
Pego emprestado o título de uma antiga peça de Jean-Paul Sartre (tudo do Sartre é antigo, eu sei, ele anda meio fora de moda) para falar do que tenho visto ultimamente nos cinemas. No futuro, quem se debruçar sobre este período do cinema vai achar que tínhamos todos virado místicos, paranormais ou alguma coisa do gênero. Certamente a culpa não é dos espíritas e do sucesso espantoso de "Chico Xavier" - ao que consta nem Clint Eastwood nem aquele diretor tailandês, cujo nome é o encontro mundial das consoantes sem vogal, tiveram o privilégio de ver os bons desempenhos de Nelson Xavier, Antonio Angelo, Cássia Kiss e Cristiane Torloni. Mas tanto o americano quanto o thai apelaram pro além em seus filmes mais recentes.
Não vou aqui discutir os filmes - quem me conhece sabe que não saí nada comovido de "Além da Vida" - mas dividir com os seguidores do blog essa perplexidade: que deu na gente de, cada vez mais, recorrer aos falecidos pra explicar o que acontece? Só esta semana em São Paulo, são uns 3 ou 4 filmes de gente procurando contato com quem se foi, como se o conselho dos mortos servisse para dar alguma luz.
Em geral, o contato dos personagens vivos com os que abotoaram o paletó de madeira tem fundo emocional capaz de fazer uma pedra chorar. Eu choro, não nego, mesmo quando não gosto do filme. É aquele choro que, quando passa, dá raiva. Por que aquele personagem - o vivo - não segue sua vida, diabos? Por que não toca o barco? Uma das coisas mais definitivas até o momento é que não há retorno quando se ultrapassa a última fronteira (gostaram?). Quem fica sabe que o jogo agora tem novas regras e um jogador desfalca o time.
Incomoda-me essa dependência dos que partiram. Essa consciência culpada - "eu nunca disse a ele/a que o adorava/admirava/amava etc etc" - é o que faz a fortuna dos confessionários e consultórios de terapia. Ok, recorramos aos padres e terapeutas, se isso ajudar - pelo menos são seres vivos nos ouvindo e questionando. Há igualdade de condições. Mas com um morto... Convenhamos, a gente recorre a eles porque acredita que eles têm informações privilegiadas sobre o futuro, as quais eles não hesitariam em dividir conosco, seus entes queridos que sobraram neste vale de lágrimas. Haveria, portanto, um interesse aparentado do mesquinho nessa lacrimosa conversa com o além.
Não é por acaso que o filme com menos pegada culpa-no-cartório é o tailandês "Tio Boonmee, que Pode Recordar suas Vidas Passadas" - o da foto que ilustra o post. Talvez por conta da formação budista de toda a equipe. No filme, que ganhou a Palma de Ouro em Cannes, o Tio do título está à beira da morte e recebe a visita de uma cunhada, um sobrinho - vivos - e alguns mortos. A convivência entre eles é bastante razoável e há momentos de extrema poesia: a mulher morta há 19 anos permaneceu igual e os vivos envelheceram, o que os faz refletir sobre a passagem do tempo. Há consultas sobre o que espera os que morrem e uma frase demolidora: "O ceu é superestimado pelos vivos".
Nossos mortos não envelhecem, não mudam de opinião, não mais nos surpreendem. Nossos ídolos, que morreram jovens, não têm direito a trocar de grupo, partir pra outro estilo, nada. Daria até pra dizer que nossos falecidos são conservadores. Portanto, pedir conselho a eles é meio que recorrer ao tiozinho do sermão. Como se qualquer pessoa se tornasse um guru sensato, ao passar pro andar de cima (acho engraçada essa imagem de morte, que o ator-diretor Otavio Martins volta e meia deixa escapar).
Cada um acredita no que quer e pronto. Eu mesmo já circulei em centro espírita, consultei erê e cigana, fiz o jogo do copinho e assisti a medium incorporando artista plástico. Não acho que nada seja impossível, mas não é por isso que vou correr a cada parabólica mediúnica sempre que estiver com dor de corno, quiser me arriscar num trabalho novo ou fazer uma viagem.
A vida é território dos vivos, mas temos de reconhecer: do jeito que a coisa anda, vamos aposentar de vez o chavão "Morreu, descansou". Nunca, como agora, os mortos tiveram tanto pra fazer.