sozinha diante do Judiciário Brasileiro como ré de um processo de quarenta mil reais, sou a favor do amplo direito de defesa, não importa o crime, todo mundo tem direito a não ficar só diante do poder massacrante do Estado.
    A proposito. eu ganhei esse processo, mas tiver que contratar novo advogado para me defender dos outros, surreal, cara.
    Ninguem está livre de viver uma situação como o casal dos fogos, você tem toda a razão.

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  11. O Tim Maia dizia (tá na biografia dele) que ele sempre contratada dois advogados, um para vigiar o outro.

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