sexta-feira, 5 de junho de 2009

Rico brasileiro não tem espelho


Descobri que um vizinho do prédio (ou melhor, do condomínio; morar em ‘prédio’ ficou muito chinfrim) está envolvido com o curso de luxo da Fundação Getúlio Vargas – gestão do luxo, administração do luxo, alguma coisa assim. Aulas sobre vinhos especiais, investimentos, roupas, sonhos de consumo, enfim, tudo aquilo que fica ao alcance de quem tem muitos zeros à direita no saldo bancário. Ele só se embananou na hora de montar um módulo sobre os ricos na arte brasileira. “Não tem”, ele me disse, tomando um cafezinho no Viena da Avenida Paulista. “A não ser em novela”.
Meu mergulho mais profundo para entender o faiscante mundo rico foi a leitura de “Riquistão”, do jornalista americano Robert Frank, que passou anos acompanhando a trajetória de gente muito-muito-muito rica para o Wall Street Journal. Do curso para mordomos até a hora de escolher um iate, tudo passou pelo crivo de Frank. Mas essa leitura não ajudaria na minha conversa com meu vizinho, preocupado com a falta de ricos na arte verde-amarela.
O cinema, ele disse, nem toca no assunto. É verdade. Cineasta brasileiro sempre optou por retratar as classes mais desfavorecidas, também chamadas de ‘pobres’. Diz-se que isso acontece porque nossos cineastas nascem em classes abastadas. Não é só. A síndrome do desdentado que aflige boa parte do cinema nacional tem muito a ver com o destinatário do filme, o público classe-média. Parece que, didaticamente, os cineastas dão a seguinte mensagem ao espectador: “A diarista, a tia do cafezinho ou o tiozinho da faxina, veja você, têm histórias pra contar. E algumas muito interessantes. Até edificante, não é só choradeira e miséria. Essas são suas histórias.”
A crítica – e os espectadores mais ‘antenados’ – também ajudam a perpetuar o figurino de chita nas nossas telas. Qualquer filme com personagem mais arrumadinho é logo acusado de ter “linguagem publicitária”. O máximo que se autoriza é personagem classe média, desde que espezinhado pela crise e amargurado por um passado sombrio. Se ele ficar em silêncio, olhando o vazio como se tivesse algo profundo a dizer (não tem, mas vale o fotograma), não precisa nem roteiro compreensível. Os filmes de Claudio Assis (Baixio das Bestas) e Selton Mello (Feliz Natal) provam a tese.
No teatro, então, nem se fala. Toda vez que querem montar uma peça sobre ricos, os diretores recorrem a Oscar Wilde. Noel Coward, muito de vez em quando, raríssimo. É bem verdade que, devido à carência orçamentária, os ricos do palco ficariam muito falseados. E também devido ao desconhecimento da espécie retratada, poucos atores conseguem interpretar um rico sem: a) soar antipático; b) parecer fútil; c) falar como se tivessem sido empalados por um cabo de vassoura; d) se jogar no sofá: por alguma razão que me escapa, todo rico de teatro se atira no sofá da sala, como se não soubesse se sentar normalmente.
Na música, rico só aparece cantando. Nos anos 60, Tereza Mecha-Branca e Maysa. Mais recentemente, Mariana Aydar e Roberto Justus gravaram seus CDs. Mariana é ótima, de verdade. Agora, chamar o Justus de cantor é a mesma coisa que equiparar a Caras a Dostoievski. Não dá – nem pra ouvir, nem pra levar a sério.
Resta mesmo a televisão. Nas novelas, o núcleo rico é o sonho de muita atriz, que só assim poderá fazer as unhas e os cabelos por conta da produção. Até o advento de Gilberto Braga, rico de novela só servia para espezinhar pobre e ter filho que se apaixonasse pela empregada. A Mãe Rica, invariavelmente má, arquitetava planos maquiavélicos enquanto tomava chá (rico sempre toma chá completo, pode reparar).
Gilberto Braga criou ricos verossímeis, dando-se ao luxo até de ter a melhor Mãe Rica Má de todos os tempos, a insuperável Odete Roitman: Odete defendia os filhos, à sua maneira torta, e dava duro diariamente na empresa da família, a TCA. Os ricos de Braga não vivem de brisa. Felipe Barreto era cirurgião plástico, agora a Stella Simpson... essa eu não lembro o que fazia. Atualmente, tem até rico bobo de tão bonzinho, como provou João Emanuel Carneiro, em “A Favorita”.
Mesmo sendo um naquinho da pirâmide social, em números absolutos, os ricos mereciam mais espaço nas artes. Em outras atividades, coitados, eles vêm seus redutos ocupados por uma classe média das mais barulhentas – quando alguém imaginou que um resort all-inclusive seria oferta de uma CVC? É o fim dos tempos.
Nota-se, aqui e ali, movimentos discretos de revolta. Um site de relacionamento só para gente muito endinheirada. Clubes com ingresso exclusivérrimo. Revistas classe A plus noticiam seus feitos (a Caras, no começo, ainda mostrava um pouco do universo dos happy few, mas agora, só dá capa para cantora de axé e apresentadora de programa infantil). E fica por aí. Sem nada que os mostre de verdade nos cinemas, na literatura e nos palcos, resta aos realmente ricos os campos de pólo, desde que os paparazzi não venham atrás do Rico Mansur, aquele wannabe deslumbrado.

8 comentários:

  1. "Mesmo sendo um naquinho da pirâmide social, em números absolutos, os ricos mereciam mais espaço nas artes." Mário, a muito eu ouvi que a idéia é a de que as artes representem o seu povo. Daí representar a minoria com minoria. Mas ainda assim a representação distoa. Quantos ricos negros a gente vê? Nenhum, mas há. Quantos realmente pobres, e não classe média? Quantas empregadas domésticas brancas a gente vê? Poucas. Mas tem, e muito. E ninguém trabalha nas novelas, por exemplo, mas todos gastam aos montes. É assim. Tudo muito pasteurizado, cheio de politicamente correto e clichês. Abs

    ResponderExcluir
  2. É mesmo, Nathan. Outro dia, vi a propaganda do Comfort, uma animação que mostra vários profissionais envolvidos na produção do amaciante. O único nordestino é o operário. Podia ser a técnica do laboratório, mas não. Nordestino e preto nunca são ricos na ficção. Pobres ricos, aprisionados no country club...

    ResponderExcluir
  3. Você me fez lembar do Aristides Vilhena, o armador, de Selva de Pedra, tio rico do Cristiano. Ele passou quase toda a novela de roupão de seda, nos braços da Arlete Salles, a mulher caprichosa e exploradora.
    Teve também o empresário que saiu de baixo, Lima Duarte, em Pecado Capital. Ambas de Janete Clair.
    Não sei se na televisão os ricos estão tão ocultos assim. No cinema, concordo plenamente com você.
    Cotidiano de rico é sem graça, eles comem pouco para não engordar, são discretos, casam-se entre si. Cantam parabéns a você, comemoram natal e reveillon, acho que não tem muita diferença de pobre e classe média. Descobrir essa diferença talvez seja o desafio.

    ResponderExcluir
  4. TV é o único meio que retrata mais os ricos - talvez não da maneira realista, mas idealizada. Se bem que o Walcyr Carrasco um dia disse que é mais legal escrever rica paulista, pq ela trabalha, ao contrário da ricaça carioca, que vive de fru-fru.
    Cotidiano de rico só é sem graça se ele não tiver imaginação. Eu acharia muita graça acordar em SP, cismar de almoçar em Fortaleza e comprar uns temperinhos em Paris - sem precisar levar o cartão de crédito ao limite.

    ResponderExcluir
  5. Como diz uma amiga minha, deve ser muito bom não ter que decidir se leva a alface ou rúcula. A gente olha rico com olhar de pobre, ao certo pouco sabemos sobre os seus desejos e anseios. Eu pobrinha que sou não vejo graça em ir almoçar em Fortaleza a qualquer momento nem em comprar tempero em Paris, mesmo não tendo dinheiro para isso.

    ResponderExcluir
  6. Mário Viana,
    Vejo em seu comentário um incentivo à luta de classes. Helou!!! O muro de Berlim já caiu... Que coisa mais demodê: deu pra virar comunista depois de velho???

    ResponderExcluir
  7. Vita, a última luta de classes que eu tomei parte foi no colégio - o terceiro B contra o terceiro A. E, olha, isso faz tempo, viu?

    ResponderExcluir